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Piketty e alguns problemas sociais brasileiros

Tomando como alvo principal a regulação do capitalismo, de modo a reduzir as desigualdades, a obra traz grande contribuição à seara intelectual e política socialista

Tomando como alvo principal a regulação do capitalismo, de modo a reduzir as desigualdades, a obra traz grande contribuição à seara intelectual e política socialista (Foto: Roberto Bitencourt da Silva)
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A obra "O capital no século XXI", do economista francês Thomas Piketty, tornou-se uma sensação editorial e ganhou expressiva projeção nos debates econômicos e jornalísticos. No Brasil, há poucos meses foi publicada uma coletânea de artigos, organizada pela revista Le Monde Diplomatique Brasil, voltada à análise da obra. Dias atrás foi lançada a edição do badalado livro no país, pela editora Intrínseca. Já submetido a inúmeras avaliações, faço observações sobre o livro a partir de alguns problemas sociais brasileiros.

Sob um ângulo historiográfico, se pode afirmar que "O capital no século XXI" lida com o tempo de longa duração, permitindo ao leitor alcançar uma visão abrangente sobre a evolução do capitalismo contemporâneo. Suas fontes de análise derivam, principalmente, da história econômica dos países desenvolvidos. Considerando que esses países constituem a linha de frente da civilização capitalista, com potenciais tendências irradiadoras pelo mundo, a perspectiva histórica proporciona robustas justificativas a algumas ideias defendidas por Piketty.

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Uma dessas ideias afirma que o baixo grau de intervenção estatal na economia cria um capitalismo patrimonial, apoiado em rendimentos sobre a acumulação herdada do passado. As rendas derivadas do patrimônio superam, e muito, os ganhos obtidos pela produção presente e pelo trabalho, ampliando as desigualdades sociais. O passado incide decisivamente no presente e os herdeiros da abastança tendem a controlar a economia mundial. Essa é uma das principais mazelas do nosso século, identificada por Piketty.

Determinadas questões destacadas pelo economista são particularmente interessantes ao público brasileiro. Um tema passível de estimular a reflexão é o investimento estrangeiro na periferia capitalista. Piketty entende que as "nações ricas" beneficiam-se do fato de terem maior controle sobre as propriedades em suas economias, assim como detém investimentos no exterior. Ganham duplamente, com rendas superiores à sua produção interna.

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Ao contrário, países em que os ativos econômicos (terras, empresas, imóveis, equipamentos etc.) pertencem, em boa medida, a grupos estrangeiros, a renda nacional tende a ser inferior à sua capacidade produtiva, ao trabalho despendido na economia do país. Para usar o vocabulário dos antigos nacionalistas das esquerdas brasileiras, ocorre um processo de "sucção das rendas" produzidas pelo trabalho das nações periféricas.

Mesmo que adepto do livre comércio, o autor não deixa de problematizar o perfil dos investimentos estrangeiros nos países "emergentes" e "pobres". Seguindo sua reflexão, é possível argumentar que a instalação de montadoras de tecnologias e componentes importados, como se faz no Brasil, não é um bom negócio. Não estimula a cadeia produtiva, emprega pouco e não demanda formação profissional elevada, além de permitir a remessa de lucros excessivos ao exterior, gerando desequilíbrios entre a produção e a renda alcançada.

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Mobilizando o caso chinês, o autor acentua a necessidade de controle estatal sobre tais investimentos. Portanto, de redefinição dos termos da acolhida do capital estrangeiro. Transferência de tecnologia e participação do capital estatal junto ao estrangeiro na gestão dos empreendimentos: eis algumas medidas para fazer com que o investimento externo contribua para o desenvolvimento econômico e social das nações periféricas. É nesse eventual cenário, como sublinha Piketty, que os investimentos em educação pública poderiam jogar um papel decisivo.

A apropriação ativamente criadora do conhecimento e das técnicas que vêm de fora pode elevar a densidade tecnológica da economia, assim como o perfil dos postos de trabalho e da educação. Conforme análises de Celso Furtado, o engenho criativo e a educação deveriam representar fatores importantes no desenvolvimento econômico e social brasileiro. Mas, como lembra Piketty, convergindo com Furtado, isso não pode ocorrer por meio de uma acolhida submissa e irrefletida do investimento estrangeiro.

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Outra questão de destaque no livro é o crescimento das rendas obtidas com alugueis. Tomando a França como referência, vemos que a participação dos alugueis na renda daquele país saltou de 5% para 10%, desde a década de 1980. Note-se que se trata de uma sociedade que, na "era de ouro do capitalismo", regulava os preços dos alugueis e buscava exercitar o direito à moradia. Sem dúvida, a especulação imobiliária no Brasil ganha tons de maior dramaticidade, haja vista não termos experimentado, em nossa história, iniciativas públicas consistentes na promoção do direito à moradia.

Não é gratuito que, hoje, favelas na zona sul carioca convivam com alugueis e aquisição de casas por estrangeiros, elevando os preços e expulsando moradores pobres. A propaganda convencional de imóveis para as classes médias e altas apela, insistentemente, para que se "faça um bom negócio", em vez de registrar uma possível qualidade de vida em nova moradia. Com efeito, uma especulação sobre necessidade humana elementar e que não guarda qualquer relação com investimento coletivamente produtivo.

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Os gráficos mobilizados pelo autor permitem observar a trajetória dos ganhos de capital baseados no parasitismo rentista, nas últimas décadas. O que expressa uma desvalorização do trabalho, na esteira da hegemonia neoliberal. Um fenômeno que incide na cultura e nos valores que orientam o comportamento coletivo. A respeito, vejamos duas paixões nacionais, o futebol e a novela, enquanto arquétipos de um mundo que tem depreciado o trabalho.

Entre meados dos anos 1970 e a década de 1980, Zico foi o maior ídolo do futebol brasileiro. Símbolo dos valores morais do trabalho e da dedicação pessoal chegava mais cedo e saía mais tarde dos treinos. Exaustivamente treinava cobrança de faltas. A geração seguinte teve em Romário o seu ídolo maior. Uma das suas frases mais conhecidas – e sintomáticas, para o que nos interessa – era "treinar para que?". Há pouco o futebol brasileiro teve em Ronaldo seu principal ídolo. Após algumas lesões e escolhas profissionais, ainda jovem, viveu basicamente para disputar Copas do Mundo. Acumulou capital nos primeiros anos – financeiro, mas também simbólico, sob a condição de craque internacional –, vivendo do passado em boa parte da sua trajetória em campo. Uma peculiar forma de rentismo, um "rentismo da bola", que não deixava de desvalorizar o trabalho enquanto componente ético de orientação do comportamento.

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Em outra paixão nacional, as novelas, os áridos números apresentados por Piketty também podem ser traduzidos. Décadas atrás, Regina Duarte interpretava protagonistas que tinham no sacrifício, no trabalho e no mérito individual valores centrais para alcançar mobilidade social. Em uma novela começava como vendedora de sanduíches na praia e chegava a terminar a história como proprietária de rede de restaurantes. Em tempos mais recentes, não é difícil observar a frequência de protagonistas que visam à ascensão social por vias que rejeitam o trabalho.

Por conta de um padrão civilizatório em que pouco se valoriza o trabalho, superestimando o êxito financeiro a todo custo, não é à toa que, na educação brasileira, esteja disseminada a prática da busca por títulos escolares e universitários, deixando de lado o essencial: o estudo. Nesse sentido, a pesquisa de Piketty possui o mérito maior de contestar frontalmente o coração do liberalismo prevalecente: a ideia de que a riqueza e a propriedade são legítimas sob a condição de frutos do mérito e da capacidade individuais. Na contramão, o rentismo, exaltado pelo capitalismo em vigor, baseado no patrimônio herdado, não possui relação com o trabalho e a iniciativa individual. Ademais, influi perniciosamente nos valores que norteiam todo o tecido social.

A herança já chegou a sofrer cerca de 80% de tributação nos EUA. Isso a partir dos anos 1930, com a clara intenção de inibir as desigualdades sociais e canalizar os recursos financeiros para atividades não parasitárias. Hoje, a Inglaterra revela tributação sobre a herança em torno de 40% e os EUA, sob o influxo conservador, próximos de 30%. No Brasil não chega a 5% (O Estado de S.Paulo, 23/05/2014). Vale destacar ainda que a tributação brasileira possui um grotesco caráter regressivo, com uma dilatada tributação indireta sobre o consumo e, em parte, direta, afetando especialmente as classes populares e médias. Os ricos e capitalistas brasileiros choram de barriga cheia.

Visando a atenuação das desigualdades sociais em escala mundial, entre as propostas que o autor apresenta está o incremento da tributação progressiva sobre o capital (financeiro e heranças). Ademais, em vez de os Estados nacionais ampliarem as rendas dos portadores de títulos, com juros – aumentando as dívidas públicas e comprometendo os serviços de interesse social –, o autor sugere a taxação excepcional sobre as grandes fortunas para o abatimento das dívidas públicas dos Estados nacionais. Entende que, preferencialmente, sejam iniciativas redistributivas coordenadas em escala regional ou global, devido à possibilidade de fuga de capitais em um país. Em âmbito nacional, chama a atenção para a necessidade de reforço da progressividade do imposto de renda.

Tomando como alvo principal a regulação do capitalismo, de modo a reduzir as desigualdades, a obra traz grande contribuição à seara intelectual e política socialista. Entenda-se socialismo sob a acepção de uma "administração social do capitalismo", como define o cientista político Valter Duarte. Não é, pois, um livro norteado pela perspectiva marxista de superação dos "grilhões do capital".

Contudo, para os histéricos reacionários brasileiros que em tudo veem "comunismo", é plausível que o livro de Piketty seja demonizado como uma malévola obra vermelha. Aproveitando o ensejo, seria nada mal que a parte abastada de tais histéricos começasse a buscar rendimentos no trabalho, deixando de lado heranças, juros e alugueis. Seria um exemplo a dar alguma legitimidade ao princípio liberal da iniciativa individual, que dizem defender.

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