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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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Ouro no centro do experimento monetário dos BRICS

O protótipo Unit combina 40% de ouro físico e 60% de moedas nacionais, sinalizando busca por liquidação comercial fora do dólar

Barra de ouro de um quilo - 09/10/2025 (Foto: REUTERS/Ajeng Dinar Ulfiana)

O retorno do ouro ao centro do debate monetário internacional não é fruto de nostalgia nem de especulação retórica. É consequência direta de decisões políticas tomadas na última década — e aceleradas a partir de fevereiro de 2022, quando a Rússia foi parcialmente excluída do sistema SWIFT após a invasão da Ucrânia. A partir daquele momento, um recado ficou claro para dezenas de países: reservas em dólar e acesso à infraestrutura financeira ocidental deixaram de ser garantias técnicas e passaram a ser variáveis geopolíticas.

É nesse contexto que os países do BRICS, com destaque para China e Rússia, intensificaram a acumulação de ouro físico e a reorganização de seus mecanismos de comércio exterior. Dados do World Gold Council indicam que, entre 2020 e 2024, os bancos centrais compraram mais de 4.800 toneladas de ouro — o maior volume desde o fim do padrão-ouro — e mais de 50% dessas compras foram realizadas por economias emergentes, especialmente China, Rússia, Índia e países do Oriente Médio.

A China é hoje o maior produtor mundial de ouro, com produção anual estimada entre 360 e 380 toneladas. Pequim, no entanto, divulga apenas parte de suas aquisições oficiais. Em 2023 e 2024, o Banco Popular da China declarou compras modestas, enquanto relatórios de mercado e análises de fluxo sugerem volumes significativamente superiores adquiridos por canais estatais paralelos. O resultado é uma política deliberada de opacidade, que dificulta a mensuração exata das reservas, mas reforça sua função estratégica.

A Rússia segue trajetória semelhante. Antes das sanções, o Banco Central russo já vinha reduzindo sistematicamente sua exposição a títulos do Tesouro americano. Entre 2018 e 2021, Moscou praticamente zerou sua carteira de Treasuries e elevou a participação do ouro em suas reservas para patamares superiores a 20%. Mesmo com ajustes recentes para garantir liquidez interna, o metal permanece como ativo central de proteção contra bloqueios financeiros.
Quando se observa o conjunto ampliado do BRICS e países associados — incluindo África do Sul, Irã, Cazaquistão e Uzbequistão —, o peso estrutural se torna evidente. Esses países respondem por algo próximo de metade da produção física global de ouro, segundo estimativas consolidadas de mercado. Não se trata de controle formal, mas de capacidade de influência sobre a oferta real, em contraste com os mercados financeiros ocidentais, fortemente baseados em derivativos e contratos de papel.

O comportamento dos bancos centrais reforça essa inflexão. Em 2022 e 2023, as compras oficiais de ouro superaram 1.000 toneladas anuais, patamar que não era observado desde os anos 1960. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos mantiveram suas reservas estáveis em cerca de 8.133 toneladas, enquanto países europeus adotaram postura defensiva. A Alemanha, por exemplo, só conseguiu repatriar integralmente parte de seu ouro armazenado em Nova York e Londres após um longo processo iniciado em 2013, concluído apenas em 2017 — um episódio que alimentou questionamentos sobre soberania monetária.

O contraste com o final dos anos 1990 é revelador. Entre 1999 e 2002, o Reino Unido vendeu aproximadamente 395 toneladas de ouro sob autorização do então chanceler Gordon Brown. O preço médio girava em torno de US$ 275 por onça. Em 2025, o mesmo volume equivaleria a mais de US$ 50 bilhões. Não foi um erro isolado. O Acordo de Washington sobre o Ouro, assinado em 1999 por 15 países europeus, buscou conter vendas desordenadas após anos de desvalorização deliberada do metal.

O que mudou foi o ambiente político. O ouro voltou a cumprir uma função que o sistema financeiro global tentou neutralizar: servir como ativo fora do alcance direto de sanções, congelamentos e bloqueios unilaterais. Não por acaso, Rússia e China liquidam hoje a maior parte de seu comércio bilateral em yuan e rublo. A União Econômica Eurasiática faz o mesmo. A Índia avança com cautela, pressionada por déficits comerciais assimétricos, especialmente no setor energético.

É nesse cenário que surge o projeto conhecido como Unit. Não se trata de uma moeda única do BRICS, nem de um substituto imediato do dólar. Trata-se de um instrumento digital experimental de liquidação comercial, lastreado por uma cesta composta por cerca de 40% de ouro físico e 60% de moedas nacionais. O projeto-piloto foi apresentado em outubro de 2024 por um instituto ligado à Academia Russa de Ciências, com emissão simbólica inicial. Seu valor não está no volume, mas no sinal político.

A mensagem é inequívoca: o dólar não perdeu sua centralidade, mas perdeu exclusividade. O ouro, longe de representar um retorno ao passado, passou a operar como âncora de credibilidade em um sistema fragmentado. Para os BRICS, não é ideologia. É cálculo. Um ajuste estrutural diante de um mundo em que a moeda dominante deixou de ser neutra. E, quando a confiança se torna condicional, os Estados recorrem ao que não pode ser bloqueado com uma assinatura.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.