Por Um Novo Manifesto Republicano
A conscientização da ameaça em andamento, a organização de nossa gente e sua mobilização permanente são condições indispensáveis para acordar o Brasil
Passados 136 anos que se completarão em novembro próximo, a República brasileira não consegue se livrar de velhos fantasmas e práticas recorrentes no que diz respeito à vida pública da nação. São elas, os golpes continuados sem que suas sequelas sejam removidas por inteiro, e a conciliação que impede a adoção de um projeto político consistente que nos conduza para a superação das estruturas anacrônicas e aponte para sua erradicação na perspectiva de ações transformadoras.
Depois de um regime de súditos da monarquia que abrigou por quase toda a sua existência a escravidão, modo perverso de produção que coexistiu com o ato da Independência sem que a ela se juntasse a soberania em razão de não ter sido conquistada e sim negociada; se instituiu o regime republicano igualmente transitado e instaurado sem uma participação popular que significasse um passo na direção de uma emancipação da cidadania prometida, de acordo com os fundamentos da coisa pública, e jamais praticada. Bestializado como registro dos contemporâneos da dita Proclamação, o povo foi arrastado para não perceber qualquer mudança em relação aos tempos do velho regime, pois nada mudou em essência.
Do Manifesto de 1870 até a instauração da República em 1889 houve quem se dispusesse em dar sentido a ideia de deixamos de se súditos de Sua Majestade para sermos cidadãos. Porém, nada disso resultaria em alteração substancial de uma escravocracia que a despeito da Lei Áurea de 1888 também permaneceria inabalável nas relações sociais e culturais.
As novas classes dominantes eram herdeiras dos senhores de plantéis de escravizados e assim continuaram a ser com os “libertos” numa ordem em que aparentemente tudo parecia ser o que era antes, desde a exploração da força de trabalho de um contingente assalariado sem direitos e submetidos a longas jornadas de trabalho. E assim transcorreu os tempos da Primeira República, mas com uma diferença fundamental: as lutas sociais se reproduziram incrementadas com a imigração de levas de trabalhadores europeus, que traziam o ideário de uma militância organizada.
Em um primeiro momento parecia que a República ainda sob o controle dos barões do império continuava senhores das relações entre patrões e trabalhadores. Era a expectativa de muitos à época de que o novo regime estava sendo construído. Todavia, a reação das gerações que constituiriam as novas classes dominantes, descendentes do baronato imperial, passaram a usar o Estado como instrumento de repressão sistemática contra as insurgências do mundo do trabalho. Em paralelo surgiam os sindicatos livres e cada vez mais combativos.
Donos dos meios de produção e do aparelho de Estado surgiriam as leis draconianas com vistas a impedir a liberdade de contestação e de luta por direitos dignos de trabalho e de dignidade, que se juntaram aos segmentos de uma pequena burguesia representada principalmente por uma jovem oficialidade que determinaria em breve o término dessa República dos fazendeiros e escravocratas inflexíveis, quando do ciclo do movimento Tenentista na década de 1920.
Surgia, com isso, a primeira representação viva de cidadania, isto é, de participação efetiva na vida nacional. Esperança que se desvaneceu quando a Revolução de Outubro de 1930 ao romper com os grandes proprietários que mantinham a ferro e fogo os seus interesses patrimoniais acabariam conciliando com os derrotados e os incorporando à República Nova proclamada com a mesma pompa da que dera lugar ao advento do regime republicano 41 anos antes.
Dos anos de 1930 até o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, em 1945, foi esboçado pela primeira vez um projeto nacional. Contudo, o imediato pós-guerra arrastaria o Brasil para integrar-se como parceiro menor e dependente da nova configuração das relações internacionais que passaria a ser marcada pela Guerra Fria. Os militares que procuravam manter uma relativa autonomia em relação a classes dominantes curvaram-se a imposições desse novo panorama internacional.
A demonstração mais inequívoca dessa subalternização no que toca aos imperativos impostos pela Guerra Fria foi a rejeição das políticas reformistas e estruturantes de governos com algum viés popular, como o de João Goulart e sua política de Reformas de Base, e a imposição de uma política de alinhamento com o Ocidente capitalista, vale dizer, com os Estados Unidos. Daí, o golpe de 1964, expediente indispensável para dar rumo mais consistente a esse engajamento, que sucateou a indústria nacional, submeteu nossos projetos de desenvolvimento ao crivo dos grandes investidores de capital, além de demarcar os traços de nossa política externa, doravante inteiramente vinculada a dos yankees.
Passado que agora retorna com gravíssimo desafio para a cidadania brasileira e seu papel de defensora da soberania que temos de construí-la definitivamente sob a ameaça real de não mais termos condições para tal. Nunca é demais repetir que independência não é necessariamente o mesmo que soberania. Esta precisa ser testada a todo instante estando ou não dentro de um território formalmente independente. Para isso, estarmos atentos e fortes é indispensável.
O que resultou nas sanções importas pelo indigitado presidente Donald Trump dos EUA mesmo que amanhã ele venha a recuar como de outras vezes, não deixa de ser acintoso o seu ato. Aparentemente, é um jogo de cena para apoiar o seu parceiro Jair Bolsonaro, ex-presidente que gostaria de submeter o País aos desígnios imperialistas de um presidente que se julga acima da legislação de seu próprio País. Mas, é preciso atentar para a possibilidade desse gesto conter uma espiral que venha a produzir uma forma de bloqueio que impeça o Brasil de se projetar no cenário internacional e, sobretudo, continental.
Se nós precisamos de um projeto nacional que venha a produzir uma segurança que nos faça detentores de uma sensação de pertencimento como nação detentora de um espaço que nos garanta o Estado e Nação, é preciso reconhecer que do outro lado há um projeto em curso de indisfarçável sentido imperialista sobre o qual devemos estar preparados para que possamos nos defender. Para tanto, a conscientização dessa ameaça em andamento, a organização de nossa gente e sua mobilização permanente são condições indispensáveis para acordar o Brasil, nos dois sentidos do verbo, o de promovermos uma união nacional e o de costurarmos um projeto que sustente nosso verdadeiro patriotismo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

