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Luis Cosme Pinto

Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 61 anos de idade e 35 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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Pedra no caminho

Palmas para quem tem coragem de dizer não ao dinheiro e sim à família

Pedras (Foto: Pixabay Free)
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Quando perguntaram a Ricardo Darín porque havia recusado uma oferta milionária para trabalhar em Hollywood, o ator argentino respondeu com o carisma de sempre: “Não preciso de mais dinheiro, sou um privilegiado. Posso tomar dois banhos quentes por dia”.

Entre atender os produtores dos Estados Unidos ou abraçar a mulher e os filhos de quem estava separado por causa de uma longa temporada teatral na Espanha, o ator não teve dúvida: entrou no primeiro avião para Buenos Aires. A turma de Hollywood teve que arrumar outro.

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Voltemos ao chuveiro com Darín. No bom sentido, por favor.

Essa frase do banho quente merece ser guardada. É um artista, um ídolo que não se entrega ao comodismo da fama. Darín conhece bem o mundo desigual em que vivemos, em que muitos não podem sequer tomar um banho, quanto mais dois, menos ainda quentes.

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É privilegiado mesmo, pela consciência, pelo talento, pela coragem de dizer não aos dólares, não importa quantos.

Na minha modesta opinião, Darín é dos melhores atores da história do cinema. Se a gente quiser abrasileirar, dá para dizer que possui a grandeza de uma Fernanda Montenegro.

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Um orgulho argentino, como Messi ou Jorge Luiz Borges; como Maradona ou Mercedes Sosa.

Darin não conhece, mas aposto uma taça de Malbec que ele simpatizaria com João.

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Assim como o ator portenho, João trabalha muito e entende como poucos de banho quente.  Descobriu, ainda menino, no sertão baiano, que chuveiro, água limpa e esgoto fazem muita falta em nossa América.

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Capa do livro Birinaites, Catiripapos e Borogodó, de Luís Cosme Pinto(Photo: Reprodução)

João deixou a cidade de Guanambi para tentar dias melhores em São Paulo. Tentou e encontrou. Vende tomadas, interruptores, disjuntores e lâmpadas. Quando não está no balcão da loja, em frente ao Minhocão, o eletricista atende aos chamados do povo da Vila Buarque.

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João já tirou muita gente da escuridão e perdeu a conta dos aparelhos elétricos que renasceram em suas mãos. Entre todos, o chuveiro é o campeão de chamadas. Dia sim, outro também, ele vende ou conserta algum.

Assim nos conhecemos. Nesses dias escaldantes, em que São Paulo enfrentou mais calor que Teresina, meus banhos foram deliciosamente frios. Até o tempo virar e os termômetros despencarem. Aí descobri que meu chuveiro elétrico, não era mais elétrico. Era um chuveiro queimado.

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Com a insegurança dos aprendizes, levei uma hora para instalar a resistência que comprei do João. Quando senti que pinos e cavidades se encontravam ao som efusivo de “um cleque” gritei de alegria. Então, religuei a energia e... nada. A água não esquentou. Já era noite. Tomei banho frio. No dia seguinte, chuva, temperatura caindo e mais um banho de gato. Ligeiro e gelado. Pior ainda, a água era pouca, pingava preguiçosa.

Encasquetado e mal lavado, voltei à loja, pedi socorro. João não podia sair, mas deu um jeito. Vive disso, de dar um jeito.

Logo chegou com sua caixa de ferramentas. João é desses que tiram os sapatos na porta. Pediu licença, entrou no banheiro e me acalmou.

- O senhor fez direitinho, tá tudo certo aqui.

- Então, porque a água não esquenta?

- É isso que vamos ver.

João desmonta o chuveiro, examina os fios e a conexão do cano com a ducha. Pega os óculos pra perto, olha, olha... e, para minha surpresa, sopra o cano com força. Aí, me presenteia com o sorriso dos vencedores:

- Tá resolvido. Tinha uma pedrinha dentro do cano, que segurava a água. Com pouca água, a resistência não liga.

O eletricista me mostra a palma da mão: a pedra é pouco maior que um grão de arroz.

À noite, comemoro embaixo de um jato abundante e quente. Banho de embaçar espelho, de fazer azulejo transpirar. Longo demais para os tempos de hoje, reconheço.

Ainda embaixo d’água revejo João e Darín. Brasil e Argentina em seus contrastes e semelhanças.

Penso então com minha toalha, que pedra é essa em nosso caminho? O que impede uma convivência fraterna entre dois países tão parecidos e próximos? De verdade, nunca entendi a implicância de lá e de cá. Chega a ser ingênuo botar a culpa no futebol.

O que sei é que quanto mais vou à Argentina, mais admiro a terra de gente elegante, inteligente e aguerrida. E eles adoram passar férias aqui.

A crise interminável, com super inflação e miséria, vivida lá, lembra nossas décadas de sufoco. Também sofremos juntos as colonizações rudes, os horrores das ditaduras e a exploração dos países ricos. Sem falar da enorme quantidade de brasileiros e argentinos que no século XXI não têm direito ao banho quente, que Darín cobrou com a elegância de um tangueiro. Mas nem isso nos une

Não há Mercosul ou Portunhol que nos torne solidários. Sabemos mais da arte europeia, dos museus norte americanos e da moda no Japão do que da cultura do nosso vizinho.

Já repararam como desconhecemos as bandas e a nova geração de escritores e escritoras argentinas?

Vai aqui uma sugestão: um filme produzido pelos dois países e estrelado por Fernanda Montenegro e Ricardo Darín.

Podem ser essas as primeiras gotas de uma ducha de água fria nessa briga de irmãos ciumentos.

*Luis Cosme é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter.

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