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Wilson Ramos Filho

Jurista, professor e escritor

68 artigos

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Papagalli

"A mãe também apanhava do pai. Era mulher. Parecia nem ligar. Era normal. E bíblico. A punição, condição de existência, imanente à ideia de Deus. Quem respeitaria Sua divindade se não por temor? A gente só obedece por medo, aprendeu no lombo."

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Telefonema da empresa no domingo não pode ser boa coisa. Só pode ser pepino. Vou logo para aí.

O dia começou mal para o moleque. Havia, enfim, tido a chance de assumir maiores responsabilidades. Trabalha desde os nove. No começo, auxiliando o pai carrinheiro. Depois, como selecionador na cooperativa de reciclagem, separando o lixo que não é lixo, ganhando trocados. Como o Dória, o Bretas e algumas dondocas, trabalhou desde a infância. Só que precisava. E não era apenas nas férias, ajudando na empresa de papai, na fazenda de vovô, ou vendendo brigadeiros aos vizinhos na praia, por uma ou duas semanas. Trabalhava para conseguir comer, com o sentimento de culpa de ser pobre.

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Apanhou muito. Quase todo dia. A mãe deixava a cinta de couro à mão, pendurada em um prego ao lado da máquina de costura onde gastava as vistas fazendo reformas em roupas de outros pobres. Do pai as porradas eram com os punhos cerrados, para aprender a ser homem. Era surrado por existir, por espirrar na hora errada, por ter entrado de sapato dentro de casa, por demorar a se levantar nas madrugadas frias, por qualquer dá cá essa palha.

A mãe também apanhava do pai. Era mulher. Parecia nem ligar. Era normal. E bíblico. A punição, condição de existência, imanente à ideia de Deus. Quem respeitaria Sua divindade se não por temor? A gente só obedece por medo, aprendeu no lombo.

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Desde os catorze, menor aprendiz, trabalhava no aeroporto. O salário ajudando em casa. Com a reforma trabalhista teve a primeira oportunidade de emprego de verdade como terceirizado, agora em janeiro, carregando malas e pacotes, no setor de cargas. Mais um pouco poderia alugar um quarto, morar sozinho, livrar-se da família, das surras que nunca cessaram, os pais não sabem ser de outro modo.

Inscreveu-se no ensino médio. Em um ano e meio estaria formado e poderia, enfim, fazer concurso, virar polícia e sentar porrada em vagabundos. Sempre gostou de uniformes e ostentava o seu, parecido com os de seguranças, com orgulho, garboso, coturnos sempre engraxados. Ia chegar lá.

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Quis a sorte que tivesse sua oportunidade. O responsável pelo setor foi demitido. Era o último empregado direto. Ganhava muito. Doravante todos seriam terceirizados e ele o chefe, ganhando trezentão a mais. E no primeiro fim de semana, uma catástrofe.

Era frequente receberem animais despachados como carga. Cachorros, gatos, até uma iguana uma vez. Gostava dos bichinhos. Brincava com eles, pobrezinhos, assustados dentro daquelas coloridas caixas plásticas. Havia um cuidado especial do antigo chefe para com eles. Mantinha ração para alimentá-los até que seus donos os viessem resgatar horas depois do desembarque. Carga especial, sempre advertia.

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Tinha um subordinado pela primeira vez na vida. Não um menino, como ele, um tiozinho recrutado recentemente, humilde, que lhe chamava de senhor. Queixava-se de dores nas costas. Frescura, pensava. Não quer trabalhar que peça as contas. Tem uma fila enorme de gente lá fora querendo tua vaga, berrou satisfeito na orelha do velho. Essa gente só sabe reclamar, concluiu.

E sobreveio o desastre. Um bicho desfalecido. Correu atender. Podia estar dormindo ou dopado, sabe-se lá. Era um papagaio. Mortinho da silva, enrijecido. Taqueospariu. O velho tinha esquecido a gaiola do lado de fora, naquele frio do cacete, priorizando o descarregamento das malas e caixas. Vinha de Manaus, da floresta que é como uma virgem que todo tarado de fora quer, como disse o capitão. Não era responsabilidade exclusiva do incompetente, mas ainda assim passou-lhe uma descompostura. A culpa era dele e punha em quem queria. Aprendera com a vida. Teve vontade de espancar o portador da má notícia.

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Precisava dar um jeito naquilo. Não podia perder o emprego agora que tudo estava melhorando, o país crescendo, a esperança voltando apesar da turma do contra. Tivera uma promoção e haveria de estar à altura de suas novas atribuições. Não se deixaria prejudicar por causa desse incidente. Blasfemou, chutou alguns embrulhos, cravou as unhas nas próprias bochechas, injuriado com o azar. E chorou. Do nada, parou. Respirou fundo. Engendraria uma saída.

Algumas horas depois, longe dali o supervisor trocaria a bermuda por uma roupa mais formal, embora esportiva, tentando imaginar os motivos da convocação urgente para comparecer ao local de trabalho fora do expediente. Sabia apenas que uma mulher, descontrolada, estava fazendo escândalo no setor de retirada de cargas. O responsável pelo incômodo haveria de pagar caro. Chega de impunidade. Precisamos de pulso firme e punições exemplares, com caráter simbólico. Um dia haveremos de ter no supremo um ministro terrivelmente evangélico. Causou acidente em alta velocidade, cadeia. Foi homofóbico, prisão para ver se aprende. O país carece de mais presídios. Está certo que tudo indica que o Moro e aquele pastor do jejum cometeram ilegalidades, mas pelo menos prenderam políticos, esses parasitas. Não se faz omelete sem quebrar alguns ovos. Se tivéssemos pena de morte o Brasil entraria nos eixos. Com ele é assim, escreveu não leu, o pau comeu. Se as instituições não funcionam alguém tem que fazer alguma coisa. Regras demais só atrapalham. Tomaria as providências que se fizessem necessárias.

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No aeroporto dois atrapalhados tentavam reanimar o bicho. O jovem praguejava dizendo poucas e boas ao subordinado. Uma carraspana daquelas. Sobraria para os dois. Por isso é que o Brasil não vai para frente. Os bons acabam pagando pelos pecadores. Precisava improvisar. Os fins justificam os meios.

Concebeu um plano que tinha tudo para dar certo. Desesperado chispou para a vila onde morava. Pagou uma fortuna pelo papagaio do vizinho e voltou com a certeza de que, daquela vez, se safaria. Ao chegar comparou as aves. Iguaizinhas. Papagaio é que nem japonês, divertiu-se. Para se livrar da prova do crime, pediu ao motorista do uber que se livrasse do indesejável cadáver.

Suava frio. Lembrou de quantas vezes apanhou até aprender a ser ruim, recebendo calado os corretivos que lhe aplicavam, sem chorar, sem esboçar reação, instigando maiores violências. No início tinha medo, depois não. Venha aqui, vai ser pior se eu tiver que correr atrás de você, verá o que é bom para a tosse. Passou a língua no lugar onde havia o molar perdido quando encarou, desafiador, o pai durante uma coça por ter mijado na cama. O murro derrubou-o. Recordou ainda das tundas evitadas, quando aprendeu a ser dissimulado tomando gosto pela mentira, com justificativas e artimanhas inventadas para escapar de prenunciados hiperbólicos martírios. Absorto, encantou-se ao ouvir o loro assobiar os primeiros acordes do hino nacional. Distraiu-se tentando ensiná-lo a repetir mito, mito, mito.

Estava nisso quando a dona chegou para buscar a encomenda. Foi um deus-nos-acuda. Não chegou a entender muito bem o tamanho da encrenca, embora percebesse que algo havia dado errado. A mulher falou umas palavras incompreensíveis, devia ser esquerdista, e saiu marchando. Eram iguais os bichos. Teria notado que não era o dela? Ou teria ficado furiosa ao flagrá-lo bulindo com a maritaca?

O supervisor recém chegado, a cliente, umas cinco ou seis pessoas e dois peemes, com aspecto severo, para elucidar o ocorrido. Ainda tentou manter a farsa, fazendo-se de desentendido. Inútil. Desmascarado, enrolado nas próprias versões desencontradas. Pediu escusas. Tentou obter uma licença de uma semana, para se reenergizar, em vão. O supervisor, inflexível.

A mulher era taxidermista em uma ongue ambiental. O dela estava morto quando o embarcaram. Não queria um papagaio vivo.

Crônica DE QUINTA, por Wilson Ramos Filho (Xixo), 11/07/2019

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