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Pedro Simonard

Antropólogo, documentarista, professor universitário e pesquisador

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Para que/quem serve esta polícia?

A sociedade brasileira necessita, urgentemente, definir que tipo de polícia ela quer, que tipo de formação ela quer que seja oferecida ao corpo policial estatal. O que foi feito até agora transformou o aparato policial em uma máquina de matar gente e desperdiçar vidas.

(Foto: @lucasport01 / Jornalista Livres)
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Em uma rápida pesquisa no Google para buscar elementos para escrever este artigo a partir das expressão “polícia mata”, as primeiras manchetes que apareceram foram “Polícia de Doria mata 8 em Paraisópolis para interromper barulho de baile funk” (01/12/2019), “Polícia mata 17 em Manaus; secretário diz que houve troca de tiros com facções” (30/10/2019); “Durante abordagem, Polícia Militar mata médico na Asa Sul” (28/11/2019); “Polícia mata 1 a cada 5 horas e responde por 30% das mortes violentas no RJ (22/07/2019); “Polícia mata traficante mais procurado do Rio e apreende fuzis e granadas” (26/11/2019). Nesta rápida busca, a ação da polícia de diferentes estados foi responsável por, no mínimo, vinte e seis mortes, isto porque eu sou péssimo em matemática e me recusei a fazer o cálculo de quanto daria em um mês uma morte “a cada 5 horas”. Os verbos mais utilizados nas reportagens que cobrem as ações das polícias estaduais são matar e atirar. Investigar e prender parecem ser verbos de uso exclusivo da Polícia Federal.As manchetes por si só já seriam estarrecedoras, mas os detalhes são ainda piores. A ação em Manaus que ceifou a vida de dezessete pessoas recebeu o seguinte comentário do secretário de Segurança Pública do Estado do Amazonas, coronel Louismar Bonates: "a polícia não mata, a polícia intervém tecnicamente". Tecnicamente, o que exatamente significaria isto? Os nazistas também agiam tecnicamente na execução da “solução final”? Quando o secretário de segurança afirma que matar é o resultado de uma ação técnica ele está afirmando que a polícia é treinada para matar, não para investigar e prender, se houver culpa. E matar com eficácia, tecnicamente.

No caso do médico de Brasília, ele foi parado para averiguação e recebeu “um tiro de carabina”. O que, exatamente, os policiais queriam averiguar quando pararam este cidadão?

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Bom, eu sou um antropólogo, um pesquisador e não posso utilizar como motor de busca uma expressão tão ideologicamente induzida com “polícia mata” porque ela me faria descartar de antemão, desprezar as boas ações executadas pelas polícias estaduais. Resolvi realizar uma nova busca a partir das palvras “ação da polícia”. Mais uma vez  surgiram reportagens sobre mortes de pessoas resultantes das ações polciais.

Segundo informações divulgadas na imprensa, a polícia de São Paulo eliminou 513 pessoas em 2019. O corregedor-geral da polícia paulista afirmou que dessas mortes 80%, isso mesmo, 80%, foram devidas a “excessos” dos policiais durante a ação. Isso significa que mais de quatrocentas dessas 513 mortes poderiam ter sido evitadas, se não tivesse havido “excesso’ dos policiais durante a ação. No que concerne ao massacre de Paraisópolis, o porta-voz da PM paulista também foi à televisão justificar a ação que resultou na morte de nove pessoas, a maioria adolescentes. Num momento que se fala tanto em autocrítica da esquerda isto seria o mínimo que deveríamos esperar dos secretários de segurança e porta-vozes dos órgãos de repressão e controle.

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As cenas exibidas na televisão concernentes ao massacre de Paraisópolis e as imagens da ação da polícia na repressão gratuita à torcida do Flamengo na Presidente Vargas assustam as pessoas que ainda se esforçam em manter o bom senso pelo despreparo dos policiais envolvidos nestas ações. Não é possível que se ensine nas academias de formação das polícias estaduais que a maneira correta de conter uma multidão espremida em um beco seja sair distribuindo cacetadas nos primeiros da fila para provocar um retorno desesperado em direção ao resto da fila. Não é possível que os policiais aprendam nas academias que o policiamento de controle de multidão tenha que ser feito portando rifles de guerra e apontá-los para a multidão, ameaçando-a. 

As críticas à ação policial que resulta em mortes se concentra na afirmação de que a polícia não deve agir assim porque matar não seria resultado de uma ação policial bem executada. Será mesmo? Uma polícia que recebe treinamento e segue uma hierarquia militares ou que é submetida a uma formação e treinamentos rápidos e inceficientes seria capaz de realizar outro tipo de ação?

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Em depoimento registrado no documentário “Notícias de uma guerra particular” (1998), de João  Moreira Salles e Katia Lund, o ex-secretário de polícia civil do estado do Rio de Janeiro, Hélio Luz, afirma, com ironia e criticamente, que a polícia é eficiente porque ela executa exatamente aquilo que a opinião pública exige dela e a opinião pública no Brasil não é democrática e defende uma espécie de “solução final” nazista contra os “criminosos” ou contra todos aqueles que têm “cor de criminosos”, aqueles que a polícia do Rio de Janeiro define como tendo uma “cor padrão”, obviamente, todo cidadão negro. Aplica-se na prática uma espécie de lombrosionismo rasteiro sobre os cidadãos negros para definir quem são os “criminosos”, os “meliantes”: são os que têm a cor padrão. Isto fica evidente para aqueles que já presenciaram a ação da PM dentro de coletivos, sobretudo ônibus: os policiais param o veículo, entram três ou quatro e vão diretamente revistar todos os jovens negros que, por infelicidade, estiverem no coletivo. Não raros estes jovens são retirados do veículo debaixo de safanões e humilhações, sob os olhares passivos dos não-negros ou quase-brancos presentes no local. Passivos porque, como bem definiu Lima Barreto no início do século XX, “o Brasil não tem povo, tem público” e eu completo que assiste a tudo com uma passividade quase bovina, com medo de ser a próxima vítima da violência policial.

A ação policial é quivocada não é de hoje e se assemelha muito às ações dos capitães do mato estes também quase todos negros; suas vítimas, também, todas negras. Mudou o armamento e o treinamento utilizados pelos capitães do mato contemporâneos; a polícia é muito mais letal. 

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A repressão aos capoeiras, ao samba, às relgiões de matriz africana comuns no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX hoje se travestem de repressão ao grafiti, ao funk e permanece na repressão às religiões de matriz africana.

Se antes o Estado fingia-se democrático e fazia vista grossa aos execessos dos esquadrões da morte, da Scuderie Detetive LeCocq, dos Doze Homens de Ouro da polícia civil da Guanabara, dos “”mão branca”, às “condecorações bang-bang” do general Cerqueira, hoje escancarou e as milícias estenderam seus tentáculos aos governos federal e estaduais. Se o secretário do Amazonas afirma que as mortes são resultado de intervenções “técnicas” o faz dentro da mesma lógica que respalda o governador que manda “atirar na cabecinha” e o presidente que tem como herói um torurador covarde e sanguinário. A sociedade brasileira agradece aliviada. A violência só choca quando atinge aqueles que não possuem a “cor padrão”. Nestes casos, todos se revoltam e vão para as ruas dançar ciranda ou colocam panos brancos pedindo paz nas janelas de seus apartementos e casas defendidas e protegidas pela corporação policial assassina. 

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Recentemente, jornal da grande imprensa comemorou a redução em 22% nas mortes nos noves primeiros meses de 2019, se comparado com o mesmo período de 2018. Até outubro deste ano, morreram, “apenas”, 30.864 cidadãos, em sua maioria jovens, negros, em idade produtiva. Por qualquer ângulo que se analise a questão, esta quantidade de mortos é uma tragédia: é um desperdício de vidas, de mão e obra, de dinheiro público investido na formação escolar desses jovens desperdiçados e por aí vai.

A sociedade brasileira necessita, urgentemente, definir que tipo de polícia ela quer, que tipo de formação ela quer que seja oferecida ao corpo policial estatal. O que foi feito até agora transformou o aparato policial em uma máquina de matar gente e desperdiçar vidas. Uma máquina de extorsão, corrupção e assassinato. Uma engrenagem, bem azeitada e funcional, que elimina vidas, que não resolve mais de 70% dos crimes (talvez não resolva porque sabe que irá investigar a si mesma), legalmente mal remunerada, mas que “recupera o prejuízo” em ações ilícitas. Uma engrenagem que engendrou o Escritório do Crime, as milícias, os esquadrões da morte e que não precisa mais dos intermediários para execer seu poder, posto ter se transformado no mecanismo que controla o Estado. Que os ricos se sintam imunes às arbitrariedades policiais é compreensível. Que os pobres, sobretudo os negros, se sintam inseguros diante delas, já que são suas maiores vítimas, também é compreensível. Mas que a classe média se solidarize com os ricos e apoie esta engrenagem perversa é incomprensivel. A classe média não está imune às ações “técnicas” do aparato policial estadual. Que o diga a família do médico assassinado em uma “averiguação” em Brasília.

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