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Tiago Basílio Donoso

Mestre em Teoria Literária pela Unicamp e autor do livro no prelo “Terras Nacionais e Terras Estrangeiras”, pela editora Kotter

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Pandora papers, Prevent Senior e Fernando Holiday demonstrando o sadismo brasileiro

É preciso falar sobre o sadismo brasileiro à luz dos acontecimentos recentes

(Foto: Lula Marques)
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É preciso falar sobre o sadismo brasileiro à luz dos acontecimentos recentes: Prevent Senior, Pandora papers e a entrevista de Fernando Holiday ao Mano Brown.

O caso da Prevent Senior é assombroso. Mas é preciso lembrar que tais ações filonazistas não acontecem aqui pela primeira vez. No período ditatorial de 1964 a 1985, foi notória a criação da Operação Bandeirante, Oban, com ampla participação e financiamento do empresariado paulista. O empresário Henning Boilesen assistia às torturas por prazer e teve a brilhante ideia de inventar um instrumento próprio de suplício, a pianola. Agora, temos experimentos usando cobaias humanas por parte de médicos e de empresários - cuja banda de heavy metal tem insinuações que remontam à SS, como reportado aqui no 247.

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A revelação das empresas em paraísos fiscais por autoridades econômicas e empresários nacionais também é chocante. O papel da imprensa corporativa é parte desse choque. Enquanto se procura em vão e desesperadamente dinheiro de Lula ou do PT em offshores, o que se encontra são contas dos Marinho, do Henrique Meirelles, do Paulo Guedes, do Roberto Campos Neto. Não é novo, tampouco: assim como em nossa última ditadura havia a proibição de filmes, desde o político Costa-Gavras ao softporn Emanuelle (parece que feito para chocar gostosamente anciões conservadores), havia cinema nas residências oficiais das autoridades em Brasília que exibiam esses mesmos filmes. A questão não é proibir: é definir a linha de quem pode e de quem não pode, de quem merece ou não e, a rigor, de quem é considerado gente em um sistema de abate humano. Definir “corrupção” como a ação que vem abaixo de uma linha demarcada. A inocência de Lula é criminalizada e o crime de Paulo Guedes é inocentado.

Sistema de abate humano. Não é exagero, como sempre demonstra Mano Brown, e como o fez em sua última entrevista com o vedete do MBL Fernando Holiday. Brown seguiu uma linha: respeitar o político e tentar colocar em sua consciência o efeito real de suas escolhas políticas. Gostaria apenas de acrescentar uma pergunta, na entrevista que todos nós fazemos mentalmente após assistir a uma: “Você odiava o PT; pediu a Lava Jato e teve a Lava Jato; pediu a derrubada de Dilma e conseguiu; pediu a ponte para o futuro, veio Temer e você foi atendido; você pediu que Lula fosse preso e seu partido fosse destroçado em eleições, e mais uma vez deu-se o seu desejo; você pediu que Bolsonaro fosse presidente, que Paulo Guedes, o liberal, fosse ministro da economia, e foi atendido. O resultado é a destruição política, econômica, física, moral, democrática do Brasil. Veja bem: você teve mais desejos atendidos que alguém que esfrega uma lâmpada mágica, e o resultado foi a catástrofe. Não é hora de cogitar sobre a validade dos seus desejos? Ou melhor, indo mais fundo: será que você não está sendo usado pela elite nacional, da qual você não participa, do capitalismo global, que te impõe austeridade desde o alto e que deixou os serviços da sua comunidade, com os quais cresceu, arrasados - será que não estão te usando para vocalizar desejos que não são seus, que não te beneficiam e que no entanto beneficiam alguém; será que não estão usando sua negritude, sua infância pobre, para produzir mais racismo e mais miséria para os seus, os nossos? Questione os seus desejos”, eu diria, e acrescentaria “O primeiro passo será abandonar essa literatura teórica, toda fundada em autores norteamericanos. Aprenda a olhar o teu próprio país, e não será pela lente de um império que você terá uma visão além do simples papel de colônia”.

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E o que todas essas coisas díspares têm a ver? Todas elas tocam um nervo do sadismo brasileiro. Quero apenas, na mesma linha, levantar um debate que julgo importantíssimo.

“Bandido bom é bandido morto”. Esse slogan, que lembra o fascismo italiano, nixon-reganiano ou o nazismo, vem de nossa tradição sádica, iniciada pelo modo de produção e relação escravista e aperfeiçoada nos porões da última ditadura. Aperfeiçoada em métodos, aprendendo com redes militares francesas e de espionagem americana, desenvolvendo terapias invertidas para a dissolução da humanidade. Se quisermos ter uma ideia de nossa barbárie, vale lembrar que um dos torturadores brasileiros (essa mistura de general e bicheiro, de óculos escuros e que lembram, pela sede de dinheiro e de sangue, os conquistadores portugueses e espanhóis, Hernan Córtes e Barão de Cajaíba), um desses torturadores carregava no chaveiro a língua seca de um de seus executados. Como sabemos disso? Ele mesmo nos contou.

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A tortura sempre foi vista como um meio mais fácil de se obter a verdade sobre um fato criminoso. Basta ver “Tropa de Elite” e observar o modus operandi da polícia brasileira. Habituados aos programas policiais e à violência histórica contra as senzalas, as periferias e essencialmente contra a população negra e jovem, muitos apoiam e vêem no fim dos direitos humanos para bandido uma solução contra o crime. Empreguemos brevemente a razão, aqui.

Vamos esquecer toda a barbárie que seria aceitar ou mesmo discutir a eficiência do arbítrio, da violência e do assassinato sumário pelo Estado. Vamos pensar em termos de eficiência. A polícia brasileira aprendeu a tratar os pobres como trataria os opositores políticos - porque os pobres, por existirem, são opositores de sua política. Tortura, pau-de-arara, cadeira do dragão. Confissões. Não interessa - vamos fazer esse exercício - que as confissões não sejam confiáveis. Vamos fingir que o são. Que se extrai, sim, a verdade por meio da pura pancadaria. O que resulta daí? Que devemos defendê-la?

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Mesmo para parte da polícia e para os porões que adoram bater e espancar, é custoso fazê-lo. Imaginem que furtaram alguém; que entraram em uma casa, que roubaram um carro; que alguém desapareceu; imagine quantas pessoas fazem boletim de ocorrência em um dia em uma cidade média. Não há força possível para esse tipo de punição. O que resulta, portanto? Agora vemos a verdade do que significa a tortura: ela não serve para extrair uma solução para um crime, mas sim para se resolver crimes contra ricos. Se um coronel, um delegado, um membro do Rottary Club ou um político é assaltado, a tortura entra em campo. A tortura entra em campo também por puro prazer sádico, contra a população que se quer exterminar. Mas, quando para solucionar crimes, apenas crimes contra os poderosos. Assim, a polícia se torna incompetente: incapaz de investigar, habituada a “botar pra capar”, não consegue resolver ou não se anima a tratar dos problemas que deveria. Isso foi e é amplamente demonstrado, no cotidiano e em nossa história. Quando esfaquearam o ex-ministro Roberto Campos, avô do atual sonegador do Banco Central, a polícia de Paulo Maluf foi posta para trabalhar: encontrou, em uma noite, mais de 300 suspeitos. Somente para descobrir, mais tarde, que havia sido sua própria namorada, em seu apartamento. Quem tiver a casa furtada, sendo classe média ou pobre, provavelmente desistirá de fazer o B.O. Se o fizer, será possivelmente recebido por um policial mal-humorado, descrente e cínico. Ele faz seu trabalho burocrático, escreve, relata. Mas você percebe um sorriso irônico. Esse sorriso diz: “Você não entendeu muito bem pra que serve a polícia…”

Uma colônia, subdesenvolvida não porque não consegue se desenvolver, mas porque não pode - sempre que avança para fazê-lo, como em 1954, 1964 e 2016, é enviada de volta ao subdesenvolvimento por aqueles que sabem o papel de cada um na roda econômica global. E, como toda colônia, com seus representantes que adoram o império (Fernando Holiday), uma elite que despreza o próprio povo (Prevent Senior) e que está aqui para explorá-lo e evadir divisas (Pandora papers), para rir das empregadas domésticas enquanto faz subir o valor de sua carteira de investimentos. E que não pode fazer esse estado de coisas sem ter cobertura da imprensa e da polícia, sem mentir ou relativizar oficialmente e descer o pau nos pobres, para que se habituem a obedecer e produzir as riquezas que serão enviadas para fora. Mas esse estado de coisas não se torna apenas um “é preciso bater para conseguir obediência”; o ódio ou o desprezo são mais eficientes para fazer algo do que sua presumida causalidade. “Bate porque odeia” é mais fácil e produtivo que “Bate porque preciso evadir divisas”. E assim temos um país cuja elite é canalha e aristocrática, estrangeira, cujos representantes são seus lacaios obedientes (quem não viu, veja Julia Dualib fazendo perguntas a Gleisi Hoffman na Globonews) e que relativizam o arranjo brutal em que vivemos, e cujas forças armadas e policiais são forças de ocupação. Quando nos assombramos que um figurão da elite como Boilesen (um dinamarquês, aliás) se entrete a observar a tortura, nos assombramos porque a divisão do trabalho foi rompida: sempre foi a elite quem, obedecendo a um sistema capitalista global, mandou moer os pobres, mas sem ter que fazê-lo diretamente; o susto vem menos do horror do que da ausência de uma figura, a do capataz. A ausência de um elo da corrente ilumina o funcionamento de todo o sistema.

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O sadismo brasileiro não é uma peculiaridade brasileira, mas uma peculiaridade de nossa posição nas engrenagens geopolíticas do capitalismo. É um produto de nossas relações internacionais, da divisão internacional do trabalho. Ou  melhor, é um subproduto econômico. Aliás, essa coisa de “peculiaridade brasileira” é algo perigoso. O próprio “jeitinho” é efeito desse sadismo: chamar a miséria, que precisa sobreviver do modo como for possível, com o mesmo nome pelo qual chamamos a negociata de dois milionários com o poder público, é ofensivo, repulsivo como conceito. É o sadismo tornando-se ideia.

Para mudar essa e uma série de coisas que nos atormentam, e que nos fazem pensar que o país tem tantos problemas que não tem jeito, basta focar no essencial: internamente, acabar com a fome, tornar cidadãos todos os brasileiros; externamente, a luta anticolonial deve ser o centro. Com essas duas ações concomitantes, com todos os seus desdobramentos práticos, nós criamos a soberania e começamos a destruir as relações que criam, que vêem função no sadismo nosso de cada dia.

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E isso já começou a acontecer - quando foi interrompido, para que voltássemos à “ordem”. Um banqueiro definindo políticas públicas e rubricando os termos do subdesenvolvimento e de seu ganho pessoal; uma jornalista pedindo “autocrítica” a um partido de trabalhadores de seu país, que ajudou a perseguir; um policial arrastando um corpo negro pelo pé - são momentos da corrente sanguínea do dinheiro no mundo. Essa é a posição do nosso país, aquilo a que se dá o nome de “ordem”. Nós, porém, não desistimos, e voltamos à carga. É isso ou sucumbir ao sadismo como engrenagem econômica da história.  

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