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Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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Os ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos

De alguma forma (a poesia deve saber como), a bolha abarcara em seu ventre uma borboleta policromática

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Ilustração de Luanna Falcão (siga aqui seu Instagram)

Há pouco, enquanto eu subia a avenida da Liberdade rumo ao café Vianna (onde estou escrevendo agora, no centro de Braga, em Portugal), vi uma criança extasiada diante de uma grande bolha de sabão. 

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De alguma forma (a poesia deve saber como), a bolha abarcara em seu ventre uma borboleta policromática. Os olhos esbugalhados do menino (5 ou 6 anos?) acompanham, sem piscar, o voo estático da borboleta encapsulada pela bolha, como se ela fosse um beija-flor aspergindo o pólen do arco-íris com suas asas. 

Súbito, a bolha de sabão estoura, e a borboleta, insciente sobre a lâmpada mágica que a envolvera, se vê livre, ainda uma vez, para ser devorada por seus predadores. 

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Algo, no entanto, estourara, irrevogavelmente, dentro de Ricardinho (chamemos o menino assim).

Quando entreouço Ricardinho, com os olhos marejados, perguntar ao pai se a borboleta também estourara, descubro, na bolha de sabão, em sua existência tênue como o lusco-fusco do vagalume, a suma fragilidade da vida.

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Pergunta: Quanto tempo meus pais trabalharam para que a casa em que morávamos pudesse ser nossa? 

Resposta: Anos e anos a fio.

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Súbito, o vento alheio e insensível estoura a bolha de sabão dos meus pais (e da minha infância), e a borboleta se vê órfã. 

A caminho da vila medieval de Óbidos, a cerca de duas horas da cidade alentejana de Évora, cruzo a linha do trem para comprar água na lanchonete da estação. Pouco antes de voltar à plataforma, ouço o aviso insistente (din-don, din-don, din-don!) de que um trem (não o meu) se aproxima. Cruzo os trilhos e, são e salvo, sinto uma vertigem agourenta escalar cada uma de minhas vértebras até se aferrar ao rochedo de minha nuca e me sussurrar: 

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- E se não tivesse dado tempo de você cruzar os trilhos? E se você tivesse tropeçado? Alguém se lembraria de pôr fermento no pão dos seus sonhos? Mais uma bolha de sabão teria estourado… 

Em Évora, cidade pela qual eu já passara (cidade que já me abandonara), visitei a capela dos ossos, que fica no coração do mosteiro franciscano. 

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Seguidores dos votos de pobreza e humildade de São Francisco de Assis, os monges franciscanos mantinham um convento bastante austero, a fim de que as distrações e o apego mundanos não drenassem sua sede do absoluto. Ocorre que, quando passavam por Évora, o rei português e sua camarilha se hospedavam no convento, e a austeridade franciscana feria o panteísmo aristocrático que ansiava por cetros e plumas, ouro e esmeraldas. 

Foi assim que, contra a humildade franciscana, o mosteiro passou a ser ornado com os mais requintados artefatos reais (a César o que é de César, a Deus o que é de Deus). 

Indômitos como Jesus Cristo diante dos vendilhões que achincalhavam o templo sagrado, os franciscanos tiveram uma ideia (a bem dizer, a ideia das ideias) para pregar aos ouvidos moucos do rei que a vida é, em essência, frágil como uma bolha de sabão. 

Ossos dos clérigos, dos nobres e da anônima população local foram recolhidos para erigir as paredes e pilastras da mais nova capela franciscana. Foi assim que o crânio do rei se viu cercado não por seu séquito de bajuladores ou por poderosas tropas inimigas, mas por meras tíbias (ou seriam perônios?) de seus mais humildes súditos. A grandiloquência em forma de crânio de Hamlet, filho do rei da Dinamarca - “Ser ou não ser? Eis a questão!” -, se vê revertida na admoestação dos franciscanos que desponta como uma lápide logo à entrada da capela: “Os ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos”. 

Ser e não ser, eis a resposta. 

O que a vida não soube igualar, a morte - isto é, a fragilidade da vida - logou colocar lado a lado. A morte, afinal, traz a democracia para nobres e plebeus. 

Quando perdeu sua derradeira batalha para as tropas do imperador romano Otávio Augusto, o generalíssimo dissidente Marco Antônio imaginou que o sol não voltaria a amanhecer. Mas eis que, a bordo de uma reles jangada (o último porto de sua derrota irreversível), o generalíssimo romano até então invicto, namorado de ninguém mais que a imperatriz egípcia Cleópatra, é banhado pelos raios da aurora, inscientes sobre seu infortúnio. 

- Quer dizer, então, que há vida após a morte ainda em vida?! - pergunta e exclama um Marco Antônio, que parece ter reconhecido o próprio crânio (sua própria fragilidade de bolha de sabão) na capela dos ossos franciscana.

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