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Wilson Ramos Filho

Jurista, professor e escritor

68 artigos

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Pascoalina

Hitler era ateu. Não senhor, era católico e até fez acordo com o Papa que calou quando do holocausto. Suposto holocausto, disse o polaco. Alguém emendou um posso até perdoar, mas jamais esquecer o genocídio dos judeus. Perdoar? E depois?

Pascoalina
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Quinta-feira feira, última do mês, dia de pai ir buscar no colégio. Nos outros o encargo, para os que não voltam de van, recai sobre mães, avós, empregadas ou motoristas. Uma vez ao mês é diferente, regra da escola. Muitos pais que deveriam chegar às cinco, esbaforidos, chegam às seis. Não alcançam participar da derradeira hora das atividades de seus filhos.

Começo de ano é difícil, pouco se conhecem. É a terceira última quinta-feira. Cumprimentam-se simulando naturalidade, efusivos nos estreitos limites curitibanos, quase uma continência. Vai rolar um repiauer, combinaram na vez anterior, nas barraquinhas da feira noturna, perto do trilho do trem. As crianças nunca haviam se encontrado fora da escola. Verdadeira excentricidade simplória escolhida pela existência de um parquinho para a piazada. Poucos vão. Os demais pretextam esquecimento e prometem na próxima, sem falta. Algumas mães buscam os seus, desculpando os maridos, viajando coisa e tal, e têm o bom-senso de não acompanhar os pais dos coleguinhas. Hoje é dia deles.

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A proximidade, duas quadras que convidam à caminhada outonal, é irrelevante. Cada um no seu carro e com seu filho. Bem organizado. Em Curitiba é assim.

Mesas improvisadas, cerveja em copos plásticos, batatas, iscas de pernil. Uma placa. Morre o porco, fica o espírito. A conversa entre aqueles estranhos, de estilos e profissões diversos, não engrena. Em comum apenas a aleatória
e acidental matrícula dos filhos na mesma escolinha e o indefectível orgulho proprietário, característico da pequena-burguesia. Todos aparentam em torno de trinta e tantos.

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Com as mulheres é diferente, desde a primeira semana trocam figurinhas no grupo de uátis das mães. Espezinham-se, prazerosamente, destilando suas infinitas bondades e hipócritas amabilidades. Com eles, aquilo. Um desconforto.

Arriscaram futebol, mas está difícil, só sobrou um time no Paraná, os outros, outrora grandes, em crises sem fim. O assunto não empolga ninguém. E podia criar polêmica, indesejada por todos, cientes que aquele tipo de encontro se repetiria nos meses seguintes. Política, então, nem pensar. Tinha tudo para desandar. Outro clássico tema do universo masculino, mulheres. Falar das próprias não tem graça. De outras, inadequado, ausente intimidade.

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Um, com pinta de vendedor ou marqueteiro, lamentou o incêndio da Notre Dame em Paris e acertou na mosca. Um bom tema. Lamentos, lembranças de viagens, referências ao Museu Nacional, aquelas coisas de sempre, trivialidades educadas e contidas.

Acho que foi atentado. Capaz. Muitos imigrantes. Só neste ano doze igrejas profanadas na Europa. A anterior, Saint Sulpice, também em Paris. Foi a senha para destampar subjetividades e preconceitos xenófobos. Acidente, vi na Globo, disse o japa com cara de engenheiro, acontece todo dia. O polaco orelhudo com jeitão de olavete declinou uma teoria conspiratória qualquer. O com cara de fuinha lembrou que em Jerusalem, na mesma data, pegou fogo em uma Mesquita da época de Herodes. O gordo teutônico disse que isso, obviamente, era coisa de Israel. O franzino que havia pedido as fritas protestou. O outro desculpou-se, estava brincando, não era racista, invocando em sua defesa ter um empregado judeu, na contabilidade.

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A Notre Dame pegou fogo graças a deus, exclamou o baixinho careca. Silêncio. Quase um pecado em plena quaresma, rosnou o da fanta uva. Explicou. Se deus existe, tudo o que acontece é por Sua vontade. Discordância generalizada. Animou o debate. Parecia a sala de aula da quinta série que os havia reunido.

A única certeza é a de que, se houve os atentados, os autores jamais seriam ateus. Para atacar templos dos outros só se acreditar muito em um deus e, consequentemente, julgar que os outros acreditam no deus errado. Tinha um amigo que acumulava tantos, mas tantos, pecados que todo ano ia a Aparecida do Norte. A intensidade da fé e dos sacrifícios em seu nome praticados é sempre proporcional aos pecados. Quanto mais moralista, mais perverso, divertiu-se o vendedor.

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Você é que está errado! Do ponto de vista teológico, salvo os ortodoxos, as grandes religiões monoteístas não creem que o Deus delas seja diferente do das demais. Só existe um deus, a diferença entre as religiões resume-se ao Messias. Para a maioria, Jesus, para outros, Maomé, para alguns um que ainda virá. O meu deus é o do novo testamento. Como assim, seu deus? Só existe um deus, pai, filho e espírito santo. Como maioria? Os cristãos são numericamente inferiores à população da China, onde, pelo seu critério, por não acreditarem no teu deus, certamente todos arderão nos infernos.

Hitler era ateu. Não senhor, era católico e até fez acordo com o Papa que calou quando do holocausto. Suposto holocausto, disse o polaco. Alguém emendou um posso até perdoar, mas jamais esquecer o genocídio dos judeus. Perdoar? E depois? Hitler era católico e vegetariano. Stalin era ateu, mas pelo menos não era vegetariano. Primeiro momento de descontração.

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Para o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, se trata do mesmo Deus. Claro que há divergências. O cristianismo acredita na trindade. Islamismo e judaísmo encaram isso como politeísmo. Mas Deus, Alah e Jeová são compreendidos como diferentes vocábulos para expressar a mesma divindade, racionalizou um deles ao trazer mais cervejas. O feirante declarou-se kardecista e umbandista. Pelo menos não é do candomblé, falou o da fanta. Nova gargalhada. Geral. O olavista emendou, foram os astros, estava escrito. Ninguém pode, ao mesmo tempo, ser inteligente e acreditar em horóscopo, retorquiu o baixinho. Nova gargalhada.

Aposentadoria dos militares e juízes, desmandos da lava-jato e religião não se discute, emperdigou-se o japa, quase samurai. Nem futebol, disse o gordo de verde. Nem política. O polaco tentou ser engraçado. Escola sem partido! Sou atleticano, socialista, racional, democrata e ateu, quero discutir sim todos esses assuntos, e tenho coragem para sustentar meus argumentos, falou o baixinho sem que ninguém lhe desse atenção. Debates interditados.

Já havia duas quintas séries, com o mesmo espírito. O tio da banquinha da feira sabe das coisas.

Ao anoitecer fechou o pau em ambas as turmas. Muita chegança, em Curitiba, nunca dá certo. Estabelecidos os entreveros, hora de ir, dos abraços protocolares e das felizes páscoas.

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