Por que Bolsonaro não perde seus 25 a 30 por cento?
É a perversidade brasileira. Mas quero dar um enfoque para que entendamos como essa perversidade se dá
Por que Bolsonaro não perde seus 25 a 30 por cento do eleitorado?
O professor Fernando Horta diz: é a perversidade brasileira, a qual, aliás, não está restrita aos ricos. Em um país com a nossa história, carregado com as cólicas da nossa violência, isso é esperado, embora não tolerável.
Portanto, a resposta está dada. É a perversidade brasileira. Mas quero dar um enfoque para que entendamos como essa perversidade se dá - já que ninguém se julga perverso.
A chave para a questão é a seguinte: Bolsonaro é considerado “autêntico”. O que queremos dizer, contudo, com tal palavra? Quero demonstrar que no termo se esconde muito mais do que imaginamos.
Não sei se estou autorizado a utilizar a palavra “dialética”, sem saber exatamente o que significa; mas tenho a intuição de que há uma relação propriamente dialética entre, de um lado, a “inocência” e, de outro, a “autenticidade”.
Explico.
Pensemos em “inocência” como inconsciência (não haver comido, insciente, do fruto do bem e do mal); e na consciência como a própria culpabilidade. Estar consciente de algo - da minha situação financeira, por exemplo - é não ser mais inocente sobre aquilo.
O que chamamos de “autenticidade” é, na verdade, uma inconsciência - mas, como veremos, uma inconsciência por assim dizer de segundo grau. Atos de excessiva consciência têm o pendor de se tornarem irônicos. A inocência lhes é vedada. Assim o kitsch; a classe média que diz adorar Chaves não o louva por amor, mas por um suave cinismo, por um excesso de consciência que gostaria de ser inocente - mas não consegue senão ser “autêntico”. Adorar algo esquisito como o faria uma criança, com bizarra inocência, não é mais possível - fica-se, então, com seu simulacro.
A “autenticidade” é coisa séria. Em uma sociedade que julga haver perdido coletivamente a inocência, ser autêntico é seu melhor substituto. É uma inocência vicária, corrompida mas, afinal, a única possível. E essa sua falha - a de não ser inocência pura - a tornará uma imensa vantagem, como veremos: a invulnerabilidade do “autêntico”.
Em uma sociedade que perdeu a inocência com a Queda, não há nada mais valioso que aquilo que foi perdido. Não é exagerado dizer que toda grande ideia humana toca nesse veio, nesse tendão feito de nada e puramente negativo, que é a inocência.
E como se dá a “autenticidade”? Imagine-se um esquisito (todos o somos, em alguma medida). Imagine que faz algo inconscientemente, na pura inocência; não demora e os outros começam a notá-la, à nossa esquisitice; então tomamos consciência, pelo riso alheio: uma consciência exógena, vinda de fora, e não endógena, como gostaríamos. Aceitamos, então, essa esquisitice e perseveramos nela; nos rimos também, se for o caso, mas prosseguimos - esse riso, esse primeiro estágio da ironia que não é ainda cinismo, é apenas um modo de perseguir, de deixar-se em paz na auto-humilhação; ou melhor, é um modo de se curvar à ventania da opinião pública sem quebrar-se, torcendo seu tronco mas não perdendo a raiz e sem humilhar-se de todo. Porém o tempo passa - e essa é a única inocência capaz de levar em consideração o tempo. E com o exercício da experiência, tendo esta operado sua mágica lenta e sucessiva, chega-se à estranheza - agora purificada, trabalhada, cinzelada, tardiamente inconsciente. E pronto, está feita a mágica: somos inocentes novamente, não temos consciência de nossa ação - somos “autênticos”.
Temos uma inocência aprendida, uma inconsciência conquistada. Fazemos sem pensar, mas fazemos diferente.
E não há nada a que demos mais valor que à pureza, para o bem e para o terrivelmente mal. Em um mundo sem inocência, a autenticidade é ouro.
Por isso, relevamos até mesmo vilezas, safadezas, imoralidades, quando notamos que é feita por um “autêntico”: afinal, ele é por princípio o mais próximo que a humanidade se crê do Paraíso. E, quando se trata de um rico “autêntico”, então torna-se um “excêntrico”, palavra que acentua como está fora do círculo moral a que pertencemos todos: Paulo Maluf, por exemplo.
O “autêntico” é considerado inimputável, inocente mesmo que se prove o contrário. Passa a ser nosso pobre substituto da primeira inocência, talvez o mais forte e persuasivo dos mitos. Por haver alcançado a inocência, por meios históricos, dentro da vida; por ser um Hércules que limpou os estábulos do Paraíso, a ele tudo será perdoado.
E notemos como isso não é banal. Os grandes personagens históricos são retratados como caprichosos, excêntricos, como figuras discricionárias e “autênticas”. Não é tanto que seus pecados foram perdoados por nós, mas que nossa visão histórica tem como eixo esse subproduto da inocência. Olhamos para a história e a organizamos a partir do cinismo - o corpo vivo e teórico do cinismo.
Assim, o “autêntico” consegue, falhando, um poder que até à “inocência” lhe era vedado; não pode, como o mítico Adão, pecar.
Lembro-me de um epíteto de Deus, lido ao acaso na Bíblia: “Deus, aquele que não pode pecar”. Pensei: é uma limitação, que no entanto engrandece. De todo modo, é uma qualidade negativa, uma impotência, uma incapacidade flagrante de Deus. Ele não pode, mas eu, sim, posso pecar. Sendo maior que Deus, torno-me infinitamente menor - e essa parecia ser a ideia: uma espécie de jogo medieval de lentes, de espelhos côncavos, de luz absurda, em que meu corpo se inchava, tornava-se imenso e imediatamente se reduzia a cinza. Uma tortuosa experiência linguística.
Mas eis que roubamos também este lindo epíteto de Deus, e o conspurcamos até o nojo. E chamamos alguns indivíduos de “autênticos”, de modo que jamais possam pecar. Com essa astúcia, tornamos o “autêntico” maior que o “inocente”, que afinal ainda pode pecar. O autêntico, pecando, mantém-se puro. Nossa malícia fez do simulacro algo maior que o original.
Portanto, Bolsonaro pode matar, trucidar - e o tem feito. Os perversos continuarão adorando-o, porque o fazem em nome de que seu líder seria “autêntico”. Cobriram-no com o manto da inimputabilidade, que entregamos apenas aos néscios e às crianças - ou seja, aos inocentes ou ignorantes, inscientes. Dizem, sobre Bolsonaro: “pode ter o defeito que tiver, é, ao menos, autêntico”. Ou seja, tem a inocência típica dos crápulas.
O que não poderão dizer, jamais, será o que dizemos sobre o nosso candidato; que após uma perseguição tenebrosa, pela qual passou com tristeza mas cabeça erguida, surgiu estranhamente mais jovem do que sua primeira imagem, em 1978 - sim, o Lula de hoje é mais menino que o de 1989, mais sorridentemente garoto que o de 2002.
Dizem que, no homem, o velho encontra a criança, embora o digam de um modo no mais das vezes triste. Não sei. Mas sei que, após todos os inúmeros falsos testemunhos; após as falsas imputações, ilações, perseguições jurídicas, midiáticas e de arma de fogo, posso dizer tranquilamente - e com isso sigo apenas nossa Constituição e todos os procedimentos jurídicos que lhe dizem respeito - posso dizer com consciência de que Lula é, sim, inocente.
E percebam que ninguém da direita lhe dará esse adjetivo, não importando as provas. Porque assumir que Lula é inocente é perder a eleição - mais, é quase uma questão existencial para o homem de direita, sua única questão existencial - se Lula for inocente, o homem de direita sente que perderá o direito à existência.. É melhor dizer, como eles o fazem: “ninguém é inocente; ninguém! Jamais houve! Não há ninguém inocente no mundo”, em uma crise histérica; dirão que o sindicalista e o miliciano são iguais, que são a mesma pessoa. Gritarão todas as barbaridades do mundo, mas não assumirão que o ex-presidente é inocente. Chegarão ao ponto, se preciso for, de exclamar, em delírio: “Ninguém é inocente! Eu mesmo, sou um safado, um vilão! Não presto, nunca prestei! Ninguém presta neste mundo, nem eu, nem minha pobre mãe!”
Por isso, Lula vence neste ano, e vencerá até a eternidade, se até lá entre os dois houver um embate - que, afinal, sempre se repete. Porque as pessoas se rendem à autenticidade, mas apenas porque lhes falta o original e o sentimento da origem. O autêntico sempre levará vantagem. Exceto quando encontra o inocente, e se rende enfim às evidências.
Entre a inocência e a autenticidade, deixamos de lado nossa astúcia e ficamos com o milagre.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

