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Denise Assis

Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" , "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".

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Palestinos rumam para o Norte, em busca dos farelos de suas histórias

A marcha dos palestinos em busca de reconstrução revela a resistência diante da destruição e da desumanização em um cenário de desigualdade brutal

Palestinos caminham por estrada na Faixa de Gaza (Foto: Reuters/Mahmoud Issa)

Dois anos e dois dias depois do início do inferno em suas vidas, o anúncio de que haveria paz (ou haverá?) levanta os palestinos. Arranjam forças do fundo de suas almas, alimentadas pelo amor à terra de seus ancestrais, que os geraram, assim como a seus filhos. Aprumam os corpos desnutridos e caminham rumo ao Norte. O que os move? O amor e a esperança.

Alguns, abordados pelas câmeras de TV, nos levam às lágrimas com uma alegria que nos faz perguntar: de onde vem? O que os faz declarar que estão felizes, quando nós, bem alimentados e protegidos dos cenários das guerras, em casa, nos deixamos assaltar por “ais” e “uis”? O amor ao torrão calcinado, ao chão que eles galgam com passos firmes, ligeiros, como se bem alimentados estivessem. E estão. O que os nutre é a certeza de que, mais uma vez, irão reconstruir suas vidas no lugar que amam, para onde correm, esperando encontrar fragmentos de suas casas, algum familiar com quem possam se juntar e refazer suas histórias.

Ao menor aceno de paz, eles confiam. As imagens nos mostram que saem de suas barracas improvisadas às margens da estrada, com a roupa do corpo e alguns poucos pertences nas mãos, mas vestidos com a coragem de recomeçar. Correm como crianças para engrossar aquela fileira rumo ao nada, mas que, para eles, é tudo. A coluna encardida avança como uma serpente que, mesmo ferida, nos estertores, se move. Alguns, descalços, levam pela mão suas maiores riquezas: as crianças que sobraram do genocídio indiscriminado que ceifou a vida de milhares delas.

De onde tiram forças, se durante esses dois anos a fome roeu suas entranhas e murchou seus corpos, sob sol e chuva? Da certeza de que estão vivos, que “sobraram” das estatísticas monstruosas que nos mostram a disparidade de forças, o abuso, a crueldade gratuita a que assistimos, a princípio letárgicos, mas que, por fim, nos sacudiu e levou às ruas das principais capitais do mundo aos gritos de basta: “Palestina livre”.

Cerca de 90% da população de Gaza, aproximadamente 1,9 milhão de pessoas, foi forçada a se deslocar internamente. São eles que voltam, nessa impactante coluna de esfomeados “felizes”. Sabem que suas histórias foram esfareladas. Quase 80% das construções em Gaza foram destruídas ou severamente danificadas, mas seguem dispostos a catar os cacos emocionais e físicos.

Nesses dois anos, mais de 67 mil palestinos foram mortos e 170 mil ficaram feridos, segundo as autoridades de saúde locais. Do lado israelense, são 1.665 mortos desde 7 de outubro de 2023, data do ataque inicial do Hamas, que também resultou no sequestro de cerca de 250 pessoas. Hoje (11/10), 48 reféns ainda permanecem em cativeiro, com 20 deles considerados vivos. Foram 898 soldados israelenses mortos nas investidas contra Gaza.

Os números gritam. Ainda que torturados, esses números não conseguiriam produzir outro resultado se não uma única verdade: a desproporcionalidade da força que tenta amparar o 7 de outubro num vitimismo que impacta, mas já não convence. Eles próprios, o governo de Israel, trataram de diluir o que historicamente – com a ajuda de Hollywood – nos emocionou ao longo das últimas décadas. A história do holocausto, que a humanidade prometeu a si mesma que não se repetiria. Convém que não a esqueçamos.

Hoje, vendo a coluna escura caminhando com passos apressados rumo ao Norte de Gaza, é impossível não estabelecer um paralelo com o 27 de janeiro de 1945, quando o campo de concentração e extermínio de Auschwitz, utilizado pela Alemanha Nazista na Polônia ocupada, foi libertado pelo Exército Vermelho Soviético durante a Ofensiva do Vístula-Oder. Auschwitz foi um dos principais instrumentos da “solução final” nazista para a questão judaica, onde mais de um milhão de pessoas foram assassinadas, a maioria delas judeus. O que fizeram com essas lembranças?

Embora a maior parte dos prisioneiros tenha sido forçada a participar de “marchas da morte” antes da chegada dos soviéticos, cerca de 7 mil pessoas foram abandonadas naquele ano de 1945. Os soldados soviéticos ficaram chocados com a escala dos crimes cometidos pelos nazistas e tentaram ajudar os sobreviventes.

Agora, quando assistimos a esses milhares de pés se deslocando rumo a Gaza, é impossível não estabelecer um paralelo entre as duas marchas e concluir: estamos diante da marcha da vida. Que os governos do mundo se unam para que eles não encontrem, ao fim do caminho, mais destruição e fome. A história nos cobrará essa página.

Onde estávamos, que vimos e não fomos capazes de impedir que cinco mil crianças tivessem seus membros amputados sem anestesia? O que fizemos sobre as 12 mil pessoas que sobreviverão com sequelas sociais, como faces sem olhos, descarnadas pelos efeitos das bombas que as perseguiram e mutilaram?

Comovente ver a jornalista com o seu colete de “press”, roto, reportando com valentia – consciente de que executa o mais importante trabalho de sua vida – a saga de sua gente, serpenteando como se num filme de cenas bíblicas, esse retorno à terra que não lhes foi prometida. É deles há mais de dois mil anos. Que, ao menor sinal ou ameaça de novos bombardeios, sejamos capazes de deter com coragem o avanço da maldade contra esses guerreiros.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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