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Gian Spina

Artista visual e escritor. Foi professor na Escola da Cidade em São Paulo e na Art Academy of Palestine em Ramallah, Palestina. Atualmente é professor no Cairo Institute for Liberal Arts and Science no Cairo, Egito

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Políticas de silenciamento e a necromemória

Após o assassinato de Marielle, muitas pessoas saíram colocando placas de ruas análogas às originais, mas com o nome da vereadora, em uma ação simbólica que mesclava luto, celebração e a perpetuação das idéias de Marielle

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Nos últimos anos uma série de eventos importantes ocorreram em relação às lutas sobre as narrativas e a construção de uma história mais representativa do Brasil. Utilizando os mais diferentes suportes, os combates em (re)escrever eventos aparecem como uma corda sendo puxada o tempo todo por dois lados opostos. De um lado, a tentativa de manter o estabelecimento, o status quo, as hierarquias e o controle do presente através do uso e domínio das narrativas históricas e representações do passado. Do outro, a vontade de uma representação atual, principalmente no que diz respeito à construção de eventos pretéritos (e suas estruturas) como recurso para mudanças na memória coletiva e na sociedade.

Essas disputas oscilam entre a violência simbólica e física, tomando diversas formas e acentuando a pergunta: Por que em momentos de crise a história vira um elemento fundamental? Esses períodos talvez tenham dois pontos principais: a vontade de narrar por um lado e a vontade de silenciar por outro e de criar como o título do artigo aponta políticas de apagamentos de determinados eventos. Em outras palavras, o termo de se dá a partir da relação entre poder político e passado, e de como este se apropria de determinados eventos pretéritos como uma arma para a administração pública e mantenimento de idéias e conjunturas.

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Como se dá essa relação entre construção histórica e construção de identidades? Qual a relação entre memória e existência? E como ela toma corpo e forma na malha urbana?

Entre os eventos que tentaram propor outros espaços de memória está a placa de Marielle Franco. Após o assassinato da vereadora carioca muitas pessoas colocaram placas de ruas análogas às originais, mas com o nome de Marielle, em uma ação simbólica que mesclava luto, celebração e a perpetuação de suas ideias. Ao tentar mudar as políticas de lembrança o ato propunha não só a necessidade de celebrar as recentes vitórias feitas por Marielle, mas também a recuperação de formas mais orgânicas e horizontais de celebrar eventos de um passado recente e atuante. Distanciando-se da maneira branco-burocrática de escolher as heroínas e talhar o ontem, esse gesto historiográfico foi a forma encontrada de manter distante o esquecimento, silenciamento e apagamento; de propor outras formas de lembrar e novas histórias a serem lembradas que escapam a oficialidade excludente imposta pelas instituições. Se o estado possui o monopólio da violência, ele possui também o monopólio da escolha do que se deve ser lembrado - tanto do ponto de vista espacial quanto curricular. 

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Durante a campanha eleitoral de 2018, um evento estranho e assustador aconteceu quando o governador do Rio de Janeiro junto a dois deputados (mais tarde eleitos) pegaram a mesma placa de Marielle e a racharam ao meio. Gritando simultaneamente frases como “Eu vou sentar o dedo nesses vagabundos da ALERJ.” e “Eu e o Daniel fomos lá essa semana e quebramos a placa!” - os deputados exibiam a placa junto a gritos da população.

O deputado Rodrigo Amorim enquadrou a placa quebrada e a colocou no seu gabinete. O deputado  Marcelo freixo (PSOL), David Miranda (PSOL) e a deputada Talíria Petrone (PSOL) enquadraram a placa ilesa com o nome de Marielle deixando-a à vista em seus gabinetes.

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O que fica visível nesses momentos é a maneira como dois projetos distintos tentam espacializar a memória, seja no que diz respeito a tentar revelar e manter episódios silenciados ou no continuar o recorrente apagamento.

Esses eventos nos mostram como o passado talvez fale muito mais sobre o presente e o futuro do que sobre os próprios eventos acontecidos. As estratégias de administração dos fatos ocorridos para a gestão do presente, e logo, do futuro, são partes da manutenção que a Casa Grande faz, utilizando dispositivos de controle das narrativas, das memórias e do que deve ser lembrado. 

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A estruturação de um acesso exclusivo à história oficial e às construções simbólicas e identitárias são parte das complexas ferramentas que afastam, oprimem e mantém estruturas excludentes. Estes passam pelos mais diversos campos e situações. De Bolsonaro emanando o torturador de Dilma durante a votação no Congresso, chegando a uma determinação para as comemorações devidas do golpe de 1964. Em paralelo e em menor tamanho, mas reafirmando a narrativa judaico-cristã, o governo do estado do Amazonas lançou um selo comemorando a visita do primeiro ministro israelense Benjamin Netanyahu. O selo resume a união entre políticas religiosas e alinhamentos ideológicos. Netanyahu é responsável pela continuação acirrada da limpeza étnica na Palestina, preconceitos religiosos e um projeto que em muitas formas se assemelha ao genocídio da população negra, dos povos originários assim como a perseguição de religiões de matriz africana no Brasil. A visita do primeiro-ministro foi empurrada memória abaixo pelo Estado ao decidir que esse momento deveria ser lembrado e celebrado. Se ambos os lados lutam pela possibilidade de dar voz a certas histórias e eventos será - muito provavelmente - a violência que decidirá esse embate. E é o Estado que a possui. 

Esses atos cometidos pelo Estado tendem a normalizar a história, trazer e impor os fatos e os métodos como algo natural dificultando possibilidades de críticas e questionamentos aos acontecimentos passados, assim como as maneiras de construí-los. A produtora "Brasil Paralelo" entra nessa luta usando o cinema como suporte para a realização dessa tarefa. Usando outro formato que o dos monumentos e memoriais, seus filmes tentam a todo custo fazer “uma análise puramente historiográfica”. Entre tais análises está a do regime militar e da colonização portuguesa no Brasil. As narrativas que são construídas dessas interpretações chegam como uma forma tendenciosa de enxergar os eventos: elogiando a monarquia portuguesa, liberalismo econômico e a família imperial brasileira junto à omissão da presença dos povos indígenas, das mulheres e acima de tudo, da escravidão. Reduzindo a última a apenas uma mancha dentro da nossa história, deixando de lado a relação entre escravidão e processos sociais, econômicos e políticos que ampararam as hierarquias ocidentais assim como sua parte estrutural na sociedade brasileira.

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A relação entre memória e existência toma corpo e forma de museus no caso dos museus indígenas. Desde 1993, com a construção do Museu Maguta pelo povo Tikuna, uma multiplicidade de museus e pontos de memória tem sido feita assim por todo o Brasil. Esses museus propõem não só uma nova museologia e museografia mas também uma completa outra maneira de lidar com os materiais que os compõe. Longe das grandes avenidas das grandes capitais e de egos curatoriais inflados, essas proposições nos mostram que para sair do mundo dos branco criamos as nossas próprias classificações das coisas (Suzenalson Kanindé). Essa relação não-branca com as coisas produzem os mais diversos desdobramentos, explicitam como o patrimônio indígena vem sido apagado a mais de 500 anos e como a história serve para justamente justificar o presente.

A relação fundamental entre memória e existência e como isso tudo viram proposições políticas importantes que ultrapassam o próprio lembrar: essas construções se dão em torno das resistências dos povos indígenas…a memória é pra nós não só os objetos, ela tem outro significado, de resistência, de demarcação de espiritualidade, de formação realmente. A frase de Suzenalson chega a desafiar o próprio papel do lembrar, a maneira de lembrar e a os formatos de como lembramos:

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“A proposição de que a história é outra forma de ficção é quase tão antiga quanto a própria história, e os argumentos utilizados para defendê-la variaram bastante”

O livro “Silenciando o Passado” de Michel-Rolph Trouillot analisa como esses apagamentos históricos acontecem, a relação entre atores históricos e políticos e talvez como ponto chave quais (e adiciono aqui "como") eventos incluir e excluir? A importância da questão resulta também em violência, como a da recente depredação da exposição sobre o genocídio da população negra em Brasília. O deputado Coronel Tadeu depredou parte da mostra ao arrancar um quadro da parede. O quadro, jogado ao chão, continha informações sobre o genocídio, ações policiais e injustiças cometidas no país. Para além da reação descabida do deputado, a ação mostra algo que está profundamente presente na sociedade brasileira: o não querer olhar para trás, não querer elaborar os seus traumas, encarar os erros e problemas construídos no passado. Esse ato é composto de muitos outros, ele é a toda vontade de apagar, silenciar acontecimentos que não sirvam para a construção de uma específica identidade e narrativa nacional.

Esforços e levantes têm sido feitos em outros âmbitos não unicamente acadêmico ou expositivo, como o a anual lavagem das escadarias da rua 13 de Maio proposta pelo grupo Ilú Obá de Min, em São Paulo. O cortejo mantém viva a memória do bairro do Bexiga como sendo originalmente um bairro afro-descendente e a ação traz juntamente a data, a falsa ideia de uma abolição da escravatura. Na mesma corrente, a escola de samba Mangueira entrou na avenida em 2019 com o tema “História pra Ninar Gente Grande” onde se deu uma total e completa reescritura histórica. “HISTÓRIA PRA NINAR GENTE GRANDE” é um olhar possível para a história do Brasil. Uma narrativa baseada nas “páginas ausentes”. Se a história oficial é uma sucessão de versões dos fatos, o enredo que proponho é uma “outra versão”. Com um povo chegado a novelas, romances, mocinhos, bandidos, reis, descobridores e princesas, a história do Brasil foi transformada em uma espécie de partida de futebol na qual preferimos “torcer” para quem “ganhou”. Esquecemos, porém, que na torcida pelo vitorioso, os vencidos fomos nós.”

Projetos de revisionismos e reescrituras históricas evoluíram dos círculos acadêmicos, expandindo o campo de batalha para além das classe e livros; mudando e propondo outras histórias a serem lembradas assim como outras formas de lembrar. Elaborando o passado para justamente evitar que ele se fixe, encarando o processo de reconstruir a si mesmo a partir de uma reconstrução do ontem, transformações do hoje e sua necessária relação com transformações do passado, seja ele recente ou não.   Em momentos de futuros distópicos o direito à memória se torna escasso e a história entra como aparelho que justifica o presente, justifica os meios. Olhar para outros passados (que não só o escolhido pelo Estado) talvez possa ser a alternativa para pensarmos juntos novos hojes e amanhãs, mudar o chão que pisamos e lembrar de novas maneiras, novas histórias.

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