Os sussurros de Cassandra
A democracia brasileira segue sitiada por falsos mitos e novos cavalos de Troia que conspiram contra a vontade popular
Cassandra, herdeira da realeza de Troia (Príamo e Hécuba), é uma referência eloquente na lendária guerra entre gregos e troianos. A princesa profetizou a tragédia que se abateria sobre a cidade, caso os troianos levassem o famoso cavalo de madeira para dentro das muralhas da cidadela, e recomendou a destruição daquilo que era visto como um “presente” de grego. Apesar do presságio ruim, prevaleceu a incredulidade dos troianos diante dos alertas estridentes de perigo.
O deus Apolo, apaixonado por Cassandra, concedeu-lhe o dom da vidência em troca do seu amor. Ao consentir, a princesa troiana recebeu a faculdade premonitória, mas rejeitou Apolo. Como castigo, foi condenada a ser desprezada em seus vaticínios, perdendo a credibilidade. Apolo, vingativo e dissimulado como todos do Olimpo, retirou-lhe o dom da persuasão, fazendo com que ninguém acreditasse nas profecias da sacerdotisa. Cassandra é, portanto, pioneira e vítima ancestral no debate sobre a pós-verdade.
A vidência sobre o presente ardiloso dos gregos estava correta. Troia, até então inexpugnável, após uma década de cerco e de batalhas sangrentas, foi arruinada por um astuto estratagema de guerra concebido por Ulisses. Visto pelos troianos como um símbolo da vitória, após a falsa rendição dos gregos, o cavalo de madeira foi conduzido para dentro das intransponíveis muralhas da cidade. Em seu interior estava o inimigo traiçoeiro, à espreita para dar o bote fatal.
Sob o silêncio das trevas e a sonolência dos troianos, soldados de Esparta saíram do cavalo, dominaram as sentinelas e iniciaram a invasão que levou Troia à ruína. Os bravos troianos foram massacrados, a cidadela destruída e mulheres e crianças escravizadas. A história do conflito e o traiçoeiro cavalo de madeira foi narrada na Ilíada e na Odisseia de Homero, que relatam a ocupação da fortaleza e o tortuoso regresso de Ulisses à ilha de Ítaca.
A odisseia do retorno de Lula ao comando da Acrópole democrática foi dolosamente acidentada. As armadilhas demoníacas não foram maquinadas por divindades etéreas, mas por mortais corrompidos pela ganância, que estavam alojados no submundo da Lava Jato, um presente de grego judicialmente fraudado. Fruto da usurpação e de transgressões sequenciadas, ciclopes togados e Polifemos cegos pelo poder e dinheiro comportaram-se como semideuses, profanaram as leis para entronizar um sátiro mefistofélico, cruel e ignorante. Desmascarado, o mito eviscerado encara uma maratona olímpica de processos que lhe abriram as crepitantes portas do inferno. O falso mito, manufaturado a partir do ódio e da mentira, passou a ser idolatrado por legiões de facínoras, criminosos, degenerados, ladrões, golpistas, assassinos, fascistas, vis e infames de toda ordem.
Em 2022, o eleitor brasileiro repeliu a Caixa de Pandora e as infinitas maldições da era Bolsonaro. Uma vitória titânica para a continuidade democrática. A derrota nos condenaria às profundezas de uma tirania obscurantista prolongada. Foi a batalha épica da civilidade contra a barbárie, da luz contra as trevas, do conhecimento contra a ignorância, da ciência contra a crença, da verdade contra a mentira, da tolerância contra o ódio, da vida contra a morte, da modernidade contra o retrocesso, da integração contra o esfarelamento, da paz contra a beligerância e da união contra a discórdia. Em última instância, o triunfo da democracia contra a tirania. Opções simples que separam o bem do mal e distanciam o monte Olimpo das agruras do mundo inferior. Atracamos na Ítaca democrática, desviando de feitiçarias, armadilhas e cantos de sereia. Entretanto, os sussurros de Cassandra e a captura de Troia ecoam como oráculos estridentes.
Entre nós, o cavalo de Troia alberga mirmidões traiçoeiros e atende pelo nome de centrão. No interior desta legião insaciável escondem-se muitos mitos dissimulados, cujos calcanhares — candidatos a tornozeleiras — são mais vulneráveis do que Aquiles, o flagelo de Troia. A capitulação após a derrota eleitoral foi um estratagema para tomar de assalto a cidadela, com um anômalo semipresidencialismo de fato, não de direito. Um cavalo de Troia repleto de inimigos insidiosos. Eles foram levados para dentro das muralhas do governo, sabotando-o por dentro, traindo a hospitalidade. No passado — alguns ainda hoje — marcharam contra a democracia. A má reputação é acompanhada pelos exercícios inúteis em busca da impunidade. O propósito é se eternizar no poder como deuses, saquear o orçamento, eclipsar a transparência, tornando-o tão secreto quanto as entranhas do cavalo grego.
Um dos demiurgos desse exército pantagruélico comandou a Câmara dos Deputados. Como se fora um dos deuses, tenta se metamorfosear em democrata para saciar suas ambições de mortal e se esquivar das flechas incandescentes da Justiça. Quando era reverenciado pela legião crepuscular do bolsonarismo, sepultou todos os pedidos de impeachment. Sentindo-se hercúleo, pautou o voto impresso no plenário, mesmo depois de ele ter sido derrotado na comissão especial. Uma ressurreição reservada às divindades. O voto impresso foi a lira que afinou o cântico golpista entoado pelo rebanho de Minotauros nos labirintos da ilegalidade.
O mito é a negação da ciência e, por isso, também ameaçou com CPI e votar uma lei enterrando a ciência da estatística e criminalizando os institutos de pesquisas, diretores e outros profissionais. Os números de então não traziam bons presságios. "Têm projetos que falam em prisão. Nós temos que ver a responsabilidade objetiva de quem seria, se do dono da empresa, do estatístico, do matemático. Enfim, essa discussão nós vamos fazer com muita tranquilidade", rosnou, colérico, Arthur Lira em outubro de 2022. Os jornais apontaram a digital dele na tentativa de criminalizar o aborto, equiparando-o ao homicídio nas gestações acima de 22 semanas, o chamado PL do estupro. Recuou suas fileiras nas duas batalhas.
Embriagado pela vaidade dionisíaca do poder eterno, professou orgulhoso sua admiração ao falso mito, em agosto de 2022. Afirmou que ninguém representava mais Jair Bolsonaro no reino das Alagoas do que ele: “Porque eu roo o osso junto com ele lá. Ninguém vai roubar isso. Ninguém vai se apropriar disso”, disse Arthur Lira, recorrendo a metáforas rudimentares e usando verbos exóticos para expressar sua devoção àquele em proveito de quem a “rataria” da estrebaria militar conspirava na caserna as piores patifarias para carcomer a democracia. “Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há de zombar de nós essa tua loucura?”, indignou-se na Antiguidade o filósofo romano Cícero contra o famoso conspirador Lúcio Sérgio Catilina. Até quando, Catilira?
Ninguém, racionalmente, anseia usurpar essa identidade jactante com oferendas a Bolsonaro ou a outros barqueiros da morte, que sacrificam a sociedade enquanto se embriagam dos pedágios públicos nos subterrâneos do poder. Quando a lira soava no Olimpo dos deputados, também silenciou reportagens em que era acusado de espancar a mãe dos próprios filhos. Protegido pelas sombras, no interior do cavalo de Troia, foi iluminado na trama para que a imunidade parlamentar se convertesse em impunidade, ao exigir licença prévia ao STF para processar parlamentares. Viabilizada a ideia, eles se tornariam deidades inatingíveis, muito acima dos mortais. Na mitologia, Circe encarna a simbologia da cortesia insincera e da falsa hospitalidade. Exilada e deslocada, ela se comprazia em emporcalhar tudo à sua volta.
Os oráculos contemporâneos, em substituição aos adivinhos mitológicos, são os institutos de pesquisas, os mesmos que foram demonizados pelos adoradores do mito tombado. Eles sussurraram oscilações de Lula, também entre os reinos aliados mais tradicionais. As prospecções não devem ser desprezadas como a sacerdotisa Cassandra o foi na Antiguidade. O risco é nos condenar coletivamente à tarefa interminável de Sísifo, de empurrar novamente a pedra da democracia morro acima, como um flagelo infinito e penoso.
O acaso é regência apenas das mitologias, não da realidade. Uma das maiores lições da guerra épica narrada por Homero é que não se pode agradar gregos e troianos. Ao guerrear no IOF contra gregos dissimulados e contra a sabujice dos traidores bolsonaristas aos EUA no tarifaço, as profecias das pesquisas foram mais benfazejas e apontaram uma recuperação de Lula. Mas o mesmo governo que diz se preocupar com um cerco contra as instituições na próxima eleição constrói cavalos de Troia para levar ao Senado Federal inimigos do Estado, ideólogos extremistas e porta-vozes dos mirmidões, adversários da última campanha. Se o fogo da democracia nos for roubado novamente, nem os deuses nos salvarão.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




