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Evandro Menezes de Carvalho

Professor da UFF, FGV-Rio e Professor da Cátedra Wutong da Universidade de Língua e Cultura de Pequim. Ganhador do Prêmio Amizade do Governo Central da China em 2023

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Por um letramento socialista: um chamado à renovação da democracia no Brasil

"O letramento socialista não exige conversão ideológica, mas disposição para aprender", escreve o colunista Evandro Menezes de Carvalho

Bandeira socialista   (Foto: Brasil 247/divulgação)

A palavra “socialismo” tem sido demonizada e usada como espantalho ideológico por muitos que, paradoxalmente, jamais se preocuparam com o fortalecimento da democracia ou com a justiça social. Rejeitada como ameaça por elites que historicamente governaram para si, e não para o povo, a ideia socialista tornou-se tabu em debates públicos – como se sua simples menção desestabilizasse as fundações da sociedade democrática. No entanto, o tempo histórico nos cobra uma reavaliação crítica. É hora de iniciarmos um processo de letramento socialista: um aprendizado que vá além da caricatura para buscar, de fato, compreender o que o socialismo pode oferecer à democracia, à justiça e ao bem viver coletivo nos tempos atuais. Precisamos nos permitir debater este assunto com abertura crítica e tranquilidade intelectual. Afinal, a discussão sobre os limites e possibilidades da democracia contemporânea tem assumido novos contornos em um cenário global marcado pela ascensão de governantes e políticos traidores do povo, pela fragmentação social alimentada por fake news e discursos de ódio e pela perda de legitimidade das instituições liberais diante da crescente concentração de renda.

O conceito de “letramento”, oriundo dos estudos da linguagem e da educação, refere-se à capacidade de interpretar criticamente os códigos simbólicos e culturais que estruturam a vida social. Atualmente é bastante utilizado para se referir ao processo de desenvolvimento da consciência crítica sobre as desigualdades raciais e sociais que afetam as minorias marginalizadas. Já a proposta de um “letramento socialista” implica o reconhecimento de que o socialismo, adaptado às realidades históricas do país, oferece elementos heurísticos relevantes para ampliar a nossa compreensão sobre as diferentes formas de organização da sociedade que possam aprimorar a nossa democracia. Podemos discordar sobre dimensões da experiência socialista, mas não precisamos nos odiar por isto.

A proposta aqui defendida parte da constatação de que a democracia ocidental enfrenta uma crise estrutural. O fenômeno da chamada “falácia do eleitoralismo” – ou seja, a redução da democracia ao momento do voto – tem sido amplamente discutido pela literatura contemporânea, que também aponta para o enfraquecimento da participação política substantiva da população e de uma forma que nos una como povo. O que temos assistido é uma crescente erosão da confiança nas instituições e o crescimento de práticas de exclusão social nos países democráticos, com riscos para a emergência de movimentos separatistas.

O letramento socialista que proponho não é um convite ao sectarismo, tampouco à reprodução acrítica de modelos exógenos. Ele é, antes de tudo, uma abertura intelectual e ética ao debate sobre outras formas possíveis de organização social, política e econômica. Trata-se de olhar para o mundo com lentes mais amplas, que nos permitam romper com a naturalização de um modelo liberal-capitalista que se apresenta como o único possível — mesmo quando este já não responde às necessidades mais urgentes das sociedades, sobretudo as periféricas.

Partimos do pressuposto de que é intelectualmente desonesto e politicamente ineficaz reduzir o debate sobre democracia a um modelo único, prescritivo e universalizante, baseado exclusivamente na trajetória histórica do Ocidente – que, por sinal, tem um histórico vergonhoso de guerras e práticas de genocídio pelo mundo. A emergência de modelos alternativos de governança, tal como o chinês, exige-nos uma abordagem comparativa menos preconceituosa e mais atenta às especificidades culturais, institucionais e históricas de cada experiência.

A China desafia aqueles binômios que se consolidaram no imaginário das mentes durante a Guerra Fria. Dizia-se que democracia e capitalismo eram dois lados da mesma moeda. Um estava intrinsecamente relacionado ao outro. Já o socialismo era necessariamente associado ao planejamento estatal destrutivo do estímulo à criatividade e à inovação. Porém, desde Deng Xiaoping, com a sua política de reforma e abertura nos anos 1970, o socialismo chinês se desenvolveu contando com as forças do mercado e se tornou uma das maiores forças de inovação. Dizia-se que a participação popular só seria possível nas democracias capitalistas. A China, contudo, tem desafiado esta asserção ao avançar de maneira inédita nos mecanismos de consulta pública em seu sistema de governança. A China tem estudado e se relacionado com o Ocidente democrático e capitalista há décadas; e o Partido Comunista da China absorveu em seu sistema político e econômico aquilo que considerou apropriado fazendo as devidas adaptações segundo as características chinesas. Por que não podemos fazer o mesmo na relação com a China em atenção às características brasileiras?

A China, com todas as suas complexidades e contradições, oferece uma experiência que merece ser estudada com atenção. Sua concepção de “democracia popular de processo integral”, mesmo expondo as deficiências de seu próprio sistema político, desafia o paradigma ocidental da democracia limitada ao sufrágio universal e ao jogo entre partidos. Trata-se de uma governança que se propõe meritocrática, participativa, orientada para resultados, com ênfase na consulta pública e na estabilidade social como pré-condição para o desenvolvimento e – sendo este um fator importante daquela parte do socialismo chinês de raiz confucionista – fortemente embasada na ética. É evidente que há críticas legítimas a se fazer, mas negá-la como experiência válida é insistir em uma visão etnocêntrica de mundo. Um país que retira 800 milhões de pessoas da extrema pobreza em 40 anos e que se torna a segunda maior economia do mundo, certamente tem algo a dizer. O letramento socialista passa por aqui: por exercer a escuta e o diálogo com a China.

A crise democrática ainda é profunda não só devido à desigualdade social, à corrupção endêmica, à violência estrutural e à captura do Estado por interesses privados mas, sobretudo, devido à ascensão da extrema direita alimentada pelo descrédito das instituições devido a uma prática política transformada em espetáculo de ódio. Nesse cenário, pensar alternativas é urgente. E aqui, mais uma vez, o letramento socialista se impõe como caminho de reflexão e reconstrução. Mas este letramento socialista deve ganhar as cores do Brasil. Importa recuperar as lições de nossos povos originários que há séculos praticaram e praticam formas comunitárias de organização baseadas na partilha, no respeito à natureza e no cuidado com o outro. Essas tradições, historicamente invisibilizadas, são riquíssimas fontes para um socialismo enraizado em nossa realidade e inspiradoras de novas formas de pensar que abracem não só a diversidade mas que rejeite uma democracia fake fundada na exploração econômica do cidadão acompanhado da sua exclusão da cidadania. Quanto mais eu estudo a filosofia chinesa, mais eu vejo conexões com lições dos nossos povos originários. São nestas lições que podemos encontrar caminhos para a reconstrução de uma sociedade socializante e, portanto, com maior potencial democrático, e afastar de nosso horizonte uma democracia antissocial, segregadora, solitária e, portanto, impopular e autoritária.

O letramento socialista não exige conversão ideológica, mas disposição para aprender. É um convite ao diálogo com experiências concretas, com saberes ancestrais e com as urgências de nosso tempo. Ele exige humildade para reconhecer que a democracia liberal não é a única forma legítima de governo, e que a construção de uma democracia substantiva, socialista, requer novas práticas, novas instituições e novos imaginários.

Trata-se, portanto, de um gesto civilizatório e visando o fortalecimento de nossa democracia. Em vez de continuarmos reféns do medo — medo das palavras, das ideias, do novo —, devemos construir pontes entre as boas tradições democráticas do Ocidente e as boas experiências de participação popular que emergem no Sul Global. O socialismo, neste sentido, é mais que um regime político: é uma ética da solidariedade, da equidade e da coletividade.

Se queremos fortalecer a democracia, devemos ampliá-la. E para ampliá-la, precisamos nos permitir aprender, dialogar e imaginar. O letramento socialista é este exercício de imaginação política que nos convida a redesenhar o futuro com outras tintas. Tintas nossas. Talvez seja por esta via que a democracia brasileira reencontre o seu caminho.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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