Pátria ou Colônia nas urnas argentinas de 26 de outubro
A maioria do povo argentino poderá surpreender e não perder esta oportunidade para dar, através do voto, um sinal plebiscitário na defesa da soberania nacional
Aos 80 anos do Dia da Lealdade Peronista, a história parece se repetir, e o povo argentino se encontra novamente diante da mesma encruzilhada. No dia 17 de outubro de 1945, centenas de milhares de cidadãos dos bairros e sindicatos deram início ao gigantesco movimento peronista, dirigindo-se à Praça de Maio para exigir e conquistar a libertação de Perón, preso na Ilha Martín García. Secretário do Trabalho e da Previdência Social, afastado e preso pelo governo militar, ele foi libertado sob pressão popular e eleito presidente da República quatro meses depois.
Passadas oito décadas, após as mais significativas conquistas sindicais dos trabalhadores e o fortalecimento do Estado de bem-estar social durante Perón – e posteriores golpes cívico-militares do neoliberalismo, superados por governos peronistas com o nascer do kirchnerismo –, a Argentina se encontra novamente sob ataque das forças extranacionais sediadas nos Estados Unidos.
Mas há resistência. Neste 17 de outubro, mais de 50 mil pessoas se manifestaram em frente à residência da ex-presidenta Cristina Kirchner, em Buenos Aires, para exigir sua libertação. Cristina, em prisão domiciliar, condenada e injustamente proscrita, emitiu um discurso gravado dizendo que “há 80 anos era Braden ou Perón, hoje é Bessent ou Perón”, e saiu à varanda para saudar o povo e estender uma faixa com as cores azul e branca da bandeira nacional argentina. A multidão vibrava com cartazes de “Cristina inocente”, “Cristina livre”, acompanhados pelos cânticos peronistas e o grito “Voltaremos! Vamos voltar!”.
Em 1946, as consignas dos manifestantes eram “Braden (embaixador norte-americano) ou Perón”. Agora, os cartazes dizem: “Scott Bessent (secretário do Tesouro dos EUA) + Milei ou Pátria”. Os gritos são: “Pátria, sim! Colônia, não!”. Na oposição, há grande rechaço à subalternidade do governo atual ao resgate-chantagem de Trump, atado ao swap de 20 bilhões de dólares, estabelecido diretamente entre o Tesouro norte-americano e o Banco Central da Argentina. Pergunta-se se o atual ministro da Economia na Argentina é Bessent ou Luis Caputo. Além da impagável dívida externa com o FMI, iniciada com Macri, soma-se esse swap para cobrir as baixas reservas internacionais do Banco Central, sujeito a prazos, custos de devolução e condicionamentos inescrupulosos, publicamente expostos neste último resgate dos EUA, cujos objetivos são pagar os vencimentos da dívida argentina e reduzir a influência da China na Argentina e no continente.
A China, há anos, tem participado de projetos com transferência de tecnologia, como na construção do telescópio espacial (CART) em San Juan, com colaboração da Universidade Nacional de San Juan (UNSJ), do Conicet (Centro de Pesquisas e Tecnologia) e da Academia Chinesa de Ciências; e havia um porto multipropósito conjunto com a China na Tierra del Fuego, suspenso por pressão dos EUA. Agora, a Argentina deve firmar acordos com empresas norte-americanas de infraestrutura, telecomunicações e recursos estratégicos, afastando as empresas chinesas atuais. Há tempos os chineses têm coparticipação em projetos de infraestrutura, mineração (lítio em Pastos Grandes), tecnologia e energia (eólica e solar), além da reativação das hidrelétricas Néstor Kirchner e Cepernic. Os dados do acordo do anunciado swap norte-americano não são oficiais, mas há muitas evidências dos requisitos de Trump e do governo dos EUA para ter acesso ao urânio, lítio, terras raras e reservas naturais argentinas. Seus olhos e mãos já estão na Patagônia, no petróleo de Vaca Muerta (Neuquén) e da costa atlântica, no porto de Punta Colorada (Rio Negro), no gás de Allen, nos minerais de Chubut e no urânio de Santa Cruz.
A embaixada chinesa na Argentina respondeu à chantagem norte-americana: “Scott Bessent e os EUA devem entender que a América Latina não é o pátio traseiro de ninguém”... e acrescentou que “retornou a mentalidade da Guerra Fria”. O jornal The Wall Street Journal destaca que o objetivo do swap de 20 bilhões de dólares (e um novo crédito do mesmo valor ainda em negociação) é cortar a presença da China na Argentina, inclusive militar. Trump já advertiu Milei de que seria inaceitável qualquer acordo militar com a China. Enquanto isso, a soberania das Ilhas Malvinas está sendo ameaçada pelo próprio governo, com o anúncio de uma base militar americana na Tierra del Fuego. Por decreto do Executivo, sem consulta ao poder Legislativo, as Forças Armadas dos EUA estão autorizadas a entrar nos portos de Mar del Plata, Porto Belgrano e Ushuaia. Tudo isso ocorre em um contexto latino-americano de invasão no Caribe contra a Venezuela.
A resposta de Trump à jornalista norte-americana correu o mundo: “A Argentina está lutando pela sua vida, senhorita. Você não sabe nada a respeito. Estão lutando para sobreviver. Não estamos beneficiando a eles mais do que aos agricultores norte-americanos. Entende o que isso significa? Não têm dinheiro, estão lutando com todas as suas forças para sobreviver... Se posso ajudá-los a sobreviver num mundo livre. Gosto do presidente da Argentina. Creio que está fazendo tudo o que pode. Estão morrendo. De acordo? Estão morrendo”.
Trump se justifica perante a opinião pública local sobre o desvio de fundos dos EUA, afundado numa crise abismal. O povo norte-americano não suporta mais pagar pelos gastos de guerra e genocídios mundo afora. Vários milhões de pessoas participaram dos 1.600 protestos de rua em todo o país, como referiu Bernie Sanders.
Dentro do cavalo de Troia do swap de 20 bilhões de dólares dos EUA à Argentina estão o batalhão de pressão anti-China (o mais visível) e os soldados financeiros do JP Morgan, Bank of America, Goldman Sachs e Citigroup, além de investidores preocupados com suas ações e possível fuga monetária. Não se sabe quando entra o cavalo, mas o anúncio ocorre em meio à aposta eleitoral que se confirma no domingo, 26 de outubro, para a reeleição de meia bancada da Câmara Legislativa Nacional (renovada a cada dois anos), que servirá como termômetro do apoio ou rejeição social ao governo de Milei. Por isso, Trump afirma que a ajuda financeira chegará se o partido Libertad Avanza (LLA) vencer as eleições legislativas: “Se Milei vence, estaremos perto. Senão, tchau”.
A incógnita do benefício social do “resgate Bessent” à Argentina
O anúncio de dito crédito financeiro não melhorou, nem disfarçou uma transitória estabilidade econômica (com fins eleitorais), mas, no arco de poucos dias, fez cair as ações, disparar o dólar e o risco país; nem se falar da inflação. Portanto, é imprevisível o desastre pós-eleitoral, considerando a maioria dos prognósticos de derrota do governo.
Mesmo que Bessent oculte as condições do empréstimo, o povo argentino já sabe. É dívida para pagar dívida. E quem paga? O pequeno-médio comércio e indústria; consequentemente a classe trabalhadora. Portanto, mais reajuste aos direitos e benefícios dos trabalhadores, da classe média, dos estudantes, dos aposentados, e deficientes físicos; aceleração das privatizações e mais motoserra contra o Estado. Essas têm sido as perpétuas imposições do FMI desde o governo Macri, com suas desastrosas consequências para o povo: o cidadão e suas famílias “não chegam ao fim de mês”. Ou seja, a caixa familiar se esvazia com o pagamento de aluguel, remédios, transporte, escola e alimentos já à metade do mês. Uma pessoa tem que ter 2 ou 3 trabalhos para se manter; e a maioria sem registro ou carteira de trabalho.
Segundo estatísticas divulgadas, nunca se viu, desde 2008, tanta gente endividada; 75% das dívidas do cidadão foram geradas em 2024; 65% de inquilinos têm dívidas de aluguel; 58% das dívidas são para pagar alimentos; 9 de cada 10 famílias vivem endividadas. Em 18 meses, faliram 16 mil empresas e perderam-se 250 mil empregos. Aumentaram drasticamente os sem tetos nas ruas. Trump diz que estão morrendo na Argentina. Milei, contradizendo o seu chefe, desmente na campanha eleitoral todas as críticas da oposição e diz que “não é verdade, senão haveria cadáveres na rua”. Criticado por viajar muito ao exterior (EUA) e executar pouco, consegue organizar e atuar, com frenesi característico, num show massivo no estádio Rockstar Arena, enquanto fala com megafone e escapa de minúsculos comícios eleitorais, pró Liberdade Avança, protegidos por forte cordão policial.
Perspectivas para a defesa da Pátria
Apesar do desastre econômico-social, não é simples vislumbrar a perspectiva e prazos para uma nova alternativa dentro dos próximos dois anos. As eleições legislativas nacionais de metade da bancada, no próximo dia 26, serão um instrumento importante para levar a voz das ruas e incrementar a força popular peronista no Congresso; e continuar impondo derrotas aos decretos presidenciais de urgência (DNUS). Os cortes, que Milei tentou impor, sofreram derrotas no Parlamento, resultando em três leis: Lei de emergência para a invalidez; Lei de financiamento universitário; e Lei de atenção pediátrica. Porém, o mais recente ato inconstitucional de Milei tem sido renegar e não cumprí-las, sob pretexto de déficit orçamentário. A LLA tenta fazer de tudo para eleger parlamentares que assegurem 1/3 do Parlamento para impor mais DNUs de recortes e as tais reformas trabalhistas para alcançar o dito “déficit fiscal zero”.
A bronca de manifestantes e grevistass dos hospitais Garrahan (pediátrico) junta-se ao dos aposentados das 4ªs feiras diante do Congresso Nacional, sintetizando o descontento social enfrentando forte aparato repressivo. Isso poderá ecoar nas urnas, fortalecendo a coligação peronista-kirchnerista do Força-Pátria, e as representações dos movimentos sociais de Grabois e da esquerda contra o governo de Milei. A morosidade da Justiça (salvo algumas exceções de delegados e juízes) frente às denúncias de corrupção no governo libertário, desde o Caso das cripto-moedas $LIBRA; subornos de laboratórios farmacêuticos (Suizo Argentina), via Karina Milei (LLA), a irmã do presidente; até deputados acusados de narcotráfico, como Luis Espert (LLA), tudo poderá ter o juízo negativo da opinião pública nas eleições de 26 de outubro.
Não se exclui que se estenda em todo o país, com mais força, a vitória peronista alcançada nas eleições de 7 de setembro, da província de Buenos Aires, governada por Axel Kicillof; este, percorreu bairros, palmo a palmo, junto à coligação Força Pátria que recebe o apoio de uma incansável militância. É certo que a guerra midiática da direita nas redes fake-news contra o kirchnerismo, estimulando o “apoliticismo” e a abstenção nas urnas, é a mesma que envenenou mentes juvenis e deu vitória a Milei em 2023. Junta-se a isso, a intromissão de Scott Bessent, seguida das palavras de Trump, como uma faca de dois gumes. “O pior já passou”, palavras de campanha de Milei, junto ao aparente salva-vidas do swap de Trump, podem ainda iludir uma fração pró-libertária inconsciente. A provável derrota do governo, deverá acelerar sua crise interna já expressa em contínuas renúncias no gabinete presidencial.
Em meio a tantas incertezas, a maioria do povo argentino poderá surpreender e não perder esta oportunidade para dar, através do voto, um sinal plebiscitário na defesa da soberania nacional, contra a injustiça social, a violência econômica, e a desumanidade do poder vigente, dando um Basta Milei! Desta forma, o resultado eleitoral poderá ser mais que números, uma polarização de forças, ou uma vitamina para o peronismo impulsionar a unidade das forças populares, no debate programático e nas mobilizações da próxima etapa.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

