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Patrícia Valim

Professora de História do Brasil Colonial da Universidade Federal da Bahia. Conselheira do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Perseu Abramo

13 artigos

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Por quem os sinos dobram na esquerda petista?

A historiadora Patrícia Valim escreve sobre os governadores petistas do Nordeste à luz da crítica de Vladimir Safatle. E conclui: "a pasteurização de governos de forças políticas opostas e irreconciliáveis não derrota o fascismo, mas o fortalece porque é sim a morte da esquerda brasileira"

Rui Costa e Jair Bolsonaro (Foto: Camila Souza/GOVBA | Reuters)
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A esquerda nacional não morreu porque ela nunca existiu. O que sempre existiu e existe é o centro-sul nacionalizando diagnósticos & prognósticos. É justamente com essa provocação sobre a hegemonia petista na esquerda brasileira e as forças que giram em seu entorno que Vladimir Safatle, em artigo publicado no El País, em 10 de fevereiro de 2019, intitulado "Como a esquerda brasileira morreu", faz uma dura crítica à política dos governadores petistas no Nordeste, especialmente ao governador da Bahia, Rui Costa. 

A repercussão do artigo tem gerado alguma polêmica na esquerda, inclusive entre críticos ácidos do PT da Bahia, por isso a minha proposta neste texto é deixarmos a literalidade para os bolsonaristas, "horse concours" nesse quesito, e analisar o essencial da crítica de Vladimir Safatle no artigo. O cinturão progressista do Nordeste, região de resistência petista e oposição ao bolsonarismo, formado na eleição de 2018, está agonizando e corre perigo de morte em 2020 em razão da política dos próprios governadores petistas com equívocos de mérito e de método, que tem vários pontos em comum com o bolsonarismo. Essa pasteurização, ausência de polarização de projetos políticos, pode acabar com o predomínio petista na região que hoje é a coluna de sustentação do Partido dos Trabalhadores, a maior força de esquerda do país. Vejamos.

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Equívocos de mérito porque o governador da Bahia, Rui Costa - infelizmente, o caso mais paradigmático desse processo - , além de não politizar o enorme legado dos governos petistas de Lula e Dilma no Nordeste e avançar com ele, tem implantado parte significativa da agenda do bolsonarismo na Bahia: a militarização da educação pública do estado, o fechamento de escolas e a venda de seu terreno em área com o metro quadrado mais caro da cidade, o fechamento de períodos noturnos em vários colégios, a reforma da previdência sem esclarecimento e diálogo com a categoria, a colaboração pouco transparente com a polícia do Rio de Janeiro em uma operação para prender uma testemunha fundamental no esquema da "rachadinha" (se provada seria um duro golpe no bolsonarismo) e que resultou em um homicídio que até a imprensa mainstream tem chamado de queima de arquivo. E o mais grave, a militarização da política e o esvaziamento da própria política como consequência. 

Mesmo contando com alto índice de aprovação  até o final de 2019, essas ações foram efetivadas nos primeiros dias 2020. Um ano absolutamente central para as esquerdas brasileiras para garantir que as eleições municipais sejam o ponto de partida para a derrota da extrema-direita no Brasil. Justamente por isso, a questão é: se as semelhanças entre a política do governador da Bahia e o bolsonarismo se sobrepõem às diferenças, por que a população do cinturão progressista no Nordeste continuará votando no PT em 2020 se é tudo a mesma coisa - ainda que não seja no conjunto? Por que a população das principais cidades do Nordeste, predominantemente negra e pobre, continuará votando no PT com a extrema-direita levando vantagem significativa sobre nós por acolher e proteger, ainda que de maneira questionável, um contigente imenso praticamente ignorado pelas esquerdas de mulheres-mães solo pobres e negras cujos filhos são as principais vítimas do genocídio da população negra?

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Essa mesma população que além de se sentir desprotegida pelo Estado que tem retirados seus direitos recentemente conquistado, tem sido reiteradamente apertada da esfera política pelo governo petista da Bahia - e isso nos leva ao equívoco de método, que poderá comprometer não só o cinturão progressista no Nordeste em 2020, como a espinha dorsal do PT Nacional. Como pedir que a militância do PT saia às ruas defendendo o Plano Emergencial de Emprego e Renda (PEER) se as dez diretrizes desse Plano não são adotada nos estados e municípios governados pelo PT? Como exigir que essa população tivesse ido às ruas protestar contra a reforma da previdência bolsonarista se ela tentava abrir canais de negociação para evitar a aprovação da reforma da previdência do estado da Bahia?

Como devemos nos reconectar com a população se essa mesma população, organizada em coletivos e movimentos sociais, escolhe uma candidata, a socióloga Vilma Reis, que tem seu direito de concorrer às prévias do PT em Salvador boicotado de todas as formas, incluindo as mais perversas: que vai do silenciamento público do nome da pré-candidata pelo governador à imposição da candidatura de uma policial militar, uma mulher também negra com um trabalho respeitável, mas que não é filiada ao partido dos trabalhadores e, portanto, não organicidade com o projeto petista de governo e nem compromisso com a defesa do legado dos governos petistas. 

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Como a militância do PT poderá se reconectar com a população se um dos maiores problemas das cidades do país inteiro é o genocídio da população negra e o racismo institucional, e a executiva estadual do PT/BA decidiu no gabinete que a única resposta que o partido para esses dramas concretos da população é a cidade ser governada por uma policial militar que até o momento só tem nos oferecido seu silêncio em nome da hierarquia da corporação por ocasião do caso amplamente divulgado nas redes sociais no qual um adolescente negro foi agredido e humilhado em razão de seu cabelo black Power? 

Como o PT pretende se renovar como força política hegemônica de oposição ao bolsonarismo se no lugar das prévias do partido em Salvador, as executivas dos diretórios estadual e municipal acordaram um encontro meramente homologatório e com inscrições limitadas feitas na internet  no qual a militância terá voz e poderá espernear à vontade, mas não poderá votar porque decidiu-se que a escolha dx candidatx do PT à prefeitura de Salvador será feita por delegadxs, atuais presidentxs das zonais, que não foram eleitxs no último PED para esse objetivo específico? Por que fortalecer a democracia participativa no partido se sempre é possível usar o verniz da representatividade para tornar um pouco mais palatável um dirigismo autoritarismo rude, não é mesmo?

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Por tudo isso, que não é pouco, Vladimir Safatle expõe a maior contradição da esquerda petista nesse início de 2020 e acerta muito quando afirma que falta polarização e sobra duplicidade, principalmente no governo do estado da Bahia que é central para o petismo e para a sobrevida do cinturão progressista formado em 2018. Por isso, a polarização entre projetos de país, o ultraliberalismo pauloguedista X o social desenvolvimentismo petista, precisa ser aprofundada, radicalizada e amplamente divulgada para ser o ponto de partida para a derrota do bolsonarismo. 

LULISMO NO NORDESTE: REFORMISMO DE ALTO IMPACTO CONFLITIVO

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Chamo atenção para as históricas assimetrias regionais do Brasil conferirem características diversas para o conjunto de políticas públicas dos governos petistas, implementadas no período de 2003-2015. O lulismo no Nordeste  nunca foi o mesmo lulismo no Centro-sul, região industrializada que sempre concentrou uma classe média com amplo acesso à água, energia elétrica, moradia, educação, lazer, três refeições ao dia e dentição completa. Aqui no Nordeste, não. A maioria da população fora dos centros urbanos vivia no escuro, sem acesso à água, à educação, à comida. Por isso, a democratização do acesso às políticas públicas do Estado governado pelo PT operou uma verdadeira revolução, a chamada Revolução Severina, que alterou substancialmente todos os indicadores econômicos, sociais e culturais da região. 

Desde 2003, o Nordeste deixou de ser o "Brasil Profundo", a região cujo "atraso" foi historicamente construído para fornecer produtos tropicais para o mercado europeu e depois mão-de-obra abundante para ser super explorada no centro-sul. A mudança foi de tal sorte que a página de Economia do portal UOL publicou em 19/02/2013 "Com investimento de U$$ 50 bilhões de dólares, o Nordeste vira rota de grandes empresas". Chamo atenção para a data da matéria, uma entre outras tantas que foram publicadas na mesma época. O resultado e as implicações desses investimentos foram temas em outra reportagem na Revista Época, de grande circulação nacional, de 04/07/2015, com direito a manchete de capa "Como o Nordeste virou a China Brasileira". E a Bahia teve um papel protagonista no crescimento da região: até 2015, o estado concentrava o maior número de fábrica de carros e motos, refinarias, estaleiros e siderúrgicas, e uma diversificação de serviços de alta qualidade e rentabilidade.  

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Esses investimentos só ocorreram em razão das políticas públicas dos governos Lula e Dilma articuladas com as políticas do então governador e atual senador Jaques Wagner também do PT. Reparem: em 2003, o IBGE apresentou o mapa da pobreza e desigualdade nacional no qual quase 80% dos municípios do Nordeste tinham mais da metade da população vivendo na pobreza e na extrema pobreza. Já em 2004, o Nordeste abrigava mais da metade das famílias que recebiam o Bolsa Família (ALMEIDA; ARAÚJO, 2014/ IBGE 2012). Até 2009, o Nordeste evoluiu na diminuição da desigualdade mais do que as demais regiões do país. De 2003 - 2014 foram criados 16 milhões de empregos com carteira assinada, de sorte que o Nordeste passou de 800 mil pessoas com emprego formal em 2003 para 1 milhão e 700 mil empregos formais em 2010 (Cadastro Geral de Empregos e Desempregados). 

É verdade que esses empregos formais não ultrapassaram dois salários mínimos, mas se considerarmos as históricas assimetrias regionais no país, para famílias inteiras que eram obrigadas a trabalharem em troca de um prato de comida, isso foi extraordinário. Esse valor somado à política de valorização do salário mínimo do período rompeu com o cruel e perverso destino manifesto de gerações de Severinas e Severinos que foram obrigados a ir para o centro-sul para sobreviver. À essa população foi dado o direito de nascer, crescer e viver em sua terra e com sua família, pois ninguém com alternativa escolhe deixar sua família para ser super explorado e às vezes humilhado na locomotiva do país. Politização maior não há, senhoras e senhores, sobretudo depois da construção de 1, 24 milhões de cisternas, 18 novas Universidades Federais e 422 Escolas Técnicas só no Nordeste (MEC/2015)

Sobretudo quando se considera que quase 40% das contratações da Faixa 1 do programa "Minha Casa, Minha Vida" se concentravam no Nordeste, região de maior déficit habitacional até 2006. Até o início de 2015, foram construídas 1. 730.006 casas em todo país. Dessas, 700 mil casas no Nordeste (PNAD, 2017). É preciso destacar que as mulheres foram protagonistas nos programas de transferência de renda com contrapartidas, de maneira que já em 2010, elas são a maioria das pessoas de referência das famílias monoparentais ou não no Nordeste (PNAD, 2012). 

No primeiro mandato do governo Lula, a participação do Nordeste no PIB nacional foi de 12, 8%. Em 2010, esse número pulou para 13, 5%, obtendo um crescimento relativo a 4, 6% ao ano - acima da média nacional de 4% (Araújo, 2014). Esses números sugerem muita coisa. A mais importante delas é que enquanto a classe dominante do Nordeste aproveitava o forte investimento estatal e os dólares chineses para investir nas indústrias da região, boa parte da classe dominante do centro-sul, especialmente da locomotiva da nação que marchava acelerada para a insensatez, usou o dinheiro das desonerações para fortalecer o parque industrial nacional e aumentar o número de empregos formais, aplicou no rentismo.

A partir dos dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA), Pessanha (2019) demonstra a evolução do patrimônio líquido dos fundos financeiros no Brasil em R$ trilhão, concentrados no Centro-sul: em 2008, ano da crise financeira global, o montante foi de 1,125; em 2011 foi de 1,941; em 2013 foi de 2,469; no ano do golpe de 2016 foi de 3, 489. No ano passado, 2019, foi de 5,018. Patrimônio líquido acumulado em TRILHÕES, senhoras e senhores. 

Esses dados escancaram a insensatez:  com a crise global do capitalismo em 2008, houve um racha na classe dominante brasileira, pois a partir de 2013 a classe dominante do Centro-sul aproveitou-se da crise política e dos processos de desindustrialização e reprimarização da economia para apoiar um projeto de país que afastou a classe trabalhadora das estruturas internas do Estado ao preço de aprofundar as assimetrias regionais e reduzir substancialmente sua capacidade de controlar estratégias de acumulação, tornando -a mais vulnerável às oscilações internacionais. Do ponto de vista de sua vocação histórica: um golpe intra-classe dentro do golpe que está longe de ter terminado em 2016.

O QUE SERÁ DA ESQUERDA BRASILEIRA?

Agora em 2020, sob o estado policialesco comandado por Jair Messias Bolsonaro e viabilizado pelos reformas ultraliberais do Ministro da Fazenda, Paulo Guedes, o alvo da artilharia bolsonarista é, pelas razões acima, a total desmobilização política e econômica do cinturão progressista no Nordeste. Com o objetivo claro de ampliar seus colégios eleitorias nas eleições municipais de 2020 e consagrar nacionalmente o projeto político de extrema-direita em 2022, cujo epicentro é Rio de Janeiro e São Paulo, o bolsonarismo não tem encontrado resistência e oposição necessárias no governo do estado da Bahia. Ao contrário. 

Além de pintar com verniz vermelho algumas políticas bolsonaristas, contando com o silêncio de alguns dirigentes da executiva nacional do PT e com a defesa histriônica do indefensável por um grupo de assessores comissionados do estado, a colaboração de Rui Costa ao bolsonarismo por duplicidade está apagando o legado dos governos petistas no Nordeste e poderá comprometer o principal feito do seu governo: o Consórcio do Nordeste, organismo de oposição, resistência e autonomia da região, mas que pode ter a vida precocemente abreviada justamente pela ausência de polarização de projetos políticos aos olhos da população que tem votado no PT desde 2006, quando o perfil do eleitorado do partido mudou de classe e de região. 

Se é pra votar em projeto parecido por que votar em um governo de esquerda que acaricia o lobo feito um gato de estimação ao militarizar a política do estado e da prefeitura com a candidatura de ocasião de uma policial que tem um trabalho respeitável, mas não tem força política dentro da corporação e nem fora dela com os movimentos sociais para construir   alternativas ao genocídio da população negra e às desigualdades do racismo institucional que acabam configurando um verdadeiro apartheid da maioria da população negra na cidade e no estado? 

Como milhões de militantes, sou petista filiada, voto no PT desde 1989, defendo o legado dos governos petistas, sobretudo aqui no Nordeste - região cuja história eu pesquiso há quase duas décadas e na qual moro há seis anos. Quero muito construir com a população da cidade a campanha da candidatura petista para a prefeitura de Salvador escolhida nas prévias do partido por meio do voto da militância depois ddedosbates com xs candidatxs. Quero mais ainda defender o governo do estado da Bahia e ajudar a propagandear seus feitos findos, sobretudo o Consórcio do Nordeste. 

Mas para a militância defender o partido na Bahia e organizar a resistência ao bolsonarismo nas ruas é preciso realinhar as órbitas da política do partido no cinturão progressista, sobretudo no estado da Bahia, e polarizar nossos projetos de cidade, de estado e de país. Demarcar e consolidar a nossa diferença em relação ao bolsonarismo e a tudo eles têm destruído nesse país desde o golpe de 2016 é a nossa única saída. Porque a pasteurização de governos de forças políticas opostas e irreconciliáveis não derrota o fascismo, mas o fortalece porque é sim a morte da esquerda brasileira. E com tiro de canhão no pé esquerdo.

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