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Alexandre Aragão de Albuquerque

Escritor e Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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Polianas

Publicado em 1913, o romance Pollyanna se tornou célebre por exaltar o otimismo como o princípio moral e emocional da ação humana

Polianas

Publicado em 1913, o romance Pollyanna, da escritora estadunidense Eleanor H. Porter, é uma obra literária dedicada ao público infanto-juvenil que se tornou célebre por exaltar o otimismo como o princípio moral e emocional da ação humana.

Pollyanna Whittier, uma menina órfã que foi morar com a tia Polly Harrington, mulher rígida, severa e moralmente fechada, pratica o “jogo do contente”, estratégia ensinada pelo seu pai, cujo escopo é encontrar algo de positivo em qualquer situação, por mais difícil que seja.

O livro se estrutura como uma sucessão de encontros em que o otimismo da protagonista funciona como uma espécie de força transformadora, suavizando dores, ressentimentos e conflitos. Com uma linguagem simples e afetiva, a narrativa privilegia situações morais exemplares, reforçando valores como bondade, empatia e resignação diante do sofrimento.

No entanto, contemplando o referido romance com outras lentes mais reflexivas e críticas, pode-se questionar que o otimismo irrestrito apresentado na obra tende a minimizar a realidade concreta com seus conflitos sociais, econômicos, psicológicos e estruturais, sugerindo que basta uma atitude interior para solucionar quaisquer problemas profundos. 

A partir deste ângulo crítico de leitura do livro originou-se o termo polianismo, hoje usado para designar uma postura ingênua ou mesmo dissimuladora da realidade.

A Síndrome de Poliana, termo adotado por alguns autores da ciência política, usado de forma simbólica, designa uma postura ideológica marcada por otimismo compulsório que aliena o sujeito – pessoal e coletivo – da realidade concreta, histórica e contraditória.

Essa síndrome recusa a reconhecer o conflito e a injustiça social, reinterpretando a dor não como consequência de causalidades concretas, mas como uma “provação” ou “aprendizado” a ser adquirido, enquadrando as contradições e os sofrimentos da vida real como “energia ruim” ou “falta de fé”, ou como “cruz pessoal a ser abraçada”, como sugerem as teologias cristãs neopentecostais da prosperidade (tradição protestante) ou carismáticas (tradição católica), do tempo presente. 

Neste ambiente teológico-espiritual, o crente é formado a abstrair a realidade das suas condicionantes materiais, ignorando a influência das estruturas sociais – classe, poder, dinheiro, meios de comunicação, violência, pobreza, dominação, colonialismo, imperialismo – na determinação do real, individualizando problemas que têm raízes nas estruturas e conjunturas coletivas.

Nestas teologias rasas, que se recusam a avançar para águas mais profundas, a riqueza material é sinal visível da bênção divina; por sua vez, a pobreza é sinal de falha espiritual ou moral. O sucesso material é a prova concreta da fé em Deus. Por isso a importância do dízimo, que funciona como uma espécie de semente no terreno divino, no qual a lógica capitalista é sacralizada, nunca questionada.

O conflito é visto como “falta de amor”, “falta de espiritualidade”, “falta de pensamento positivo”. Tal comportamento e forma de pensar deslegitimam a crítica, o protesto, a indignação, a luta organizada e coletiva por transformação da realidade. 

Sob a lente do pensamento marxiano (Karl Marx, 1818-1883), o otimismo compulsório do polianismo desloca para o indivíduo a causa do sofrimento no sistema capitalista, substituindo a consciência de classe por autoajuda (não é à toa a explosão dos receituários coaching), neutralizando o conflito social em nome da harmonia, da unidade e da paz.

Para o filósofo alemão, a alienação não é simples ignorância, mas uma consciência moldada para não ver, é a perda do mundo real em favor de um mundo idealizado, no qual ideologias confortáveis ajudam a manter tal ilusão. Essas ideologias funcionam como um véu que naturalizam a exploração capitalista, apresentando-a como se fosse natural em vez de criada historicamente, contribuindo assim para o processo de ausência de consciência crítica. 

E como lembra o pedagogo pernambucano Paulo Freire (1921-1997), a superação da alienação não se dá por pensamento otimista associado a uma mudança individual isolada, mas por um processo coletivo de ação-reflexão (Práxis) que reconheça o conflito e as contradições concretas da vida coletiva, em busca de transformações libertadoras das opressões históricas impostas.

Neopentecostalismo e movimentos carismáticos, quando centrados no otimismo compulsório, funcionam como expressões da Síndrome de Poliana: alimentam um emocionalismo que impede a crítica; desenvolvem um tipo de esperança de inibe a ação coletiva em busca da transformação da realidade; cultuam uma fé que consola, para que nada mude.

A Síndrome de Poliana, nestes casos, produz conformismo, despolitiza o sofrimento ao justificar desigualdades – “cada um atrai o que vibra” – servindo à manutenção do status quo da dominação de grupos. A religião deixa de ser denúncia do mundo injusto (“Ai de vós ricos!”), para ser anestesia funcional do sistema de exploração.Frei Bartolomeu de Las Casas, em seu livro “O Paraíso Destruído: Brevíssima Relação da Destruição das Índias”, denunciou as atrocidades cotidianas perpetradas pelo invasor cristão espanhol, do 1500: “Os espanhóis, com seus cavalos, suas espadas e lanças começaram a praticar crueldades: entravam nas aldeias não poupando nem crianças e os homens velhos, nem as mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre e as faziam em pedaços como se estivessem golpeando cordeiros fechados em seu redil. Arrancavam os filhos dos seios das mães e lhes esfregavam a cabeça contra os rochedos enquanto outros os lançavam à água dos córregos, rindo e caçoando; outros, mais furiosos, passavam mães e filhos a fio de espada”. (LAS CASAS, Frei Bartolomé de. O PARAÍSO DESTRUÍDO: brevíssima relação da destruição das Índias. 3ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1985).

O que diria Poliana diante deste terror imenso?

No tempo presente, as Polianas brasileiras no Senado Federal esqueceram o luto recente nacional com as 700 mil mortes de brasileiros e brasileiras, por negligência, despudor e chacota do então presidente da República, chefe da quadrilha condenada no STF pela tentativa de Golpe de Estado contra a Democracia Brasileira, concedendo-lhe, na última quarta-feira (17), uma infame dosianistia. 

O que estará por trás de tamanha cretinice?

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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