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Rogério Skylab

Músico e compositor

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Os excluídos

O Sr. Putin acaba de entrar no recinto. Boa parte dos convidados já está sentada em seus devidos lugares, escolhidos com muito cuidado pelo cerimonial. O garçom encaminha Putin a uma mesa, um pouco afastada do centro, onde um dos convidados já se encontra: é a sra. Dilma Roussef

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Dia 15 de novembro de 2014. O salão está repleto de grandes líderes. Estamos na cidade de Brisbane, Austrália, que recebe a reunião do G20. Há um tilintar de talheres, um burburinho efusivo, risos, um cheiro de comida que penetra fundo na alma das personalidades. O Sr. Putin acaba de entrar no recinto. Boa parte dos convidados já está sentada em seus devidos lugares, escolhidos com muito cuidado pelo cerimonial. O garçom encaminha Putin a uma mesa, um pouco afastada do centro, onde um dos convidados já se encontra: é a sra. Dilma Roussef. Putin senta à frente da então presidenta do Brasil, recém-eleita em seu segundo mandato numa disputa acirradíssima, cumprimentam-se  e ambos olham para o centro do salão, onde o Sr. Obama protagoniza as atenções como a grande estrela do evento.

Essa não é uma cena inventada. Os pormenores talvez o sejam, mas a imagem é justamente essa, conforme transcrita no livro “Todos os Homens do Kremlin” de Mikail Zygar. Na primeira parte do texto, em que abordamos o livro de Zygar, comentamos os dois primeiros mandatos de Vladimir Putin, estabelecendo entre eles suas respectivas diferenças. A partir de 2008, no entanto, como primeiro-ministro, já que a legislação eleitoral impedia um terceiro mandato consecutivo, é de onde pretendemos partir até mergulharmos no isolacionismo russo, característica de seu terceiro mandato. A cena, com que abrimos essa segunda parte, além de ser real, é uma alegoria da exclusão. Mas os excluídos não são iguais, o que dá à imagem um caráter mais complicado ainda: entre os dois convidados, sentados numa mesa, longe do centro do salão, há um mundo de diferenças.

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Durante seu primeiro mandato, Putin adorava expor sua visão de mundo para os líderes ocidentais – e falava de tudo: da situação no Cáucaso até o motivo da Rússia não ser criticada por abuso aos direitos humanos, mas tratada como parceira estratégica e igual.  Falar é uma coisa, convencer é outra. E por não conseguir convencer algumas importantes lideranças (a questão do gasoduto via mar báltico, abordado na primeira parte, é um exemplo), acabou por mudar de estratégia. No segundo mandato, partiu para a ofensiva, acusando os líderes ocidentais de não serem sinceros e de não cumprirem as próprias promessas. Quando, enfim, começou seu terceiro mandato, já cansado do mundo, Putin se transformou num filósofo eslavófilo (a principal fonte de suas reflexões era o filósofo Ivan Ilin, colocando os valores básicos da sociedade russa na seguinte ordem: Deus-família-propriedade.

Jacques Rancière, no seu livro “O ódio à democracia”, relembra que na década de 80, na sociedade francesa, a escola republicana laica defendia a tese da igualdade do saber: a transmissão universal do saber e seu poder de igualdade. Sob esse aspecto, haveria entre a sociedade e a escola laica uma profunda diferença – a sociedade é vista aqui como um território de reprodução de desigualdades. O professor republicano teria uma fundamental importância no sentido de subtrair a criança da reprodução familiar de certa ordem social, compreendida sob o caráter da desigualdade. Mais tarde, essa diferença, entre sociedade e escola, se deslocaria sob o prisma da sociedade democrática e do governo pastoral: a primeira, como configuração do individualismo de massa, excluída a vida política democrática, tenderia a uma autodestruição, sob o signo do hedonismo; e contrapondo-se a isso, o governo pastoral, a transmitir os princípios do nascimento, da divisão sexual e da filiação (o pai de família submeteria os filhos ao estudo farisaico). Tanto a escola republicana quanto o governo pastoral trabalham com medidas transcendentais, subtraindo do múltiplo o uno.

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Retornando à questão russa, não é difícil visualizarmos, principalmente no terceiro mandato de Putin, a sua relação com a igreja ortodoxa, entendida como a guardiã das tradições e dos princípios morais, exatamente como o Kremlin exigia. Nesse aspecto, vale retomarmos a figura do Patriarca Cirilo (Vladimir Gundiaev), que, antes de 2008, enquanto Metropolita de Esmolensko e Caliningrado, não escondia que era de oposição à Rússia, além de liberal e progressista. Porém, a partir de 2008, como patriarca e sucessor de Aleixo II (na eleição para o patriarcado, Cirilo viria a ter o apoio da administração presidencial, mais especificamente de Surkov), muda completamente o tom de seu discurso, ajudando Putin a consolidar a sociedade e acabar com os protestos da Praça Bolotnaia.

O período de agitações, pelo qual passou Moscou, é muito parecido, principalmente em suas conseqüências, às jornadas de junho de 2013 no Brasil. Tudo começou com as eleições parlamentares de 4 de dezembro de 2011, cujos resultados deram 49% dos votos ao partido governista “Rússia Unida”. Vídeos, gravados em celular, postados na internet, mostravam, em Moscou, durante as eleições, observadores independentes sendo expulsos ou cédulas eleitorais sendo adulteradas. No dia seguinte, haveria uma grande manifestação que veio a ficar conhecida como a dos “sapatos sujos” (havia muita lama nas ruas em função das chuvas), organizada pelo movimento de oposição “Solidariedade”. Aos gritos de “Putin Ladrão”, a oposição russa finalmente dava o ar de sua graça.

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No dia 10 de dezembro de 2011, outra manifestação, esta na Praça Bolotnaia, reuniria 50 mil pessoas. O curioso dessa história são as posições divergentes do primeiro-ministro Putin e do presidente Medvedev diante daquela explosão de manifestantes. Para Alexei Navalni, líder da oposição, era um movimento contra Medvedev (e sua sombra Surkov) e contra Putin. Mas Medvedev, em 22 de dezembro de 2011, em seu discurso durante a Assembléia Geral, proporia a reintrodução das eleições para governadores e o retorno do sistema misto para a Duna (ao que tudo indica, o autor do discurso, Surkov, o mesmo que, no segundo mandato de Putin, proporia as reformas eleitorais, acenava agora na direção contrária – na primeira parte do trabalho, chegamos a comentar o método Surkov). De qualquer maneira, deve ter batido em Medvedev, diante daquela surpreendente oposição, um arrependimento por ter desistido da reeleição – em 24 de setembro de 2011, no Congresso da “Rússia Unida”, anunciou Putin como candidato à presidência nas próximas eleições, e ele próprio como primeiro-ministro.

Surkov é o estrategista mais complexo de todo o período Putin. Além de ter fundado o “Rússia Unida”, ainda no primeiro mandato de Putin, juntando dois partidos que se digladiavam, o “Unidade” e o “PTR”, criaria em 2011 o “Rússia Justa”, como uma opção de centro-esquerda, ao que Putin e Volodin responderiam com o “Frente Popular”. Mas numa entrevista, em 22 de dezembro de 2011, Surkov elogiaria claramente os manifestantes, custando-lhe a vice-chefia do gabinete presidencial.  Já com um pé na presidência, Putin o substituiu por Volodin, além de convocar Serguei Ivanov como novo chefe do gabinete presidencial.

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A contraposição de Putin em relação à Medvedev e Surkov se expressa de várias formas. Poderíamos citar a questão da Líbia e do Irã, quando Medeved se alia aos países ocidentais contra o desejo de seu primeiro-ministro. Mas no seu pronunciamento anual de 15 de dezembro de 2011, Putin vocifera – “que a classe dita criativa por Sarkov, e que constitui a maior parte do movimento de protesto, vá pro inferno!”. É que esses manifestantes, jovens, conectados às redes, intelectuais liberais, eram pessoas de Medvedev, não dele. A partir daí, Putin parou de tentar encontrar algo em comum com os intelectuais. E concluiu que a classe média, a quem ele havia dado estabilidade e prosperidade, era uma classe de “traíras”. Eles não gostavam do que Putin fizera e não estavam satisfeitos por terem desfrutado da década mais próspera de toda a História da Rússia. A classe média, suposto alicerce do apoio de Putin, como imaginava Surkov, não cumprira sua parte no acordo.  Ela e Surkov pagariam por suas deslealdades.

Além de mais duas manifestações, uma, no dia 24 de dezembro de 2011, com 100 mil pessoas na Avenida Sakharov em Moscou, e outra, em 4 de fevereiro de 2012, na Praça Bolotnaia, à qual foi respondida por Volodin numa espécie de anti-protesto reunindo 100 mil pessoas no Monte Poklonnaia, o que de fato sobreveio foi a vitória de Putin com 64% dos votos. Em 6 de maio de 2012, um dia antes da posse, houve mais uma manifestação na Praça Bolotnaia, primeiro grande confronto entre os manifestantes e a lei, sobre o qual o Comitê de Investigação iria produzir seus efeitos. No dia da posse, a TV Rain seria a única a dividir a tela em duas: metade mostrava a posse, a outra metade a violência da polícia, no Café Jean-Jacques, contra os manifestantes. Essa imagem se tornaria o símbolo do novo mandato de Putin.

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No segundo semestre de 2012, haveria várias prisões, processos judiciais, sentenças de prisão e três processos criminais contra o líder da oposição Alexei Navalni - além da demissão de Surkov e do silêncio de Medvedev. Para Navalni, o objetivo de Putin nem era assustar a oposição, mas dar um golpe nos liberais que estavam ao seu redor. Não voltasse ao Kremlin, seria caçado por membros de sua própria equipe. Talvez não haja expressão maior de isolacionismo do que esta.

Em 21 de fevereiro de 2012, duas semanas antes das eleições, um grupo de mulheres, a banda Pussy Riot, usando balaclavas coloridas, entraria na Catedral de Cristo Salvador para gravar um vídeo de sua nova música, “Oração Punk”. Com versos como “Mãe de Deus, livrai-nos de Putin”, “O Patriarca Gundi (Gundiaev, que é o Patriarca Cirilo) acredita em Putin. Melhor seria acreditar em Deus, sua peste”, a dita oração da banda, que usa a performance como ato político, levaria suas integrantes à prisão. Três delas, condenadas a dois anos (seriam presas nos dias 3 e 4 de março de 2012, isto é, na véspera das eleições presidenciais), receberiam anistia em dezembro de 2013.

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O autor sugere o uso que o governo russo viria a fazer no sentido de capitalizar os protestos contra a igreja como uma forma de dividir o movimento da oposição – dividir para enfraquecer. Não é à toa a ampla cobertura, não só da imprensa liberal como também da estatal, sobre a manipulação de uma imagem do Patriarca Cirilo, feita pela igreja, para apagar a imagem do relógio Breguet usado por ele (o reflexo do relógio, no entanto, aparecia na mesa, denunciando a trama). Parecia uma campanha travada contra o patriarca por vários membros da própria elite governamental.

Mas a influência do Patriarca no governo Putin era nítida em vários aspectos. Em 2015, o Ministro da Cultura, a pedido de Cirilo, demitiria o diretor do Teatro de Ópera e Balé de Novosibirsk por encenar uma versão profana de Tännhauser de Wagner. Em seu lugar, a vaga seria ocupada pelo candidato preferido pelo Patriarca.

Um dos alvos preferidos dos valores tradicionais e populares da sociedade russa, valores esses estimulados pelo novo estrategista de Putin, Volodin, foi a homossexualidade, que, em 2013, se tornou uma questão importante no país. Tratava-se de uma correspondência direta com o papel do fecho espiritual desempenhado pela Igreja. Em meados dos anos 2000, várias regiões russas começaram a adotar leis proibindo a propaganda gay. Em 2012, foi a vez de São Petersburgo, que se tornou a capital da Rússia Ortodoxa ao adotar a lei antigay, que em janeiro de 2013 tornou-se lei federal.

Um documentário em 2008, do Arquimandrista Thikon Shevkunov, confessor de Putin, chamado “A queda de um Império: a lição bizantina”, vai desenvolver a ideia de que Bizâncio foi solapado por simpatizantes ocidentais, atraídos pelo vício, pelo consumismo e pelo individualismo. Mas para Pugachev, um empresário e amigo de longa data de Putin, o fascínio do presidente russo pela Igreja era bem racional – a Ortodoxia para Putin era a pura encarnação da ideia nacional, mas com uma capacidade muito maior de unificar o povo do que qualquer partido político.

Nas eleições de 2018, tanto o partido governista “Rússia Unida” confirmou sua preponderância no parlamento, quanto Vladimir Putin renovou seu mandato presidencial. Retomando a cena com a qual abrimos este texto, Dilma e Putin estão em silêncio, em meio a tantas iguarias, numa mesa ao canto do grande salão. Nem ele sabe português, nem ela russo.

 

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