Carlos Vainer avatar

Carlos Vainer

Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional

8 artigos

HOME > blog

Pluralismo ou capitulação?

São bem conhecidas as consequências das tentativas de negociação com os militares

Estudantes ocupam prédio da Uerj em protesto (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Importante ler e refletir sobre texto “Uma Reação Contraintuitiva” (O Globo, 15/02/2025), de Pablo Ortellado. Com graduação e doutorado em Filosofia, o colunista d´O Globo é professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo. Altamente qualificado, fino analista do que foram as Jornadas de Junho de 2013 (https://www.youtube.com/watch?v=cYbs5k6Pqxg), por isto mesmo o que escreve deve ser levado a sério.

Na referida coluna, o autor questiona a estratégia de resistência das forças “progressistas” dos EUA à ofensiva trumpista. Ele argumenta que se deveria reconhecer que Trump expressa e representa as convicções de importante parcela da população e que seu “populismo” ganha força quando ataca as "elites progressistas" que teriam ocupado o aparelho de estado, impondo ao conjunto da sociedade algo que parcela desta repudia. Em consequência, afirma, os "progressistas" deveriam abrir mão de posturas que considera intransigentes e aceitar a pluralidade democrática, que acolheria como legítimas as demandas e projetos reacionários das lideranças e bases sociais do trumpismo. 

Não há como discordar da constatação, nem nova, nem original, de que Trump e o trumpismo não nasceram à margem da sociedade estadunidense, desde sempre profundamente desigual, racista e discriminatória, e cujas instituições republicanas e relações com o mundo enfrentam profunda crise. Também estou de acordo que os “progressistas”, os “democratas”, as “esquerdas”, seja lá qual for o nome que se quiser dar, não se têm mostrado capazes de enfrentar a ofensiva da extrema direita nos mais diferentes países. É minha convicção, porém, de que isto se deve, não como sugere Ortellado, a qualquer tipo de intransigência, mas à fragilidade, e mesmo inexistência, de propostas e projetos societários, econômicos, políticos e culturais alternativos aos que ofereceram o neoliberalismo nos últimos 40 anos e ao que propõe hoje a extrema direita frente à crise da globalização neoliberal e das instituições e partidos que conformam a democracia liberal representativa. 

Para Ortellado, a adoção de uma postura pluralista democrática que reconheça a força e legitimidade da extrema direita no tecido social deveria levar os “progressistas” a buscar, de alguma maneira, dar satisfação aos sentimentos e anseios das parcelas da população que apoiam Trump. E neste ponto é bom lembrar que estamos falando de sentimentos, anseios e convicções racistas, homofóbicas, xenofóbicas, obscurantistas e autoritárias. Adotando uma perspectiva que busca edulcorar como realista, sóbria e equilibrada, afirma: "Uma reação mais estratégica, e também mais pluralista democrática, seria os progressistas reconhecerem algumas queixas que alimentam o populismo, reformando as instituições de modo controlado, para que se tornem mais equilibradas e plurais e para que ajam com mais sobriedade". 

Robert Dahl (1915-2014), um dos principais teóricos da democracia liberal representativa, talvez uma das fontes de inspiração de Ortellado, entendia ser condição indispensável ao funcionamento do pluralismo democrático (poliarquia) que aqueles que almejam controlar ou influenciar a tomada de decisões devem “subscrever as normas de uma cultura política democrática, ou seja, aceitar a alternância de poder, o direito de outros grupos à existência e os limites dos métodos de competição política” (Paul Hirst, Pluralismo. In: OuthWaite & Bottomore, Dicionário do Pensamento Social do Século XX, Zahar, 1996). Alguém acredita que Trump ou Bolsonaro subscrevem estas normas? 

Ortellado, porém, parece atribuir aos “progressistas” a rejeição do pluralismo democrático. Ao fazê-lo, deixa de lado a natureza e a vocação da extrema direita, para a qual não há negociações possíveis, mesmo porque os "outros", os "progressistas", os "comunistas" e os “ateus” são o mal personificado, o demônio na Terra. São bem conhecidas as consequências das tentativas de negociação com o fascismo, com Hitler e, na história pátria, dos acordos que líderes de uma direita que se queria democrática pensaram ser possível fazer com os militares golpistas de 1964... e que alguns hoje, tentam fazer hoje com os golpistas de 8 de janeiro de 2022. 

“Realista” e “pragmático”, diriam alguns, em sua busca de conciliação e convivência "pluralistas", Ortellado dá um exemplo que bem ilustra o que propõe: "Precisamos de currículos escolares menos progressistas e de uma justiça mais sóbria e equilibrada, mesmo diante de ataques à democracia (sic!!!)". Quanto “menos progressistas” deveriam ser nossos currículos? Qual a taxa de progressismo aceitável para a extrema direita e para um estado “pluralista democrático”? Deveriam os currículos silenciar sobre a escravidão, sobre o extermínio das populações originárias? Deveriam silenciar sobre a diversidade de gêneros, adotar o binarismo homofóbico, rejeitar a ciência, acolher o negacionaismo vacinal ou o negacionismo climático? Seria “sóbria e equilibrada" uma justiça que abdicasse de penalizar ou penalizasse mais suavemente golpes de estado, crimes contra direitos humanos e a violência policial contra negros?

Ao final da coluna, uma conclusão que não surpreende: devemos aprender com o que se passa nos EUA e ainda temos dois anos para evitar que o mesmo aconteça por aqui. Para isso, é o que fica entendido, temos que abdicar de qualquer intransigência que favoreça a narrativa direitista, temos que tratar com “sobriedade” e “equilíbrio” as “queixas” bolsonaristas, mesmo que afrontem o regime democrático. Poderíamos, talvez, quem sabe, num gesto inicial de boa vontade, começar banindo de nosso vocabulário e lutas, expressões e temas como direitos humanos, diversidade e inclusão, gênero, mudanças climáticas, racismo, entre outras. Ora, sejamos claros, isso não tem nada a ver com pluralismo, democracia, realismo, sobriedade ou equilíbrio, e merece apenas uma designação: capitulação. Certamente estamos desafiados a (re)inventar e (re)construir, na esfera pública, no tecido social e nas instituições, formas políticas e culturais de enfrentamento às forças do atraso, do obscurantismo, do autoritarismo, da intolerância e da corrosão da solidariedade social, mas estas formas não poderão contemplar qualquer forma de leniência, acomodação ou capitulação. Afinal de contas, ainda há valores e princípios que não são negociáveis.

Carlos Vainer


Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro/Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.