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Luciano Cerqueira

Pesquisador do Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior (GEA-ES) da Flacso Brasil; Pesquisador associado do Laboratório de Políticas Públicas (LPP-UERJ) e Doutor no Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da UERJ

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Panóptico invertido: o Movimento Escola sem Partido

As ideias voltadas para criação de um sistema que sirva para o monitoramento tem suas origens no século XVIII, pois não é de hoje que o Estado, e outras instituições que lidam com um número grande de pessoas, tenta reduzir a incerteza de comportamentos através da vigilância

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Escrito em parceria com a autora: Sabrina Araujo de Souza, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

 

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As ideias voltadas para criação de um sistema que sirva para o monitoramento tem suas origens no século XVIII, pois não é de hoje que o Estado, e outras instituições que lidam com um número grande de pessoas, tenta reduzir a incerteza de comportamentos através da vigilância. Os principais autores das ciências humanas (embora de áreas distintas), a trabalharem com a ideia de disciplina e sujeição foram Jeremy Bentham e Michel Foucault.

Primariamente descrita pelo filósofo utilitarista inglês Jeremy Bentham em cartas escritas em Crecheff, na Rússia, e enviadas à Inglaterra no ano de 1787, a construção de um estabelecimento aplicável “aos propósitos das prisões perpétuas na câmara da morte, ou prisões de confinamento antes do julgamento, ou casas penitenciárias, ou casas de correção, ou casas de trabalho, ou manufaturas, ou hospícios, ou hospitais, ou escolas” (BENTHAM, 2008, 19) para a manutenção do patrulhamento dos sujeitos em estado constante ou, pelo menos, transmitindo-lhes a sensação de que este estado de vigilância não é interrompido em nenhum instante é apresentada como o ideário para execução do princípio da inspeção.

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A estrutura descrita por Bentham é representada por uma torre de vigilância central, na qual se abriga o inspetor, rodeada por celas devassadas pela luz solar em todo o seu espaço, de maneira que o indivíduo encarcerado, em nenhum momento, pudesse sentir-se em estado de privacidade (BENTHAM, 2008, 20):

“É óbvio que, em todos esses casos, quanto mais constantemente as pessoas a serem inspecionadas estiverem sob a vista das pessoas que devem inspecioná-las, mais perfeitamente o propósito do estabelecimento terá sido alcançado. A perfeição ideal, se esse fosse o objetivo, exigiria que cada pessoa estivesse realmente nessa condição, durante cada momento do tempo. Sendo isso impossível, a próxima coisa a ser desejada é que, em todo momento, ao ver razão para acreditar nisso e ao não ver a possibilidade contrária, ele deveria pensar que está nessa condição.”

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A ideia inicial do filósofo inglês não era vigiar as escolas, mas com o passar do tempo e o desenvolvimento da ideia, essa possibilidade é vislumbrada para tentar coibir, ou acabar, com o que conhecemos hoje como “cola”. Sabedor das dificuldades de aceitação do panoptismo pelos pais, desde o início fica em dúvida sobre a eficácia deste modelo nas escolas.

Já o filósofo Michel Foucault, em sua obra Vigiar e Punir. Nascimento da prisão, teceu considerações mais contemporâneas acerca do panoptismo, dos efeitos impostos pela inspeção constante e pelo poder disciplinar aos indivíduos e, consequentemente, à sociedade (FOUCAULT, 1999, 169):

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“O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder.  Graças aos seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens; um aumento de saber estabelece-se sobre todos os avanços do poder e descobre objetos de conhecimento em todas as superfícies onde este se exerce.”

A repercussão da adoção de tal modelo seria determinante para a construção do que Foucault denominou sociedade disciplinar, posto que “com o panoptismo, temos a disciplina-mecanismo: um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do poder tornando-o mais rápido, mais leve, mais eficaz, um projeto de coerções sutis para uma sociedade futura.”  (FOUCAULT, 1999, 173). E prossegue:

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“A disciplina não pode ser identificada nem com uma instituição nem com um aparelho; é um tipo de poder, uma modalidade do seu exercício, que comporta todo um conjunto de instrumentos, técnicas, procedimentos, níveis de aplicação, alvos; é uma física ou uma anatomia do poder, uma tecnologia.” (FOUCAULT, 1999, 177)

O princípio da inspeção, descrito largamente (e com entusiasmo) por Bentham, fundamenta o poder disciplinar que se projeta no comportamento dos cidadãos com o intuito de conformar a sociedade disciplinar, assim reconhecida por relações tidas como múltiplas e favoráveis no seguinte sentido: “uma multiplicidade, seja uma oficina ou uma nação, um exército ou uma escola, atinge o limiar da disciplina quando a relação de uma com a outra se torna favorável.” (FOUCAULT, 1999, 181)

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Ambos trabalharam com a ideia do Estado construindo uma estrutura para vigiar aquelas pessoas sob sua custódia em lugares como hospital, prisão, escola etc. No entanto, reconheceram a dificuldade que encontrariam para pôr em prática tal ideia, principalmente quando falam da escola. Acreditavam que devia haver vigilância, mas que, ao mesmo tempo, era preciso dar liberdade ao estudante, porque caso essa não existisse as chances do desenvolvimento criativo seriam muito reduzidas por conta de uma estrutura preocupada apenas com a disciplina em detrimento do mais importante: o aprender. Era a liberdade de aprender (e de ensinar) que estava acima da necessidade de vigiar e punir.  

Nos dias de hoje, o EsP coloca as ideias destes dois autores de cabeça para baixo. Primeiramente, não é a liberdade de aprender que se sobrepõe à vigilância: vigie primeiro e, se achar o conteúdo inadequado, registre e denuncie. Essa, com certeza, é uma das principais diferenças entre o EsP e nossos autores: nessa nova concepção, não é a instituição que vigia e sim, os que estão dentro dela que vigiam a instituição.

Em segundo lugar, temos de ressaltar que os autores em questão não classificaram o Panóptico como um modelo bom para a escola.  Caracterizavam o sistema como uma forma de controle que, se bem executada, seria imperceptível para os vigiados. Aqui também há uma forte divergência com o EsP. A forma de ação desenvolvida por estes visa à punição daqueles que, segundo suas definições, traírem a confiança dos responsáveis e “doutrinarem” as crianças e adolescentes.  Ou seja, o método não é nada imperceptível para o vigiado.

A terceira diferença é que, ao contrário da ideia de Bentham, na qual ao encarcerado não é permitida a visão da pessoa que está lhe vigiando, a ideia do EsP não prevê este tipo de astúcia. Para o movimento, quanto mais explícita for a vigilância imposta pelos alunos-delatores, mais pressionados se sentirão os docentes. E também não há, aqui, a necessidade de construção de uma estrutura diferenciada para isso: a ideia é o confronto, olhar o outro no olho e ameaçá-lo.

E, finalmente, junta-se a essa ideia distorcida de Panóptico, a internet. O ambiente cibernético tem ajudado a Teoria do Panóptico a ganhar cada dia mais força, resultando na promoção de linchamentos virtuais.  Mesmo que o professor filmado não venha a ser condenado posteriormente por nenhum crime, a exposição já se impôs de tal forma, que sua atuação docente torna-se alvo de diversos ataques. Graças à internet, temos hoje a possibilidade de adoção do modelo Panóptico sem a utilização de prédios ou qualquer outro tipo de construção arquitetônica; basta um perfil em determinada rede social  para vigiarmos, sermos vigiados e termos nossas ações induzidas, dia e noite.

Mas, qual a razão (ou as razões) para o EsP promover uma verdadeira “caça às bruxas” dentro das escolas?  O argumento difundido é a preocupação com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, usando o mote da luta por causas relacionadas à liberdade, educação e família e defendendo a edição de leis contra o que considera o abuso da liberdade de ensinar. Levantando estas bandeiras, o EsP ganhou certo destaque no cenário político brasileiro atual e apresentou um modelo de redação de anteprojeto de lei, conclamando os apoiadores a pressionar os parlamentares (em âmbitos federal, estadual, distrital e municipal) visando à sua apresentação nas casas legislativas.  Até o momento, em âmbito estadual e distrital, são dezessete os entes federativos que já receberam iniciativas legislativas cuja redação segue aquela elaborada pelo EsP.

É promovida também pelo EsP uma campanha de incentivo para que estudantes façam uso de meios para a gravação de imagens e de áudio, com o intuito direto de produção de material probatório a ser utilizado em eventual, e futuro, ajuizamento de ação de ressarcimento por dano moral pelos pais contra a escola e o docente.

As bases lógicas para o incentivo a estas práticas são descritas ao longo do material disponibilizado na página mantida na internet pelo EsP. Dentre o material exposto na internet, destacamos:

 

  1. os alunos são potenciais vítimas de doutrinação (de caráter político, ideológico, religioso ou moral), corriqueiramente promovida pelos professores em sala de aula, configurando afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente, por ser esta uma forma de exploração vedada pela norma;

 

  1. a educação é uma prestação de serviço e a relação professor-aluno é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, sendo o professor preposto do fornecedor dos serviços prestados ao aluno;

 

  1. aos pais não resta outra opção a não ser promover a investigação em sala de aula, com o auxílio de seus filhos, e notificar o professor e a escola, denunciando o abuso da liberdade de ensinar, a fim de obstar o prosseguimento da atividade docente e buscar reparação pecuniária pelos danos.

 

Outra medida levantada pelo EsP é a necessidade de afixação de cartazes contendo os “Deveres do Professor” em todas as salas de aula do ensino fundamental, do ensino médio e dos cursos preparatórios para exames de ingresso nas instituições de ensino superior, por entender ser esta uma medida hábil à conscientização dos próprios estudantes.

Uma simples leitura crítica do conteúdo da página mantida pelo EsP, conduz à percepção de que o ambiente escolar se transmuta em um verdadeiro campo de batalha e a relação que se almejaria harmoniosa e sadia entre docentes e estudantes vê-se obstaculizada por uma barreira de desconfianças mútuas. Os argumentos baseiam-se também na premissa de que os estudantes são como tábulas rasas e estas medidas precisam ser adotadas pelos pais visando a coibir o abuso intolerável da liberdade de ensinar. Sob a ótica do fundador do movimento, este abuso é conduzido pelos professores e professoras que utilizam suas aulas para incutir nas mentes jovens e “fracas” ideias socialistas, comunistas, de ideologia de gênero etc.

Conclusão

Em uma análise mais contemporânea, o modelo educacional que se almeja às crianças e adolescentes tende a incentivar uma maior interação e criatividade, em detrimento da subserviência e da obediência estrita às ordens.  O conservadorismo presente nos currículos e nas práticas escolares brasileiras durante grande parte do fim do século passado foi, paulatinamente, sendo substituído pela adoção de políticas mais progressistas (e, ainda assim, muito há o que se conquistar neste campo).  O caráter disciplinar não foi completamente abandonado, porém este tenderia a ceder espaço à formação de indivíduos mais autônomos e participativos, capazes de interagir e de pensar criticamente a realidade, iniciando-se, decerto, pelo próprio ambiente escolar.

A reedição do inadequado modelo panóptico parece ser um dos objetivos projetados pelo EsP, mediante a adoção das medidas já ressaltadas. Ao recuperar a ideia do princípio da vigilância com denúncia (ainda que lhe confira uma nova roupagem), o EsP transforma docentes em prisioneiros, faz uso da delação para exercer o poder de controlar corpos e mentes de estudantes e docentes.  Ou seja, dociliza as duas pontas da atividade educativa. A construção de uma relação harmoniosa e sadia entre professores e estudantes vê-se prejudicada, impedindo o atingimento de objetivos precípuos da escola: o conviver, o aprender e o ensinar.

 

Referências Bibliográficas

FOUCAULT, Michel.  Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão.  RAMALHETE, Raquel (trad.). 20 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

BENTHAM, Jeremy et al.  O Panóptico. TADEU, Tomaz (org.); LOPES LOURO, Guacira; MAGNO, M. D.; TADEU, Tomaz (trad.).  2. ed. Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora, 2008.

TAYLOR, Diana (ed.).  Michel Foucault: conceitos fundamentais.  Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

ESCOLA SEM PARTIDO.  Disponível em:.  Acesso em: 10 fev 2019.

“Escola sem Partido” ou educação sem liberdade?.  Disponível em:.  Acesso em: 10 fev 2019.

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