Por que os negros não deveriam estar na igreja?
A Igreja roubou a nossa alma e entregou nossos corpos à escravização
O debate sobre racismo estrutural no Brasil ganha contornos ainda mais problemáticos quando a religião é o tópico a ser abordado pela pauta. Isto porque um dogma é capaz de anular o nosso senso crítico e nos levar a um raciocínio conduzido pela doutrina a qual estamos submetidos. E se essa doutrina é aderida por uma maioria, seus dogmas se tornam ainda mais nocivos à capacidade de raciocinar da coletividade, levando a sociedade a crenças limitantes que, em grande maioria, se estabelecem através de conceitos preconceituosos e baseados numa suposta superioridade existencial. É o caso do cristianismo sistêmico ao qual estamos submetidos, e que é sempre bom lembrar que nada tem a ver com os ensinamentos de Jesus Cristo. Um homem, muito provavelmente de pele escura, de origem periférica, pobre e que foi vítima dos mesmos preconceitos estruturais que os negros que a sua dita igreja um dia não considerou seres humanos.
Não seria exagero dizer que um dos pilares da intolerância religiosa é o racismo estrutural. Sobretudo, quando falamos das religiões de matrizes africanas, sempre associadas ao mal pelos cristãos. E não me refiro apenas aos cristãos fundamentalistas. Até porque, todo cristão no fundo nutre algum preconceito contra outras religiões, induzido pelo sistema que administra o cristianismo. E repito, Jesus Cristo não tem nada a ver com o cristianismo vigente. Certamente, ele nem permitiria o uso do seu nome dentro dessa concepção. Seguindo na linha tênue e bamba do racismo estrutural, proponho uma reflexão sobre o porquê de as igrejas não se manifestarem contra o racismo. Talvez, pelo fato de ela ter se estabelecido ao redor do mundo sobre fundamentos racistas e preconceituosos. Como, por exemplo, a negação da humanidade dos africanos. A contribuição da igreja cristã para a implementação e manutenção da escravidão no Brasil, apesar de fundamental, ainda é tratada como um assunto proibido. Porém, a história não é capaz de absolvê-la. Por sua culpa, por sua tão grande culpa, os afrodescendentes brasileiros ainda sofrem as agruras do preconceito racial, social, cultural e religioso
Lembremo-nos do Padroado Real, ou Padroado Português, um acordo feito entre a Santa Sé e a coroa portuguesa no qual o Papa delega ao Rei de Portugal o poder de organizar e financiar todas as atividades religiosas das regiões descobertas, digo, invadidas pelos portugueses. Confirmado pelo Papa Leão X, em 1514, apesar de já estar vigorando na prática desde os meados da década de 1400, quando do início da expansão marítima portuguesa, o Padroado perdurou, pasmem, até meados do século XX, sofrendo várias alterações que visavam descaracterizar o seu viés escravocrata e reacionário. Falemos ainda de Padre Antônio Vieira e sua ambiguidade opinativa com relação à escravização de seres humanos. Mesmo que se especulasse sobre a sua antipatia pela escravidão, o que, segundo alguns historiadores, o tornava alvo da fúria de senhores de engenho, uma vez que os escravizados eram mercadoria de alto valor agregado e integrados às posses de tais senhores, em seu Sermão XIV ele tentou convencer os africanos de que a escravização não era um castigo, mas sim um processo de remissão dos pecados, um prêmio que os levaria a salvação eterna caso aceitassem o batismo da igreja.
Padre Antônio Vieira considerava a existência africana um pecado original, devido à natureza "gentia" de suas tribos, ou seja, segundo a igreja, ausente da presença de Deus. No mesmo sermão, o padre convida os negros a serem passivos, a aceitarem o sofrimento e a entenderem que a escravização foi a forma encontrada por Deus para salvar a alma do povo etíope e tirá-lo da gentilidade. Vale lembrar que os judeus também chamam os palestinos de gentios, o que, do ponto de vista religioso, pode justificar o genocídio que Israel vem perpetrando contra eles no momento. Genocídio também experimentado pelo povo preto, sob bênçãos e omissões de uma igreja pretensamente conduzida por Jesus Cristo. Usar supostos representantes de Deus para legitimar a desumanização e a demonização de outras raças, etnias e culturas, é mais antigo do que andar para frente. O que é desesperador, é observar a desatenção da negritude com relação a esse conceito racista disfarçado de evangelho e percebê-la cada vez mais sendo cooptada por seus algozes e negociando a sua identidade ancestral em troca de uma salvação forjada entre Igreja e Estado, que nos promete um céu onde viveremos eternamente ao lado de um deus branco, racista e que sempre foi opressor da nossa existência.
A habilidosa retórica do padre Antônio Vieira é capaz ainda de espiritualizar a escravidão e de fazer os negros se sentirem libertos de alma, mesmo estando sob um regime cruel e sanguinário. Como em seu sermão XXVII, onde ele diz aos africanos que, mesmo os senhores de engenho sendo donos de seus corpos, eles não poderão nunca impedir que suas almas sejam salvas pelo supremo criador do universo. Uma proposição de carta de alforria a partir do sofrimento terreno, com a qual os escravizados iriam desfrutar da liberdade eterna nos braços do deus que lhes impunham um terrível martírio. Uma hipocrisia eclesiástica revestida de senso humanístico, mas não sem precedentes. Atualmente, as igrejas evangélicas brasileiras se baseiam no racismo estrutural para converter pessoas. O argumento de que o outro estaria condenado ao inferno por não fazer parte de sua doutrina, remonta aos sermões do padre Antônio Vieira no que diz respeito à gentilidade da essência do outro. E a essência africana mais uma vez é a principal vítima dessa desnaturalização, através da demonização do seu culto ancestral. Uma prova de que os negros não são, de fato, aceitos pelo cristianismo, caso não se deixem escravizar ideologicamente por ele, entregando suas almas para Jesus. E aqui temos um fenômeno inverso que é mais perigoso do que o anterior. O domínio dos senhores da igreja sobre o corpo e a alma dos negros que convertidos a seus cultos, creem que estão sendo se convertendo ao Cristo bíblico.
Como podemos observar, a mentira da salvação da alma sob o cristianismo foi introduzida sistematicamente com diversos objetivos ao longo da história, ignorando o contraditório da criação divina sobre todos os seres, o que já invalidaria o conceito de gentilidade atribuído a quem quer que seja, e subjugando a nossa capacidade de raciocinar. Até porque, o pecado teria entrado no mundo através do conhecimento, algo que Adão adquiriu após comer o fruto proibido oferecido por Eva. Uma forma subliminar de demonizar questionamentos a tais verdades e submeter pessoas a uma obediência cega ao que o sistema religioso institui como determinação de Deus. Não quero, contudo, colocar mais caraminholas na cabeça dos negros submetidos ao cristianismo. Isto a igreja já faz e com louvor. Mas julgo importante conhecermos a nossa história e sabermos que, além de terem roubado a nossa identidade – os nossos sobrenomes, herança de quando éramos propriedades dos colonizadores, é uma prova disso - a nossa existência humana sempre foi invalidada por aqueles que se apropriaram do evangelho de Cristo e monopolizaram a figura de Deus para seus espúrios fins.
Fomos propriedade da igreja e do Estado durante séculos, explorados em nossa força de trabalho para a construção de seus templos, nos quais éramos impedidos de entrar por sermos considerados inferiores. Tratados como animais, fomos açoitados por senhores de engenho que após sacrificarem mais um preto, iam à igreja receber a benção do deus que apoiava o genocídio do nosso povo. Se analisarmos atentamente os sermões do padre Vieira e tantas outras conjecturas instrumentalizadas pela igreja para manter os oprimidos passivos no cativeiro social imposto a eles, chegaremos à conclusão de que ser fiel ao deus cristão é aceitar novas formas de escravização e racismo. De modo que, cada homem e mulher pretos que se convertem ao cristianismo, legitima a ideia de que os negros precisam de um deus branco para adquirirem alma e terem a sua humanidade reconhecida. Ainda que com algumas ressalvas a essa humanidade, que ficam claras no silêncio da igreja com relação ao racismo estrutural e ao genocídio do povo preto. Mas Deus está vendo. E os pretos e pretas mais atentos também.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

