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Lúcia Helena Issa

Jornalista, escritora e ativista pela paz. Foi colaboradora da Folha de S.Paulo em Roma. Autora do livro "Quando amanhece na Sicília". Pós- graduada em Linguagem, Simbologia e Semiótica pela Universidade de Roma e embaixadora da Paz por uma organização internacional. Atualmente, vive entre o Rio de Janeiro e o Oriente Médio.

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Os EUA, com as mãos banhadas de sangue, deixam um Afeganistão em chamas e um Talibã mais forte

O Talibã transformou o Afeganistão - onde na década de 70 as mulheres estudavam medicina, usavam lindos vestidos e falavam 4 idiomas - em um país medieval

Mulheres em Cabul, capital do Afeganistão (Foto: Reuters)
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Eram quase 13 horas de domingo no Brasil quando eu recebi o telefonema de Latiffa, a refugiada afegã que conseguiu fugir do Afeganistão e chegar em Roma em segurança com a ajuda de uma ONG italiana, e de quem me tornei amiga em 2015, quando passei mais uma temporada em Roma entrevistando centenas de mulheres refugiadas sírias, afegãs, palestinas e iraquianas. 

O telefonema de Latifa deixou uma imensa tristeza em meu coração e confirmou tudo o que eu previa que ela e milhares de mulheres afegãs temiam. “Non sappiamo piu cosa fare, mia sorella vive a Kandahar e adesso piange tutto il giorno  per le sue figlie.” 

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Latiffa me conta que os Talibãs tomaram a cidade de sua irmã, Kandahar, o berço espiritual da imensa milícia fundamentalista, e que a irmã chora o dia todo pensando no que será do futuro das filhas adolescentes. Sim, o Talibã não é um pequeno grupo terrorista como muitos afirmam, mas uma milícia, muito parecida com a milícia evangélica que domina a cidade em que vivo, Rio de Janeiro, e que tem matado e expulsado das comunidades quem não se submete a eles.

O Talibã de Kandahar era um grupo reduzido a poucos milhares de homens quando começou a ser armado pelos EUA na década de 80 para lutar contra o “comunismo” no país e contra o domínio soviético. Fundado por Mohammad Omar e armado fortemente pela CIA, o grupo extremista prometia restaurar a “paz” no Afeganistão, mas assim que tomou o poder na década de 1990, fez com que o Afeganistão mergulhasse em uma distopia quanto aos direitos das mulheres e das meninas e quanto à cultura e às universidades, aplicando leis que jamais existiram em outros países muçulmanos, leis que jamais estiveram no Alcorão, como a proibição de que meninas frequentem a escola, a proibição de que usem maquiagem, a proibição da música, a obrigação do uso da burca azul que cobre completamente o rosto deixando apenas uma pequena tela para os olhos, causando inclusive danos oculares, uma vestimenta e um cenário de terror que jamais vi na Palestina, Líbano, Síria, Marrocos e outros  6 países de maioria muçulmana onde estive inúmeras vezes. O Talibã transformou o Afeganistão - onde na década de 70 as mulheres estudavam medicina, usavam lindos vestidos e falavam 4 idiomas - em um país medieval, onde todas as leis foram baseadas numa visão completamente distorcida e mentirosa do Alcorão.

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Osama Bin Laden e membros da Al Qaeda se refugiaram nas montanhas do Afeganistão e os EUA acusaram os fundamentalistas de executarem o ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001 e o país de “ proteger” o grupo. Poucos meses depois daquela manhã de 11 de setembro, os EUA invadiram o Afeganistão, iniciaram uma guerra que mataria mais de 150 mil civis inocentes, incluindo mulheres, crianças e idosos, gastariam cerca de R$ 5,2 trilhões, ou um trilhão de dólares do contribuinte, perderiam 2 mil soldados, e deixariam um país devastado.

 

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O número de mortos afegãos pode ser muito maior do que o oficial, pois os EUA só começaram a registrar de fato todas as vítimas civis em 2009, oito anos depois do início da guerra. Vinte anos após o início da “ guerra” e de mais um fracasso criminoso dos EUA no Oriente Médio no que se refere ao combate aos fundamentalistas, o Talibã inegavelmente se fortaleceu, tem cerca de 200 mil membros, armas e tecnologias ultramodernas, conta com o apoio de uma parte dos afegãos que, após a invasão dos EUA, passaram a ver extremistas como heróis, conseguiram retomar  cidades como Mozar i Sharif, Kandahar, Cabul e já domina o país inteiro, evocando nas mulheres as lembranças das chicotadas em público, das mortes sem sentido algum, das escolas fechadas para as meninas ou transformadas em escolas militares, dos Kalashinikov encostados no rosto de suas meninas por leis que jamais foram reveladas ao Profeta e jamais fizeram parte do Alcorão.

 

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Conversei também com o professor e escritor Gilberto Feres Abrão sobre o surgimento do Talibã no Afeganistão e suas punições sádicas sobretudo às mulheres. “O Talibã foi forjado nos laboratórios da CIA, movido pela retrógrada ideologia da seita wahabbita, que também serviu de ideário aos grupos terroristas Al-Qaeda, Estado Islâmico, Al Nusra, Boko Haram e outros (...) O Talibã e Al-Qaeda serviram para expulsar a antiga União Soviética do Afeganistão. O Estado Islâmico e Al-Nusra foram concebidos para derrubar o governo sírio e todos esses grupos têm como ideário o wahabbismo, a seita que decreta que todos que não seguem os seus dogmas são hereges, até mesmo os muçulmanos sunitas, aos quais os terroristas dizem pertencer. Durante os vinte anos em que os americanos estiveram ocupando o Afeganistão pouco ou quase nada fizeram para derrotar o Talibã. Na verdade, enganavam o mundo. O que eles queriam mesmo era manter o Talibã em stand by para que ele voltasse quando fosse necessário”, explica Abrão.

     Toda a minha experiência em campo, vivendo num campo de refugiados como se eu fosse refugiada, entrevistando centenas de mulheres sírias e afegãs, confirmam o relato de Gilberto Abrão sobre o whaabbismo e sobre como os EUA alimentaram esses grupos.

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Latiffa me contou ontem que sua irmã está desesperada pois os professores da escola das sobrinhas em Kandahar choravam ao se despedir delas e avisavam aos pais que todas devem ficar em casa, pois eles não sabem o que acontecerá agora com os Talibãs armados até os dentes. A irmã de Latiffa mal conseguia falar, e uma das meninas lhe contara que médicas que trabalhavam na região foram mandadas para casa, professoras perderam seus empregos, e que os muros estavam cheios de novos cartazes proibindo as mulheres de saírem às ruas de Kandahar sem um acompanhante do sexo masculino.

As sobrinhas de minha amiga Latiffa têm 10 e 12 anos e só conheceram o país em guerra, invadido e aterrorizado cotidianamente pela maior potência bélica do mundo, mas sem o domínio da milícia Talibã. A mais velha das meninas, Layla, só fala em morrer e desenvolveu um quadro grave de ansiedade. O relato de minha amiga devastou meu coração. 

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Exatamente como as milícias evangélicas, que sequestraram o cristianismo para alimentar o ódio contra pessoas de religiões de matriz africanas, a expulsão de não evangélicos das comunidades mais pobres e para praticar o feminicídio, o Talibã sequestrou o islamismo para expulsar os Hazaras (etnia minoritária no país, onde a maioria é de etnia Pashtun), calar as mulheres e estuprar impunemente as meninas de seu país. 

O medo de Latiffa é imenso por suas sobrinhas, e é o mesmo medo que milhões de  mulheres afegãs estão sentindo hoje. Há um sentimento de que todas as meninas estão em perigo, me relatou Latiffa. 

A tristeza pelos relatos que recebi de Latiffa e de Maryam, uma refugiada afegã que entrevistei em Buenos Aires, uma professora afegã que se casou com um argentino, devastaram meu coração. Maryam já perdeu duas irmãs menores em Mazar i Sharif  e chora ao falar sobre elas.

Assim que os EUA anunciaram que se retirariam do Afeganistão depois de sua criminosa aventura bélica de 20 anos no país, muitas mulheres começaram a fugiram de áreas já controladas pelo Talibã, relatando que os milicianos impunham que famílias entregassem meninas e mulheres solteiras para se tornarem esposas de seus soldados. 

 Um governo fraco, que não era visto como legítimo pela população afegã, um governo criado pelos EUA como um fantoche nos seus 20 anos de guerra no Afeganistão, apenas fortaleceu o Talibã e permitiu que ele tomasse Cabul em menos de 24 horas. 

Milhões de fuzis, metralhadoras automáticas e equipamentos fornecidos pelos EUA ao Exército Afegão também estão agora nas mãos do Talibã, exatamente como aconteceu no Iraque, onde os EUA acabaram armando o grupo terrorista ISIS ou Estado islâmico, que nada tem de islâmico. 

Mais de 60 países, incluindo EUA, Alemanha, Japão e França, publicaram um comunicado em que fazem um apelo para que cidadãos afegãos e estrangeiros tenham permissão para deixar o Afeganistão em segurança. Os Estados Unidos terminaram no domingo a evacuação da embaixada em Cabul e a bandeira americana também já foi retirada dali. Mais de 500 cidadãos americanos, entre funcionários e diplomatas, já foram retirados em segurança do Afeganistão, enquanto ouço o relato de medo e dor de Latiffa sobre sua irmã e suas pequenas sobrinhas. 

O governo americano prometeu também que ajudaria a retirar até 70 mil cidadãos oriundos do país asiático, entre intérpretes e outros funcionários que ajudaram as tropas dos Estados Unidos, mas isso ainda não foi feito e muitos não acreditam que essas pessoas sejam retiradas de fato. 

Os Estados Unidos, com suas mãos banhadas do sangue de mulheres e crianças muçulmanas, deixam um Afeganistão em chamas e muito pior do que o país que invadiram há 20 anos. 

O aeroporto de Cabul se transformou em uma metáfora do terror que assola as mulheres afegãs. 

Milhares de pessoas invadiram a pista no aeroporto internacional de Cabul e tentaram entrar em aviões para fugir do país hoje destruído e novamente dominado pelo Talibã. Imagens que recebo nesse momento mostram as pessoas tentando entrar em um avião americano que estava prestes a decolar. 

Choro hoje ao pensar em Latiffa em suas pequenas sobrinhas e nos quase 200 mil civis que perderam suas vidas durante a criminosa e fracassada invasão americana ao Afeganistão. 

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