Políticas que cuidam, não punem
Construir um Brasil feminista e antiproibicionista é, portanto, escolher a vida - uma vida que não se curva ao medo, à punição ou à exclusão
Depois de quase uma década de retrocessos, as mulheres voltaram a ocupar Brasília com urgência de quem sabe que democracia não existe sem elas. A 5ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres foi mais que um evento: foi o reencontro entre o país e aquelas que sempre sustentaram as políticas públicas com o corpo, o trabalho e o cuidado.
A Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa) participou desse momento histórico com a certeza de que não há justiça de gênero sem justiça antiproibicionista. Ao levar para a Conferência o debate sobre drogas, cuidado e encarceramento, a RENFA colocou no centro das discussões a necessidade de enfrentar o modelo punitivo que criminaliza e aprisiona, sobretudo, mulheres negras, pobres, periféricas e trans.
Antes de chegar a Brasília, a Renfa promoveu sua própria conferência preparatória, reunindo representantes de todo o país para construir coletivamente as propostas antiproibicionistas levadas a Brasília. As discussões apontaram um caminho comum: políticas baseadas no cuidado, na redução de danos e na descriminalização das drogas, articuladas com saúde, assistência e direitos humanos. São propostas defendidas por antiproibicionistas que anseiam por um novo Plano Nacional de Políticas para as Mulheres com a autonomia corporal, a liberdade de escolha e o direito de viver sem punição no centro da agenda pública.
O feminismo antiproibicionista parte de uma verdade simples e dura: a guerra às drogas tem cor, gênero e classe. Sustentadas pela Lei de Drogas e por um moralismo que criminaliza a pobreza, as políticas proibicionistas servem mais para punir do que para cuidar. São elas que mantêm o superencarceramento de mulheres negras, a perseguição a usuárias e a lógica de um Estado que transforma a sobrevivência em delito. O retrato do sistema prisional brasileiro revela o tamanho dessa violência: dos mais de 850 mil presos no país, cerca de 70% são pessoas negras - um universo de aproximadamente 470 mil vidas privadas de liberdade. Os dados de 2023, do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, escancaram o racismo estrutural que sustenta o encarceramento em massa e mostram como o proibicionismo é, em si, uma política de exclusão.
Em resposta, as políticas antiproibicionistas propõem o oposto: o acolhimento, o cuidado e o acesso a direitos. Ao colocar o cuidado no centro da ação pública, rompem com o paradigma da guerra e da punição, abrindo espaço para outra forma de fazer política - uma política que cura. Falar de drogas, nesse contexto, é falar de liberdade, saúde, dignidade e reparação.
É neste contexto, que a presença da Renfa na conferência se fez necessária. Ela foi múltipla e vibrante. Trabalhadoras sexuais, travestis, mulheres trans, pessoas não binárias, homens trans, mulheres negras, indígenas e periféricas levaram ao debate suas vivências e territórios, mostrando que a democracia só é real quando inclui quem sempre foi silenciado.
Durante os dias de encontro, essas mulheres acompanharam o avanço de pautas simbólicas e concretas que apontam para um país mais justo e solidário: a legalização do aborto, a igualdade salarial, a paridade de gênero no Congresso Nacional, a criação de creches noturnas, a ampliação das Casas da Mulher Brasileira, o incentivo à cultura e o fim da escala 6x1. Cada proposta é uma fresta aberta em estruturas antigas de opressão — e também um gesto de reparação histórica.
Essas conquistas dialogam com o que move a luta antiproibicionista: o cuidado como resistência. O feminismo antiproibicionista retira a opressão do espaço privado e submisso ao patriarcado, transformando-o em ferramenta de sobrevivência e princípio de transformação social. Cuidar é organizar a vida diante da violência do Estado; é tecer redes de afeto, solidariedade e proteção que sustentam o que o poder público insiste em negligenciar.
Construir um Brasil feminista e antiproibicionista é, portanto, escolher a vida - uma vida que não se curva ao medo, à punição ou à exclusão. É apostar em políticas que cuidam, não punem; que reconhecem a pluralidade das mulheres e das pessoas dissidentes e que garantem a todas e todes o direito de existir com dignidade, liberdade e justiça.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

