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Boaventura de Sousa Santos

Sociólogo português

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Os Fantasmas da Alemanha

"A Alemanha é há mais de um século um problema para a Europa. Os maiores ataques à paz da Europa vieram da Alemanha", diz Boaventura de Sousa Santos

Uma bandeira alemã tremula no prédio do Reichstag, sede da câmara baixa do parlamento alemão (Foto: REUTERS)
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Um pouco de história bastará para se concluir que a Alemanha é há mais de um século um problema para a Europa. Os maiores ataques à paz da Europa vieram da Alemanha. Não esqueçamos que a Otan foi criada para defender o “mundo livre” tanto da União Soviética, como da agressividade autoritária da Alemanha. Nessa altura, a Alemanha estava derrotada e dividida, mas o perigo que esse status quo se viesse a alterar era latente. A criação da União Europeia foi dominada pela mesma desconfiança em relação à Alemanha. Os dirigentes alemães do pós-guerra tudo fizeram para dar credibilidade à ideia da Alemanha como um país pacífico e a UE se beneficiou muito da reconstrução econômica da Alemanha, transformada em relativamente pouco tempo no motor econômico da Europa. Além da sua prosperidade econômica, a Alemanha afirmou-se como um país ético. A política inicial de Angela Merkel sobre a onda de imigração foi uma lição de responsabilidade histórica memorável. Tudo isso ocorreu sem nos darmos conta de que dois fantasmas assombram a Alemanha.

O primeiro fantasma é a Rússia e a derrota infligida pela Rússia (então União Soviética) à Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Com a Ostpolitik de Willy Brandt, esse fantasma parecia neutralizado para sempre, mas bastou a guerra da Ucrânia para se verificar que assim não era. Os objetivos geoestratégicos dos EUA, que incluem a neutralização da Rússia para atingir a China, encontraram na Alemanha a adesão mais entusiástica ou mais subserviente. O genuíno desejo de paz desapareceu rapidamente e a Alemanha começou a preparar-se para uma guerra que vai muito além do fornecimento de armas à Ucrânia. A recente revelação dos planos militares alemães para a Crimeia são sinais disso mesmo e o ministro da Defesa Boris Pistorius disse há pouco que “a UE deve estar preparada para guerra antes do fim da década”. A Alemanha convenceu-se de que estava bem acompanhada, tendo como aliada uma das potências que a derrotou na Segunda Guerra Mundial. A vitória seria certa e por isso os Acordos de Minsk 1 e 2 foram fogo de vista para dar tempo à Ucrânia para se preparar para a guerra. Afinal, a previsão falhou e, pese embora toda a propaganda em contrário, a Rússia está ganhando a guerra e as condições que no pós-guerra garantiram a prosperidade da Alemanha levarão muito tempo a reconstruir, se é que isso ocorrerá. Os EUA sairão da Ucrânia quando lhes convier, tal como fizeram no Afeganistão, no Iraque, na Síria e na Líbia, mas a Alemanha e a Europa ficarão reféns das consequências dessa saída. A Alemanha pensou que finalmente estava do lado certo da história e ainda não se apercebeu de que, para o bem e para o mal, a história rumou de novo ao Oriente, onde aliás esteve mais tempo na longa duração da história. A Alemanha e a própria Europa só acordarão deste desvario quando tiverem que explicar aos seus cidadãos que defender militarmente Taiwan faz parte da segurança europeia.

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O segundo fantasma é o Holocausto. O que se passa na Alemanha depois de 7 de Outubro é algo muito estranho. Compreende-se que a culpa histórica pelo horrendo crime que cometeu há apenas noventa anos a obrigue a inequivocamente afirmar o direito de Israel de se defender, e até a afirmar que a segurança de Israel é a raison d’être da Alemanha. Afinal, a existência de Israel é o resultado desse crime. O que não se compreende é o extremismo com que o faz. Qualquer crítica a Israel é considerada antissemitismo, o chanceler alemão repete à exaustão, contra toda a violência diariamente televisionada, que o comportamento de Israel se pauta “pelos princípios mais humanitários”, qualquer protesto contra o genocídio (palavra proscrita) de Gaza é proibido, os próprios judeus alemães que se manifestam contra a política de Israel são censurados, os imigrantes, muito deles originários da região desestabilizada em boa parte devido à política agressiva de ocupação territorial por parte de Israel em contravenção com as resoluções da ONU, correm o risco de ser deportados se se manifestarem a favor da Palestina, visitantes estrangeiros que participem em colóquios onde o problema da Palestina seja abordado com alguma imparcialidade são proibidos de entrar ou banidos.

A luta contra o antissemitismo é mais do que legítima e necessária, mas defendê-la desta forma é alimentar o autoritarismo, a xenofobia e a islamofobia e, em última instância, o antissemitismo. É pactuar com o senso comum do Estado de Israel de que os palestinos são seres inferiores, “animais humanos” que não merecem outra coisa senão extermínio, limpeza étnica. É passar um cheque em branco a um primeiro-ministro altamente impopular em Israel que, em face dos crimes de que está acusado, vê na continuidade e no alargamento da guerra a condição da sua sobrevivência.

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A cumplicidade com o genocídio de Gaza está a ser levada a um extremo tal que nos faz observar, noventa anos depois, que os alemães estão de novo a normalizar um crime horrendo contra seres que reputam inferiores, crime desta vez não cometido por eles, mas pelas suas ex-vítimas de que se consideram incondicionais aliados. A perplexidade é tal que o extremismo alemão nos leva a perguntar se o apoio ao genocídio de Gaza se explica menos pelo desejo de expiar um crime horrendo do que por uma insidiosa e inconsciente vontade de o justificar. O inconsciente coletivo tem razões que a razão desconhece.

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