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Pelo amanhã: o dia depois do golpe

A nova Política que vemos desde a libertação da caixa de Pandora das ocupações e manifestações dos últimos anos não é apartidária. Dela emergiu um discurso reacionário, sim, e que deu vazão ao golpe, mas também uma nova Esquerda que clama por horizontalidade

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A História nos é facilitada porque podemos, munidos das experiências que nossos antepassados viveram e perceberam, olhar sob os ombros de gigantes. Para uma análise  menos aturdida e mais apurada do último domingo, sigo orientação do mestre Hemingway: cerrar os olhos para ver melhor.

Diante do acirramento ideológico incomum no debate presidencial estadunidense, acostumado a mascarar antagonismos sociais mais profundos, o Papa, esse ainda mais pop que João Paulo II e decerto mais progressista do que todos seus antecessores, rechaçou o levante conservador que Donald Trump representa nos EUA: um verdadeiro cristão deve ser mais afeito a pontes do que muros. A ponte para transformações globais mais profundas não partirá do Capitólio yankee seguramente, mas o embate entre Sanders e Trump, dois emissores derrotados cujas mensagens ficam, é alegórico do tensionamento da luta de classes não apenas nos Estados Unidos, mas terrestre. Diante da crise planetária, Marx está só meio certo: dois espectros rondam o mundo, o Socialismo e o Fascismo, e um deles nos acenou ontem.

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Mais da metade de toda a riqueza produzida está nas mãos de corporações. A despeito da melhoria na distribuição de renda, no Brasil e no mundo, a desigualdade entre os mais pobres e os mais ricos nunca foi tão colossal. Sim, a Democracia que hoje vigora na maioria do planeta permite que a elite concentre mais recursos até mesmo se compararmos à pujante nobreza do Império Romano em seu auge, em termos absolutos e comparativos às classes menos favorecidas de suas devidas épocas. Contemporaneamente, a existência de blocos econômicos continentais é insuficiente pra salvaguardar as localidades do impacto interdependente de uma Economia global e, assim sendo, a crise do mercado rentista e especulativo em 2008, sofrida pelos Estados Unidos, reverbera no mundo até então. As soluções históricas fronte à crise, numa sociedade dividida em classes, a saber, uns que são donos meios de produção do que entende-se como necessário para viver (que varia de acordo com o tempo) e outros que cedem sua força de trabalho, sempre opera sob a lógica da tentativa máxima da manutenção das taxas de lucro (nunca tão altas!) o que implica que os mais afetados sejam sempre os mais pobres. Neste cenário, adotada a solução neoliberal de austeridade, o corte de gastos públicos provoca o abandono exatamente dos grupos sociais mais vulneráveis, aqueles que dependem de programas sociais e serviços públicos porque o Estado de Bem-Estar social, de maior ou menor desenvolvimento, não resolveu o problema da desigualdade por ela ser inerente e imprescindível ao Capitalismo, o que é ainda mais agudo por nossas terras. Neste contexto, é desvelada a contradição cruel na qual a suposta autorregulação do mercado só é possível pelo aparelhamento do Estado pelas elites empresariais, as quais, para sanar a crise criada pela falta de autonomia produtiva da população, condição desejada por essa mesma elite, tornam a esfera econômica neoliberal correlata a práticas de exceção no campo penal. Um “menos Estado” interventor resolverá com  “mais Estado” policial as condições que a própria elite criou. Não há exagero em atrelar o momento político a ares fascistas, ideologia que dá sentido ao impeachment sem motivo jurídico da Dilma. Ao Partido dos Trabalhadores, agora, à parte muitos dos seus passos desde a Reforma da Previdência em 2003, é dado tratamento similar ao de trabalhadores em geral durante as crises. Entoando o grande Brecht, não há nada mais fascista do que um burguês assustado.

Seria uma análise demasiadamente otimista, no entanto, dizer que o PT não tem adotado há anos uma agenda com ataques aos trabalhadores, especialmente os moradores da perifeira, intensificada no governo Dilma vide a proposta recente de ajuste fiscal. Ainda assim, o golpe não é outra coisa senão a resposta burguesa ao amanhã que está em disputa, estabelecido através da “ponte para o futuro” que Temer e o PMDB propõem, que intensificam a redução de direitos e amparo aos grupos desfavorecidos. Se há ponte, ela encontra um muro em seu fim, cujo caminho unívoco é o ontem. Como sugere a percepção política conservadora desde o argumento de Platão, o presente é visto com pessimismo, corrigível exclusivamente pelo passado. Queria eu gritar como são belos os burgueses, mas tudo é muito mais: sempre que entende como necessário, a elite está disposta a abandonar o discurso democrático. A mesma burguesia que defende liberdades individuais, tão logo tenha sua hegemonia afetada, se junta ao discurso mais conservador. Bolsonaro tem palanque hoje não apenas porque parcela do povo se sente representada por ele, mas porque sua fala provoca um esvaziamento da via representativa, elementar ao argumento de que a Política se resolve com o conhecimento estritamente técnico elaborado pelos economistas da elite, há algumas décadas neoliberais. A via militar só não é utilizada quando os mecanismos políticos e jurídicos permitem outras formas de golpe como a que vimos ontem. E é preciso perceber que, alterados uns e outros nomes, a base oligárquica que domina esse país é inalterável e mantém seu modo operacional. Apesar de 64 ser emblemático, podemos e devemos ir além: nem metade dos presidentes do Brasil foram eleitos, nem um terço dos presidentes do Brasil encerraram seus mandatos.

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Por Deus e pela família, incluindo o aniversário da netinha, eram os únicos argumentos a favor do impedimento da presidenta Dilma. O mérito propriamente dito das pedaladas fiscais, salvo desatenção deste que vos fala, foi mencionado menos de 5 vezes dos 367 votos SIM para o prosseguimento do processo. Por “Deus”, leia-se o que há de mais reacionário dentro da ética evangélica, ou seja, a contraditória associação entre o amor ao próximo (desde que o próximo não seja plural) com uma meritocracia inviável e o sufocamento dos direitos de toda minoria social. É um Deus de muros e de poucos. Por “família”, cuja referência sequer era à instituição mas à família do deputado votante, leia-se nada mais simbólico do que a histórica apropriação do espaço público pelo privado. O que estava sendo votado era a expurgação da Esquerda, um fantasma de Esquerda que o PT apenas suscitou nestes anos. A crítica ao PT é exatamente pelo que de positivo fez às minorias, não por ser seus silêncios e manutenções. A “ideologia de gênero”, o Foro de São Paulo (sic), o Bolivarianismo, a troca de sexo em crianças (pff!): um misto de conceitos torpes com boatos, invencionices e análises surreais. Trata-se da repaginação da imagem do “comunista comedor de criancinhas”.

Observado o fato de que a comissão de ética responsável por analisar o processo de impeachment tinha quase que sua totalidade investigada e que o presidente da Câmara é dos maiores lacaios deste país, se o cientista político C.B. Macpherson está certo em dizer que todo sistema político precisa conter uma análise das potencialidades humanas (antropologia) e uma justificativa da sua superioridade diante dos conflitos (ética), a base do argumento que levou ao golpe no Congresso está infincada não em uma dimensão ética que cria dispositivos contra a corrupção, mas na ideia de que tudo vale para tirar do poder grupos minoritários, mesmo que tenham sido dados direitos parcos e frágeis a eles, mesmo que sejam representantes eleitos pelo povo – como é de mérito real do PT. O golpe é o meio para levar ao fim máximo que é a intervenção ainda mais neoliberal, em que a recusa à corrupção é embuste da manutenção do status quo. Sua antropologia é a de que não é possível uma nova Humanidade. A de que só existe um tempo, o passado, que não pode ser e está sendo degenerado. Passado este marcado por todo tipo de desigualdade, entre brancos e negros, homens e mulheres, ricos e pobres, héteros e homo, cis e trans, presumido como condição natural de nossa espécie. Daí a negação de toda transformação social e de qualquer discurso que clareie e lute a partir destes antagonismos.

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                  Assim que as elites puderam expulsar o analfa que não aprendeu a apreciar o discreto charme da burguesia, como Eduardo Paes reclamou em ligação, o fizeram. O golpe em curso é um misto de repulsa das elites a um vulto de Esquerda, com a incapacidade do PT ir à frente com os projetos neoliberais. De um lado, os megaempresários querem tomar as rédeas deste projeto, defensores dele por excelência. De outro, a governabilidade pautada no presidencialismo de coalizão (seguido de corrupções recorrentes porque de origem sistemática) promoveu distância das ruas tal que divide a opinião de que é traição de classe ou estratégia excessivamente morosa para um futuro de justiça social. A bem da verdade, a postura de conciliação de classes magistralmente exercida por Lula  não se deve penas a seu carisma e articulação, mas ao contexto internacional com o qual Dilma não pôde contar. A realidade excruciante é a de que o PT foi incapaz de ir adiante no projeto neoliberal bem como num projeto efetivamente de Esquerda porque seu reformismo não tem vocação para ambos. Neste sentido, não conseguiu poupar anéis nem dedos, foi-se tudo. Há golpe e é das oligarquias, mas essa oligarquia é a mesma que o PT alimentou.

O PT deixa e não deixa um vácuo político. Deixa, em parte, porque é imprescindível criar um bloco histórico com o Feminismo, as comunidades tradicionais, a periferia, os LGBT, os movimentos estudantis e trabalhistas das ocupações e uma nova elite intelectual, os quais não podem se aliar aos mandatários históricos deste país e que não devem se satisfazer com vitórias simbólicas. Mulheres, negros, índios, gays, trans, etc, precisam, sim, ocupar espaços de destaque na sociedade. Mas se a luta tem como pauta conquistas de mote identitário em vez do rearranjo estrutural da sociedade, as elites se reestruturarão. Não basta inserir, é preciso incluir. Democracia é expandir acesso também, mas sobretudo poder de decisão. De outro modo, o PT não deixa vácuo não no sentido de ter perdido sua base, as ruas ainda mostram que ela existe, mas porque seu caminho institucional se demonstrou equivocado. O golpe do dia 17 reencaminha o Estado aos donos históricos, a quem o PT tentou vencer no jogo de xadrez ou que foi encantado pelo canto da sereia - versões históricas que ficarão. A elite apenas reividindica a César o que é de César, a temer o que é de Temer.

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A nova Política que vemos desde a libertação da caixa de Pandora das ocupações e manifestações dos últimos anos não é apartidária. Dela emergiu um discurso reacionário, sim, e que deu vazão ao golpe, mas também uma nova Esquerda que clama por horizontalidade. Ambas desconfiam, ainda que por motivos bem distintos, da representatividade. O fato notório é que a Democracia Representativa existe, e tal qual a gravidade, exerce forças sobre nós independente de nossa predileção por ela. Os movimentos sociais aglutinados em torno do PT, bem como aos grupos que hoje emergem, precisam formar uma frente de Esquerda que não promova discurso de Esquerda e prática de Direita, que crie outros dispositivos institucionais de participação popular. Por conseguinte, sua amplitude precisa ser questionada.

“Será que Allende sonhou muito alto?”, pergunta a personagem Marie Claire na obra Dança Imóvel do peruano Manuel Scorza. Eis que o personagem revolucionário Santiago arrebata: “Nunca se sonha muito alto (...) Quando um revolucionário não é um poeta, acaba por ser um ditador ou um burocrata, delator dos próprios sonhos”. Cabe a nós, na produção de um amanhã que rompa de uma vez por todas com a velha elite golpista e reacionária, encontrarmos poesia. E é nas ruas que ela está e sempre esteve.

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