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Francisco Attié

Escritor e jornalista. Seus textos e fotos são publicados na revista GQ e no jornal Gothamist em Nova Iorque

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Perdão para quem merece

Vi o mais novo filme de Paolo Sorrentino, sobre um presidente idoso, mas não identifiquei no personagem traço de Lula, mas uma caricatura de um passado europeu

O presidente idoso: nem Lula, nem Trump (Foto: Andrea Pirello)

Durante o Festival de Cinema de Nova Iorque (NYFF), após a estreia do mais novo filme de Paolo Sorrentino, diretor de A Grande Beleza, e A Mão de Deus, fiz uma pergunta ao italiano. Seu filme, chamado La Grazia (O Perdão), conta a história dos últimos seis meses de governo de um presidente idoso, que pretende, ao final de seu mandato, se aposentar. Durante o filme, o presidente Mariano De Santis (interpretado pelo ator favorito de Sorrentino, Toni Servillo) se mostra angustiado pela vida, pelo peso das decisões que deve tomar pelo bem de seu povo, e por uma pergunta que vaga constantemente por seus pensamentos: a quem pertencem nossos dias?

Pois bem, disse a Sorrentino que, vindo de um País cujo presidente é bem velho, Lula, e morando em um País cujo presidente também é bem velho, Trump, inevitavelmente me via comparando o seu presidente, De Santis, àqueles que ocupam tanto espaço no nosso zeitgeist. Tentava abstrair ideias, características, posições políticas, que conviessem às figuras reais, mas, ao mesmo tempo, achava interessante o fato de a primeira-ministra de seu país, Giorgia Meloni, não ser bem velha, e logo, tendo em vista a pergunta que ronda o filme, gostaria de saber se ele achava que seus dois líderes, tanto o fictício quanto a real, conseguiriam responder àquela pergunta. 

O filme tinha surgido de uma notícia de jornal, ele explicou, segundo a qual o presidente da Itália, alguns anos atrás, havia concedido perdão a um homem condenado pelo homicídio de sua esposa. Para Sorrentino, o fato de o presidente da época ser católico evidenciaria questões de ordem moral mais alta. Ele, então, buscara escrever um roteiro que pudesse complicar ainda mais a decisão moral. Essa era sua prioridade, e não comentar sobre o poder, disse ele. Em sua história, então, temos o presidente De Santis, um homem incapaz de tomar decisões sem que primeiro as ponderasse à exaustão, ruminando sobre três importantes decisões morais ao fim de seu mandato. A primeira, mais significativa do ponto de vista nacional, se assinaria uma lei de eutanásia. As outras duas, similares entre si, sobre a possibilidade de perdão para duas pessoas condenadas por homicídio: uma mulher, jovem, que matara o marido enquanto ele dormia, com 18 facadas; e um homem, idoso (talvez tão idoso quanto o presidente), que asfixiara a esposa que estava no estágio final do Alzheimer. 

Enquanto reflete sobre cada caso, De Santis é atormentado por um acontecimento de 40 anos atrás, quando sua esposa o teria traído. Muito tempo do filme gira em torno de sua obsessão por descobrir quem teria sido a pessoa que o fez corno. Para quem conhece o cinema de Sorrentino, esse tipo de “piada” não é fora de tom. Mas a quantidade de tempo concedida a tal “piada” é deveras longa. Embora, como disse o próprio diretor, se o filme busca elucidar questões de ordem moral, então claro que a vontade de ruminar no pessoal é válida. E não acontece de todo à parte do resto da história—frequentemente as outras personagens dão indícios da relevância da traição. Por exemplo, enquanto De Santis conversa com o homem que o sucederá como presidente, um antigo colega de escola, ele lamenta o falecimento da esposa. E quando o colega, íntimo do casal, lamenta também, aflora em De Santis uma antiga suspeita que esse teria sido o amante de sua esposa. Mas La Grazia não é Dom Casmurro. E ao fim, a suspeita não só é infundada, como também a resposta do enigma é telegrafada, e sua revelação—sem spoilers—serve para um perdão pessoal, uma catarse pessoal, mas pouco elucida além disso.


Não rejeito a importância da catarse. Nem da investigação pessoal. Pelo contrário. Mas acho um tanto quanto fútil quando uma questão de ordem social se fecha tanto ao nível individual. E por essas e outras tantas, Sorrentino se mostra sempre, e quase que somente, capaz de fechar mais e mais o escopo de seu filme para que se evite a possibilidade de traduzi-lo para a vida real. Disse também, após o filme, que tendo em vista a capacidade (intelectual? cognitiva? Não foi claro) de nossos líderes atuais, o filme era uma completa fantasia. Sua tradutora verteu do italiano “fantasia” para o inglês “ficção científica.” Embora não seja uma tradução ao pé da letra, explicita ainda mais o âmago do cineasta: o filme não reflete o mundo atual, mas reflexões morais, talvez eternas e universais, de cunho pessoal. 


Por isso julguei interessante saber do diretor se ele via sua personagem e a líder de seu país capazes de responder à tais reflexões. Afinal, por mais fantasiosa a história, seu protagonista é, ainda, o presidente de um país. Sorrentino, porém, não entendeu, primeiramente, se me referia ao filme ou à vida real. Esclareci que me referia aos dois, e ele respondeu que, em relação ao filme, achava a resposta um tanto quanto óbvia. “Nossos dias pertencem a nós,” disse. “Mas a dificuldade se encontra em entender que nossas vidas são importantes.”

Já em relação à primeira-ministra, ele desconversou. Propôs que os obstáculos da vida real são maiores do que do filme. Esse é um paradoxo recorrente, não só do cinema, mas da arte em geral. Se o artista busca traduzir seus pensamentos, seus desejos, seus sentimentos sobre o mundo atual, por meio de sua arte, mesmo que de forma inconsciente, ele nunca será capaz, talvez, de elucidar muito além do que sua própria percepção de mundo. Não me refiro aqui à arte identitária, mas simplesmente à ideia presente, tanto na psicanálise quanto no jornalismo, ou mesmo no direito, de que cada pessoa é fruto de seu passado—nossas experiências moldam nossas decisões. 

O presidente de Sorrentino é um jurista. Famoso por seu extenso manual sobre direito penal. É, em suas próprias palavras, um homem fatalmente enfadonho. Não aguenta falar de si próprio. Não é capaz de dizer o que realmente pensa. Não é capaz de demonstrar seus gostos, se não o gosto pelo direito. É obviamente muito reprimido, e sua repressão, aparentemente causada por si mesmo, é o que o transforma em um grande jurista, capaz de investigar, ao extremo, o direito penal, no qual se concentra mais uma vez agora, antes de terminar seu mandato e se aposentar. Sua caricatura de um jurista não é forçada. (Deus sabe que, por meio de meus pais juristas, conheci todo tipo de personagem cansativa, tediosa e azucrinante do mundo do direito.) Mas a decisão de transformar tal caricatura, tão burocrática, tão maçante, em presidente e herói de seu filme, revela mais sobre Sorrentino do que sobre um presidente nos dias atuais. 

A ambição política, para Sorrentino, é uma coisa torta. Ele deixa isso claro em uma conversa no último terço do filme, entre o presidente e sua melhor amiga, após uma apresentação no teatro nacional. Quando chegam os dois ao camarote, a plateia bate palmas para o presidente. Um homem grita agradecimentos por tê-los livrado do “tolo imprudente” anterior. O momento é rápido e direto, permite ao público tirar dali o que quiser. A primeira impressão, conhecendo um pouco já o presidente, é que o homem se refere à calma, à capacidade de conciliar, à falta de controvérsias, que imperam na forma de reger de De Santis. Fica a ideia de que o presidente anterior talvez fosse um homem mais opinativo, mais barulhento, mais conflituoso. Talvez mais Trump, mais Bolsonaro, embora De Santis esteja longe de ser a correção de tais tolos—De Santis não é um Lula. Talvez seja mais Biden. E por esse lado, um homem incapaz de tomar decisões se torna um homem covarde. 

Mas se pensarmos pelo ponto de vista das pessoas que integravam a plateia naquele teatro—burgueses ricos, quiçá milionários, gente de classe alta—o grito então do homem pode ser também o dar graças a Deus porque o tal presidente é um tipo moderado, que claramente não está ali brigando por causas sociais, e sim pelos mais finos pontos da lei, as mais delicadas questões morais, aquelas que talvez aparentem ser mais pessoais e cunhadas por classes especificas, mais do que questões que visam a população em geral. No carro, após o teatro, a amiga busca as conversas habituais dos dois, mas De Santis está claramente estarrecido, preocupado com algo, e reclama do interesse do político, que melhor seria se as pessoas naquele país não tivessem ambição.


Não é uma teoria nova, a de quem um líder digno não deva ter a ambição de ser líder. Até por Game of Thrones essa ideia já passou… Mas é uma teoria um tanto quanto ingênua, presa a uma visão de mundo antiquada. Quase como se pensasse que vivemos ali numa pequena cidade de província, onde, dotados de poucos problemas, precisemos somente de um líder gestor, garantista, que promova a conservação do bem comum (que já é comum), portanto necessitando, simplesmente, de uma nova camada de tinta. O líder ideal, para Sorrentino, é o homem que não quer ter em seus ombros o peso dos outros, mas que, se chamado ao posto, e extremamente técnico como é, e tecnicamente bem dotado, é capaz de trabalhar para o bem comum. É o homem que ignorou a lâmpada queimada até não poder mais e agora tem de trocá-la para poder voltar a cagar iluminado.

E ao clamar por tal característica, e fazê-la vital e idiossincrática em sua personagem fantástica, Sorrentino acaba por dizer que o contrário impera na vida real. E claro que não está errado. Um idoso que busca ser presidente precisa ser ambicioso, precisa ser egocêntrico. Na verdade, qualquer pessoa, de qualquer idade, que busca o poder tem de acreditar muito piamente em si própria e em sua capacidade de ajudar um povo. Não enxergo como crime a ambição, o egocentrismo (quando diferente do egoísmo), se presentes na pessoa de um presidente. Talvez seja um pré-requisito. É uma crítica idosa, fantasiosa. E de pouco serve para diferenciar um Lula de um Trump. Para Sorrentino, políticos, independentemente de suas diferenças ideológicas, são farinha de um mesmo saco. E nosso mundo é sombrio por causa deles.

Após o filme, Sorrentino argumentou que La Grazia é um filme sombrio, tendo em vista a dificuldade de seu presidente de expressar sua própria vontade, e a vontade de gerações mais novas. E eu fiquei ali pensando, que raios de homem perfeito é esse, cuja única dificuldade seja expressar sua própria vontade? Quem é esse homem que sai da fábrica com a certeza de que suas vontades são a vontade de todos, ou, mais importante, o que precisamos todos? Porque, se fosse esse só o problema dos líderes atuais, então poderíamos nos tranquilizar sabendo que qualquer coisa que fizessem esses líderes seria pelo bem de toda a população. E como pode ser esse o problema do político quando travamos uma batalha tão clara entre duas visões de mundo tão opostas?

Sem revelar a conclusão moral do filme, posso dizer simplesmente que após tomar as decisões centrais da história, De Santis decide, quase como um epílogo, que não terminará o mandato. Renunciará ao cargo duas semanas antes do término, e, como tem direito, pela Constituição italiana, um ex-presidente, se tornará senador vitalício, e poderá, então, votar no próximo presidente. (A Itália tem um sistema de governo muito masturbatório. Os senadores escolhem o presidente. O presidente escolhe o primeiro-ministro. O presidente aposentado vira senador vitalício. Escolhe seu sucessor… E assim por diante. E que se dane o povo!) Afinal, a fantasia de Sorrentino não é a democracia, mas que a falha no sistema de governo atual é o humano falho que ali busca sua expressão. O presidente De Santis é humano só em suas falhas. Embora seja um homem de indestrutível caráter, alto nível de educação, e inabalável aptidão técnica, peca por não ser capaz de expressar suas vontades. Peca por não ser capaz de mostrar que gosta de rap, que gosta de cantar, de escrever poesia; peca por não ser capaz de superar o chifre, ou de perdoar aquele que o fez traído, peca por se reprimir e retardar suas decisões. Decisões essas que, vindas do homem que ele é, só poderiam estar certas. De Santis é, no âmbito profissional, perfeito. Falha por não corrigir seus erros humanos. 

Isso não é um presidente. 

E não penso que seja capaz de responder à pergunta chave da história. Meloni, também não a vejo muito capaz. E se serve de algum consolo para o leitor que ficou até aqui esperando a conclusão, não acho que Trump seja capaz de responder à pergunta, também. 

A quem pertencem nossos dias?

Se pertencem a nós mesmos, que bom. Mas não é isso que pensa a direita. A direita, elitista, se imagina dona da verdade, e sua verdade, egoísta, existe basicamente para a preservação de seus privilégios. Seja no Brasil, nos Estados Unidos, ou mesmo na Itália. 

Busquei assistir La Grazia porque queria escrever uma história sobre a importância de um líder como Lula. Mas se tivesse saído do filme pensando que vi ali alguma expressão do presidente brasileiro, teria saído maluco.

O presidente do filme acaba por ser mais uma caricatura de um passado europeu do que um presidente presente. Sorrentino, como comentarista contemporâneo, é ausente. Ao rejeitar a possibilidade de criticar o mundo atual, ao se prender a uma fantasia velha, se fecha para si próprio. Se fecha para essa Europa que já não é mais o centro do universo. 

Seu filme é, por fim, mais um prego no túmulo esplêndido de um mundo caduco. Ele mesmo dá importância à necessidade de que nossos líderes ouçam as novas gerações. Finalmente aí uma crítica interessante, porque, ouvir as gerações mais novas, nada mais é do que ouvir aqueles que pensam no futuro. E no Brasil, nesse momento, temos nosso futuro sequestrado por um bando de chantagistas amargurados. Completamente investidos em fazer retornar um mundo decadente e murado. Se nossos dias pertencem a nós, então, certamente, não pertencem aos bilionários, aos coronéis, aos teólogos dogmáticos, aos grande fazendeiros, aos betistas e aos militares, a essa direita que asfixia o país com suas políticas amarguradas.

E se essas pessoas não ligam para o Brasil, não escutam a população, então que deixemos de escutá-las. Ou, melhor, que deixemos de analisá-las como contrapontos equilibrados daquelas que nos querem o bem. Não são todos farinha do mesmo saco. Mas nesse saco tem farinha estragada. E é fundamental sermos capazes de nominar quem está buscando estragar a farinha. Quem saqueou a dispensa, quem botou fogo na casa. 

Demos um passo importante, no mês passado, quando, pela primeira vez em nossa história, julgamos e condenamos aqueles que nos fizeram mal. Mas a luta não acabou, e enquanto tentamos consertar a casa (não porque é necessário, mas porque gostamos de viver na casa), há aqueles que buscam uma ideia deturpada de perdão, uma ideia, que ninguém que pensa no futuro da nação quer, uma ideia amplamente rejeitada pelo povo e pelas gerações mais novas. 

Política não se faz por exceção, e aqueles que governam nem sempre pensam em interesses sociais. Muitas vezes, sendo gentil, pensam em minúcias da lei, em problemas da elite, e não na proteção das minorias, ou nas necessidades da população. No Brasil é assim. Mas também na Europa, e nos Estados Unidos. A resposta não está por lá.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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