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Gislene Alexandre

Escritora em defesa da mulher negra rural e erradicação do trabalho infantil

5 artigos

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Pai rico, pai pobre no Brasil do século XXI

Crianças e adolescentes precisam brincar, estudar, se alimentar e serem protegidos pelo Estado. Suas famílias precisam de amparo, emprego, renda, moradia… Nada disso é muito

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Há um bom tempo o termo “gatilho mental” tem deixado de ser utilizado apenas em consultas terapêuticas e se popularizado dentre coaches dos mais variados segmentos que afirmam que é preciso ativar tais gatilhos para que algo se concretize. Os anos na área de vendas me deixaram muito familiarizada com esse termo. Sempre ouvimos que é preciso ativar o gatilho da urgência, que combina muito bem com o gatilho da escassez, já que os recursos são escassos (premissa da economia) e nós temos o produto agora, porém, não sabemos se, quando o cliente precisar, continuaremos tendo. Logo, esse jogo mental acelera o processo de compra do cliente e o vendedor pode, enfim, relaxar um pouco. Atingiu o objetivo momentâneo. Bateu a meta, fechou a venda.

Entretanto, este texto não fala de vendas, muito menos discorre sobre as artimanhas ou as técnicas de vendas que aprendi a utilizar com maestria, embora não me incomode de compartilhar em ocasião mais apropriada.

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Sendo assim, do que se trata este texto? Do gatilho mental que me foi ativado esta semana. Um gatilho que me deixou com nó na garganta e com um gosto amargo que não consigo expressar com palavras. Um gosto de saudade ruim. Saudade ruim existe? É difícil transcrever a palavra saudade em outros idiomas, mas saudade ruim é realmente um fardo para quem, de fato, possa decidir traduzir este texto.

Ao olhar as redes sociais de um nobre deputado do centrão (leia-se aqui direita ultraliberal) me deparei com uma bela foto. Um menino de aproximadamente sete, oito anos, sentado do lado do pai, ambos vestidos de trabalhadores rurais. Talvez este seja o motivo da saudade, pois sou filha de trabalhadores rurais e por um tempo trabalhei na lavoura de café. Mas o gosto amargo surgiu ao ler o texto. Era uma pesquisa de opinião sobre um projeto de autoria daquele deputado para permitir que adolescentes de 14 anos possam acompanhar os pais ao trabalho e lá permanecer, ou seja, trabalhar sob supervisão dos próprios pais. O texto ganha corpo e fica até bonito, pois ativa o gatilho da saudade e do orgulho dos pais trabalhadores na mente do leitor. Seja qual for a profissão, as dificuldades enfrentadas por nossos pais para que hoje pudéssemos ler, termos acesso à internet e à plataforma onde o texto estava, são motivos de orgulho e, quando nos orgulhamos, não temos coragem de questionar ou pensar no que realmente aquela imagem retrata.

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O texto foi escrito propositalmente por algum membro da equipe do nobre deputado que sabe trabalhar as emoções, pois a parte técnica vem somente após garantir que o leitor já estivesse emocionado demais para perceber a inconstitucionalidade e os crimes ali contidos.

O projeto critica a Lei do Aprendiz, nº 10.097/2000, ampliada pelo Decreto Federal nº 5.598/2005, que determina que todas as empresas de médio e grande porte contratem um número de aprendizes equivalente a um mínimo de 5% e um máximo de 15% do seu quadro de funcionários, cujas funções demandem formação profissional.

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No âmbito da Lei da Aprendizagem, aprendiz é o jovem que estuda e trabalha, recebendo, ao mesmo tempo, formação na profissão para a qual está se capacitando. Ele deve cursar a escola regular (se ainda não concluiu o Ensino Fundamental) e estar matriculado e frequentando instituição de ensino técnico profissional conveniada com a empresa.

O programa amparado pela lei citada contempla jovens de 14 a 24 anos incompletos que estejam cursando o ensino fundamental ou o ensino médio. A idade máxima prevista não se aplica a aprendizes com deficiência. A comprovação da escolaridade de aprendiz com deficiência mental deve considerar, sobretudo, as habilidades e as competências relacionadas com a profissionalização.

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O texto que me deixou com um gosto amargo critica a Lei do Aprendiz, dizendo que ela onera demasiadamente o empregador, além de ser muito burocrática. E ainda utiliza este argumento como justificativa para a apresentação de seu projeto. Projeto que data 2016 e, coincidentemente, é trazido à tona pelo autor no ano escolhido pelas organizações internacionais de direitos humanos para intensificar o combate ao trabalho infantil, e em que a pandemia e a crise econômica mundial têm levado diversas famílias de volta à miséria. Tendo a miséria como muro de arrimo para firmar seu discurso, coloca, ainda, que esse projeto ajudará essas mesmas famílias, pois o trabalho do adolescente ajudará a complementar a renda.

Aí, caro leitor, você pode perguntar qual o problema de se criar uma lei que autoriza o trabalho adolescente no mesmo ambiente que seus pais. O problema é que as famílias em situação de vulnerabilidade social, mais precisamente as que enfrentam a fome, são as que precisam desse complemento de renda. Não estamos tratando do fato de um professor ter a ajuda do filho para criar conteúdo digital para seus alunos, nem de o médico levar um adolescente para digitar as queixas de seus pacientes em um sistema integrado. Os filhos da classe média estudam, fazem cursos, utilizam a lei do aprendiz que complementa a renda e confere profissão de nível técnico. Os filhos dos ricos estudam nas melhores escolas, viajam, conhecem outros países e culturas, enquanto quem precisa complementar a renda vai trabalhar com os pais onde mesmo? No sinal, vendendo pano de prato? Nas carvoarias? No estacionamento, lavando vidros de carros? Ou na casa da patroa da mãe lustrando a prata?

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A Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta para a urgência da erradicação do trabalho infantil, pois ele é causa e efeito da perpetuação da pobreza.

O amargo na minha boca vem do estômago, pois me lembro de ter começado a trabalhar como empregada doméstica, aos doze anos de idade e hoje, aos trinta e seis, ainda luto para terminar o último ano da graduação. Lembro-me de todas as humilhações que sofri sem contar aos meus pais, pois não queria que eles se sentissem culpados e, naquela época, não havia nenhuma política pública de incentivo à educação, como o Bolsa Família ou a Lei do Aprendiz. Políticas como o Enem e a expansão dos cursos técnicos públicos que me permitiram, aos 26 anos, pegar um certificado de Ensino Médio e, aos 28, de curso técnico e só então romper com o ciclo da extrema pobreza, o ciclo de quase repetir a jornada de minha mãe, que começou como doméstica aos 9 e hoje, aos 65, não pode trabalhar e nem se aposentar.

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Gostaria de colocar, ainda, que os locais onde mais há a exploração de crianças e adolescentes são os locais onde aparentemente estão protegidas. Que mal pode haver em uma criança ir com os pais para o trabalho?

Se você, querido leitor, caríssima leitora, como eu, é do interior de Minas Gerais, saberá que muitas das meninas que frequentam a casa da patroa da mãe para brincar (leia-se ser babá) dos filhos da mesma ou ajudar a dar uma ajeitada na casa, acaba sendo aliciada como “criada”. A criada é uma forma de continuação da mucama no Brasil pós-colonial. Uma menina pobre, geralmente da roça, que vai morar com uma família rica. Aos pais resta a esperança de que a filha possa estudar, trabalhar e ter um futuro que eles não poderiam dar. Talvez até ajudar a financiar os estudos dos irmãos menores. À menina resta a amargura de estar na casa de estranhos, privada das brincadeiras, da birra, do amor da família e, em grande parte dos casos, da escola. O trabalho doméstico é sua obrigação diária e os anos vão passando. Ela se torna parte da família, portanto, é íntima demais para ter direitos trabalhistas e ser chamada de empregada ou trabalhadora doméstica. Mas também não se pode confundir as coisas. É distante demais para ser adotada formalmente com direito à herança, quarto digno, escola e vida social. Essa é a criada que ainda existe em muitas casas e ninguém vê.

Precisamos repudiar tais propostas. Crianças e adolescentes precisam brincar, estudar, se alimentar e serem protegidos pelo Estado. Suas famílias precisam de amparo, emprego, renda, moradia… Nada disso é muito. É apenas o mínimo da dignidade da pessoa humana.

Que 12 de junho, dia da luta pela erradicação do trabalho infantil, seja um marco para que cada um que chegou até este ponto da leitura se lembre de levar essa mensagem a todos quanto puder, para que possamos acabar, de uma vez por todas, com esse saudosismo da escravidão que inconscientemente as próprias vítimas acabam sentindo quando influenciadas por textos e imagens bem pensadas por setor de marketing de deputados que não conhecem o peso da enxada.

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