Os Protestos da “Geração Z” são progressivos ou reacionários?
O sistema capitalista não tem nada a oferecer às novas gerações,
Uma onda de revoltas está se espalhando por vários países do Sul Global. Os protagonistas são jovens de uma geração que nasceu conectada em um mundo digital — a narrativa ocidental os classifica como Geração Z. Essas mobilizações se organizam por meio de plataformas de redes sociais. As principais reivindicações são demandas justas, envolvendo temas variados que se chocam com governos de plantão, gerando embates violentos contra forças policiais. Em quase todos esses protestos, a bandeira do pirata de chapéu de palha está presente — um símbolo do mundo pop contemporâneo, o anime One Piece — apropriado por uma juventude disposta a lutar por seus sonhos e melhores condições de vida.
Para quem acompanhou as mobilizações de junho de 2013 no Brasil, manifestações com essas características não são novidade. Jovens com demandas justas organizam mobilizações utilizando plataformas digitais e símbolos do mundo pop como alegorias. Nesse caso brasileiro, quem não se lembra da popularidade das máscaras do filme V de Vingança, presentes em várias manifestações? Acontece que os desdobramentos no Brasil não acabaram bem. A disputa pela direção e pela pauta da revolta dos 20 centavos (a luta contra o aumento da passagem nos transportes e pelo passe livre) foi gradualmente capturada e transfigurada pela extrema direita. Os erros das forças de esquerda — tanto de quem estava no governo quanto nas manifestações de rua — aliados à manipulação das plataformas digitais e de veículos da mídia tradicional, levaram toda a energia das ruas ao comando de organizações radicais de direita, que se estruturaram surfando na onda da tensão social do momento. O resultado foi a queda do governo Dilma e, posteriormente, a ascensão de Bolsonaro ao poder. Uma contrarrevolta de extrema direita logrou uma vitória que custa muito caro até hoje ao Brasil.
Por essas e outras, a confusão em entender e caracterizar as manifestações que surgem neste momento divide opiniões e nos obriga a tratar do tema com responsabilidade, profundidade e máxima dialética, pois essa onda já chegou à América do Sul e pode, inclusive, aparecer no Brasil. Saber lidar com as disputas em relação a essas mobilizações será determinante: um erro à esquerda ou à direita pode ser fatal e decidir o futuro do país. A mobilização da Geração Z é mais um episódio da luta de classes, mas é preciso reconhecer que as condições da arena política no século XXI são mais complexas. O ciberespaço digital não é neutro: em sua maioria, está sob o controle de forças reacionárias, opera com interesses geopolíticos e tem potencial para instrumentalizar e manipular mobilizações de caráter justo para satisfazer interesses hegemônicos.
A simbologia One Piece
One Piece é uma série de mangá japonesa escrita e ilustrada por Eiichiro Oda desde o final da década de 1990. É a obra desse estilo mais vendida do mundo, com mais de 500 milhões de cópias, além de uma versão anime e uma série recente na Netflix, acompanhada por milhões de jovens globalmente. O enredo trata de um grupo de amigos piratas liderados por um jovem que usa um chapéu de palha, chamado Luffy. Em suas aventuras fantásticas, o objetivo estratégico é encontrar o maior tesouro do mundo para se tornar o rei dos piratas. Durante essa caminhada, há encontros com povos de várias regiões controladas por um governo mundial, nos quais Luffy e seu bando acabam se envolvendo em batalhas espetaculares que têm em seu contexto temas sociais e políticos. Inevitavelmente, esse famoso mangá inspira a juventude pelo carisma, pelo roteiro envolvente e pela justeza de vários temas — como a luta contra injustiças sociais, o antirracismo, o anti-imperialismo e a liberdade. Também há episódios contraditórios que podem ser classificados como conservadores ou reacionários, o que abre um enorme debate nas redes sociais sobre qual seria a ideologia dessa obra. Luffy, o personagem principal, tem como característica central a luta pela liberdade, mas em um sentido anárquico e sem um programa muito nítido. Em tempos de anarcocapitalismo, tudo fica difuso quanto ao sentido ideológico real desse anime/mangá. Mas talvez essa ambiguidade seja parte do sucesso de seu alcance e contribua para que essa simbologia possa transitar tanto no espectro da direita quanto da esquerda.
Seja como for, a simbologia desse mangá japonês — especialmente a bandeira do pirata de chapéu de palha — está presente nessas recentes manifestações que têm como protagonistas jovens caracterizados pela mídia em geral como a Geração Z. Essa juventude se identifica com as aventuras dos personagens e, diante de problemas concretos da vida real, acaba sendo instigada a intervir, se organizar e participar coletivamente de lutas em solidariedade a uma reivindicação unitária. A ficção molda o imaginário de uma geração de jovens que abraça uma causa em fraternidade com o próximo, para combater um inimigo comum — sem uma noção mais elaborada sobre o que colocar no lugar, em termos programáticos, como alternativa de poder.
Quais países foram atingidos pela onda de protestos identificados com a Geração Z?
Neste ano de 2025, no caso específico das manifestações iniciadas e lideradas por jovens da Geração Z, entre os meses de julho e outubro, essa onda de protestos atingiu o Quênia, as Filipinas, a Indonésia, o Nepal, o Peru e Madagascar. Atravessando, portanto, a Ásia, a África e a América do Sul, vejamos um breve resumo de cada caso até agora:
Quênia — Em junho, a juventude foi às ruas descontente com as políticas do governo que visavam ao aumento de impostos, diante de uma situação econômica precária que não dá perspectiva de futuro para uma sociedade cuja média de idade é muito jovem. A capital, Nairóbi, foi palco de enfrentamentos violentos com a polícia; oito manifestantes foram mortos e um perdeu os dedos da mão com uma bomba de gás lacrimogêneo. Embora o governo não tenha caído, o desgaste das autoridades políticas é imenso, e um desfecho negociado segue em curso em relação às reivindicações dos manifestantes.
Filipinas — Entre julho e setembro, milhares de manifestantes tomaram as ruas de Manila em protestos contra supostos casos de corrupção em obras para prevenir enchentes. No dia 21 de setembro, ocorreu o ápice das mobilizações com a “marcha do trilhão de pesos”, realizada em várias cidades do país, que acabou incluindo a participação de grupos religiosos, sindicatos e organizações estudantis. Não houve a remoção do governo, mas o presidente Ferdinand Marcos Jr. foi obrigado a ordenar investigações sobre o caso, e a situação segue tensa no país.
Indonésia — Em agosto, os protestos foram desencadeados pela falta de serviços básicos, como água e eletricidade, e pela revolta contra privilégios excessivos de congressistas do país. O estopim foi o atropelamento de um entregador por um carro da polícia. O movimento foi recebido com forte repressão policial, resultando em dez mortes e muitos feridos.
Nepal — Entre os dias 8 e 13 de setembro, os protestos nas ruas da capital, Katmandu, chamaram a atenção do mundo pelo grau de violência no enfrentamento com a polícia e pelo incêndio de centenas de prédios públicos, resultando na morte de 70 pessoas. O primeiro-ministro renunciou, e a esposa de outro ex-primeiro-ministro foi queimada viva em sua própria casa. O estopim foi a medida do governo de suspender o funcionamento de várias plataformas de redes sociais no país. A juventude, já descontente com a desigualdade social, o desemprego e a ostentação dos filhos de autoridades nepalesas (os chamados nepo babies), foi às ruas em fúria e conseguiu impor uma mudança de governo. O primeiro-ministro Khadga Prasad Oli renunciou, e a nova primeira-ministra, Sushila Karki (ex-presidente da Suprema Corte do país), foi escolhida pela influência de uma votação informal realizada pelos jovens na plataforma Discord. O Parlamento foi dissolvido, e novas eleições serão convocadas para 2026.
Madagascar — Os protestos começaram no dia 25 de setembro, impulsionados pelos cortes de água e energia, especialmente na capital, Antananarivo. As mobilizações ganharam força sob a liderança de jovens inspirados nos protestos do Nepal. O movimento autodenominado “Gen Z Madagascar” atraiu apoio pelas redes sociais, e a violência se intensificou, com pelo menos 22 mortos. Os militares se recusaram a seguir as ordens do governo, aliaram-se aos manifestantes e assumiram o controle da capital. Em 14 de outubro, os militares tomaram o poder no país, após o presidente Andry Rajoelina fugir em uma aeronave francesa.
Marrocos — Ao final de setembro, jovens organizados no movimento chamado “GenZ 212”, que surgiu na plataforma Discord, iniciaram protestos contra os gastos bilionários do governo na preparação da Copa do Mundo de Futebol de 2030 — algo que lembra muito as manifestações no Brasil que se iniciaram em 2013, às vésperas da Copa de 2014. A morte de várias mulheres grávidas em hospitais mal equipados foi o catalisador do início desses protestos, e a resposta do Estado foi uma forte repressão que resultou em três mortos, centenas de feridos e prisões. A juventude marroquina deseja a melhoria dos serviços públicos, o combate à corrupção e mais empregos, e exige que o rei Mohammed VI demita o governo. Em 10 de outubro, o rei, em discurso ao Parlamento, pediu reformas para criação de empregos e melhoria dos serviços públicos. As mobilizações foram suspensas, mas novos atos estão marcados a partir do dia 18 de outubro.
Peru — As mobilizações da juventude peruana começaram em setembro, com o objetivo de derrubar a reforma da previdência que obriga jovens de 18 anos a contribuírem para um fundo de pensão privado. A frustração com a economia precária, a baixa remuneração e a aposentadoria incerta levou os jovens a usarem as redes sociais para mobilizar e articular manifestações que começaram em Lima. A repressão policial aumentou a indignação, e o movimento se expandiu para questões mais amplas, como a corrupção sistêmica, a impunidade e a alta criminalidade. Outros setores da sociedade, como sindicatos e movimentos sociais, passaram a apoiar e participar dos protestos. No dia 10 de outubro, a impopular presidenta Dina Boluarte sofreu um processo de impeachment. Apesar da queda do governo, os protestos continuaram, com a exigência da renúncia do novo presidente interino, José Jeri, e do Congresso, ambos considerados parte de um sistema político falido. Em 15 de outubro, o rapper e ativista Eduardo Mauricio Ruiz foi morto a tiros durante um confronto com a polícia, gerando ainda mais revolta. O futuro do atual governo no Peru é totalmente incerto.
A “revolta dos novinhos” está em disputa
A competição geoestratégica e as disputas por relações diplomáticas privilegiadas, pontos geográficos de estrangulamento comercial, recursos naturais e mercados lucrativos têm transformado vários países do Sul Global em áreas críticas de influência. Inevitavelmente, o acirramento da luta política em vários desses países intensifica a participação, muitas vezes velada ou implícita, de atores externos em apoio a uma fração ou outra, que por sua vez acaba se alinhando com determinada força estrangeira por motivos ideológicos ou pragmáticos, para se fortalecer na disputa interna de seu próprio país.
Essa globalização das disputas políticas deixa qualquer mobilização social em países dependentes de tecnologia digital de última geração em situação muito vulnerável. Sem o controle e a regulamentação soberana da infraestrutura digital existente no país, as plataformas digitais ficam livres para intervir em processos de tensão social de acordo com seus interesses. E, se esses países possuem recursos naturais estratégicos ou qualquer outro elemento econômico crítico que esteja na lista de desejos do imperialismo ocidental, não há dúvidas de que os sistemas digitais das big techs americanas serão programados para intervir nos conflitos internos de qualquer país, a fim de beneficiar aliados e desgastar possíveis adversários. Em alguns casos, podem ter sucesso; em outros, não. Mas o que podemos ter certeza é que, diante de um conflito social que se desdobra em disputa pelo poder, as embaixadas de potências estrangeiras sempre terão um lado e vão atuar com os recursos disponíveis ao seu alcance, dentro ou fora do país em questão.
Vamos lembrar que as principais articulações geopolíticas que tem contrariado os interesses ocidentais estão se dando em países do sul global, que querem construir um caminho mais independente e buscam parcerias e cooperação entre si. Além de que, são esses países detentores das maiores reservas de minerais, terras raras e outros recursos naturais, que são absolutamente determinantes para o modelo de negócios americano que é liderado pelas empresas de alta tecnologia de objetivo civil e militar.
Isso significa que os EUA e as grandes BIGTECHS americanas tem muitos interesses estratégicos em desestabilizar países do sul global, surfando em manifestações legítimas para disputar a sua direção, o seu programa e o seu desfecho. Não é por acaso que o governo Trump está aplicando uma política para ter o controle total sobre o Tiktok em seu país, além de estar trabalhando em plena parceria estratégica com a Meta, Google, Amazon e outras... Nunca podemos esquecer das palavras de Elon Musk, o dono do X: “ Vamos dar golpes onde quisermos, lidem com isso!”
Luta de classes e o papel das plataformas digitais no Brasil
O fato de as mobilizações sociais articuladas pela juventude estudantil e trabalhadora, através de plataformas digitais, estarem vulneráveis à influência dos interesses hegemônicos e das disputas geopolíticas não deslegitima as manifestações da Geração Z. A luta de classes precisa do ímpeto e da disposição das gerações mais jovens, que, por sua vez, por meio da experiência da organização coletiva, podem fazer avançar a história de um país. Isso significa dizer que as manifestações do que está se convencionando chamar de Geração Z não são necessariamente reacionárias; são, na maioria dos exemplos, progressistas.
Mas não há dúvidas de que é absolutamente necessário que os países do Sul Global construam sua independência política e econômica, incluindo a criação de infraestruturas digitais próprias, soberanas, regulamentadas e alternativas às existentes hoje. Enquanto um punhado de países mantiver o monopólio da comunicação via redes sociais, todo o mundo estará vulnerável à interferência de forças estrangeiras, que têm atuado pelas redes e por ações de serviços secretos diretamente nas manifestações.
Como já descrevemos, o Brasil já teve uma experiência com manifestações articuladas via redes sociais em 2013, e nada impede que essa onda atual possa contagiar a juventude brasileira em 2025 ou 2026.
Alguns meses atrás, vimos fenômenos e participamos de disputas políticas que envolveram as redes sociais no Brasil e que engajaram a opinião pública. A denúncia feita pelo influenciador Felca sobre o tema da “adultização das crianças” gerou forte impacto nas autoridades públicas, que acabaram reagindo com a elaboração de leis que regulamentam as redes sociais sobre o tema. A mobilização pela palavra de ordem “sem anistia”, a isenção do imposto de renda, a indignação em relação à PEC da bandidagem e a figura do “Hugo não se importa” foram mobilizações da sociedade que conseguiram emparedar o Congresso Nacional, desdobrando-se em mobilizações de rua convocadas por artistas, demonstrando que o Brasil não ficou totalmente de fora dessa vaga de mobilização mundial que se desenvolve no Sul Global.
Embora o quadro atual do país revele estabilidade econômica, programas sociais consistentes, desemprego baixo e inflação relativamente controlada, tudo pode mudar rapidamente pela volatilidade da situação econômica mundial e pela influência de atores externos. Um erro do governo em lidar com a situação, e a incapacidade dos movimentos sociais em dialogar com essa juventude, pode desencadear protestos com potencial de serem novamente influenciados pela extrema direita, que ainda possui uma imensa base social no país. A soberania do Brasil passa por uma relação cada vez mais independente em relação ao imperialismo americano, pelo fortalecimento de sua relação com o BRICS, pela diminuição da assimetria de suas relações econômicas com outros países — inclusive com a China —, exigindo transferência de tecnologia para o desenvolvimento de nossa indústria de ponta. Além disso, a regulamentação das redes sociais estrangeiras em nosso território é muito importante, mas ainda é pouco. É urgente construir nossa própria infraestrutura digital nacional como um plano estratégico de Estado!
Essa vaga de mobilizações de características comuns, aberta em junho de 2025 e liderada pela Geração Z, especialmente em países do Sul Global, ainda está em curso, e provavelmente veremos ainda mais protestos. É preciso acompanhar para saber qual será o desfecho da luta de classes em cada um desses países. Há vários cenários possíveis, pois as forças políticas internas e externas relacionadas a esses protestos estão em movimento e em choque. O que vai prevalecer ainda é imprevisível. Tudo pode evoluir para um cenário progressista de conquistas sociais, como também as manifestações podem ser capturadas por projetos que perpetuam a condição de dependência e desigualdade social desses países. A capacidade de dialogar com a juventude que não quer ser a geração do fim do mundo é uma tarefa fundamental dos movimentos sociais, das forças de esquerda e progressistas, estejam ou não no governo. O sistema capitalista não tem nada a oferecer às novas gerações, e mais do que nunca é necessário apresentar uma alternativa de sociedade que possa distribuir a riqueza, compartilhar os sonhos e socializar o futuro.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

