Carlos Vainer avatar

Carlos Vainer

Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional

8 artigos

HOME > blog

Parem de vender nossas cidades

O patrimônio público deve atender a objetivos urbanísticos e sociais de interesse público

Rio de Janeiro (RJ) (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Como parte de um amplo e generalizado processo de destruição e privatização do patrimônio público, o então Ministro da Fazenda Paulo Guedes anunciou, em 2021, um feirão com 2.263 imóveis federais no Estado do Rio de Janeiro, 600 dos quais no centro da capital. O anúncio chamou a atenção da imprensa e da sociedade em geral sobretudo pelo fato de a lista do saldão de Guedes incluir o Palácio da Cultura, patrimônio artístico e cultural nacional, ícone da arquitetura moderna. À época, numa espécie de insana corrida contra a educação e a cultura, o Prefeito Eduardo Paes tornava pública sua intenção de passar nos cobres os terrenos de uma escola (O Globo, 03/05/2021) e de uma biblioteca (O Globo, 09/08/2021). Como se isso não bastasse, o governador do Estado anunciava sua vontade de queimar o patrimônio fundiário-imobiliário estadual para abater a dívida estadual com a União. 

Estes pretensões não se concretizaram à época e Guedes é coisa do passado, mas a vontade de liquidar o patrimônio imobiliário público na bacia das almas mostra-se, como está na moda dizer-se, resiliente. O Prefeito parece atuar como se fosse um verdadeiro corretor de imóveis: aqui, entrega uma praça pública ao capital privado, como fez com o Jardim de Alah; ali, intermedia compra e venda de um edifício que, ao final, foi repassado ao capital financeiro-imobiliário, como no caso do Edifício A Noite. Há um ano atrás, a Câmara Municipal aprovou projeto de lei que autoriza a Prefeitura a alienar 49 imóveis.

Agora é a vez do governador Claudio Castro mostrar que não pretende ficar para trás, encaminhando à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei Complementar 40/25, que prevê a privatização de 48 imóveis. Na lista estão o histórico estádio Caio Martins, em Niteroi, e 26 imóveis na capital, com destaque para o Batalhão da Polícia Militar no Leblon, com 5.000 m2. E buscando limitar o necessário e democrático debate público, o governador pede que o PLC seja tramitado em regime de urgência.

Nesta investida contra o patrimônio público e a cidade, que deve ser defendida como espaço coletivo e comum, o governador e o prefeito não apenas viram as costas às necessidades de milhares de famílias necessitadas de moradias dignas, como violam abertamente a legislação federal, estadual e municipal.

Com efeito, a constituição federal determina que a propriedade deve atender a sua função social (Art. 5, inciso XXIII) e o Estatuto da Cidade assegura que isto se aplica à propriedade urbana (Lei 10.257, Art. 39). Com mais razão tal se aplica à propriedade pública, como deixa explícito a Lei 11.124, de 2005, que determinou que imóveis públicos não utilizados devem ser consagrados a habitações de interesse social (Art. 4o). A mesma regra está presente na Constituição do Estado do Rio de Janeiro (Art. 233) e na Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro (Art. 437).

É sabido que, ao longo da história, as cidades brasileiras produziram uma verdadeira segregação social, que é também racial, condenando os mais pobres a morar nas áreas mais distantes e carentes de infraestrutura, quando não em favelas. O Rio de Janeiro é exemplar deste ponto de vista. Com raras exceções, os programas habitacionais, inclusive o Minha Casa, Minha Vida, reforçam este processo, posto que seus projetos se realizam em áreas periféricas e precárias. A principal justificativa para esta opção segregadora tem sido que programas sociais somente podem arcar com terrenos a baixos preços, inexistentes nos bairros mais acessíveis e dotados de serviços básicos. Ora, a destinação de imóveis públicos ociosos localizados nas áreas centrais e com adequada infraestrutura contribuiria de maneira expressiva para democratizar a cidade, combatendo o processo perverso de segregação e periferização dos mais pobres.

Novas construções nos terrenos públicos livres ou adaptação residencial em imóveis públicos já construídos ociosos ampliariam enormemente a oferta de habitação social na cidade do Rio de Janeiro. Ademais, seria a oportunidade para levar adiante um modelo inovador em que o Poder Público manteria a propriedade dos imóveis, sendo as moradias objeto de locação por valores módicos, como acontece, por exemplo na França, Holanda, Dinamarca, Áústria, Alemanha, Reino Unido, Portugal, Espanha, Canadá, EUA, Singapura, Austrália, Nova Zelândia, etc.

Diante do ataque frontal ao patrimônio público, que expropria os citadinos para atender aos interesses do capital financeiro-imobiliário, para quem a cidade não é senao um negócio, cabe resistir e exigir o cumprimento das leis. A primazia da destinação de imóveis públicos ociosos e semiociosos à habitações de interesse social é não apenas uma exigência legal, mas também uma exigência política, social e moral. Mais que nunca é necessário afirmar que a cidade não está à venda e o patrimônio público deve atender a objetivos urbanísticos e sociais de interesse público.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.