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Boaventura de Sousa Santos

Sociólogo português

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Portugal: três reflexões para um futuro incerto

"Provavelmente vamos ter nos próximos meses um governo minoritário e, portanto, um cenário de grande instabilidade", escreve Boaventura de Sousa Santos

Parlamento português, em Lisboa (Foto: PEDRO NUNES / REUTERS)
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Os resultados das últimas eleições legislativas obrigam a uma leitura para além da espuma dos resultados. Uma retumbante vitória da direita e da extrema-direita (133 deputados num parlamento de 230), sendo que o partido de extrema-direita, Chega, é um dos que tem mais peso eleitoral na Europa. Isto tudo num país que até há poucos meses era governado pelo Partido Socialista que detinha uma maioria absoluta no parlamento. Três reflexões: a não-democracia; o não-nacional; o não-presente.

A não-democracia é o conjunto factores que, não estando sujeitos ao escrutínio democrático, influenciam de modo significativo os processos políticos e, sobretudo, eleitorais. São os elefantes dentro da sala. O sistema judicial é a causa próxima de algumas crises políticas recentes. É importante averiguar se não estarão a ocorrer em Portugal casos de guerra jurídica (lawfare) à semelhança do que tem ocorrido noutros países. Trata-se do uso do sistema judicial, não para averiguar ilícitos jurídicos, mas para neutralizar adversários políticos. Esta nova arma tem sido utilizada preferencialmente contra políticos de esquerda e assenta no uso político da luta contra a corrupção. O segundo elefante é a comunicação social. Sem pôr em causa o fundamental serviço público dos média, não podemos deixar de reconhecer que nos últimos vinte anos houve uma viragem à direita no tratamento das notícias e nos comentários políticos. O modo como foi tratado o tema da TAP nos últimos anos e o tema das urgências hospitalares nos últimos meses são exemplares a esse respeito. O repetitivo e espectacularizado esmiuçamento dos casos, mais do que esclarecer os cidadãos, visava desgastar o governo. O terceiro elefante são as redes sociais que foram utilizadas, sobretudo pelo Chega e pela Iniciativa Liberal (IL), os dois partidos de ultra-direita, para criar polarização social, transformando adversários políticos a confrontar em inimigos a destruir. Uma lógica tribal ávida de adesão e avessa à confrontação dos factos cria a voragem da destruição do que está vigente de modo dominante sem curar de saber o que (e como) se deve construir para o substituir.

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O não-nacional é a componente dos interesses globalmente organizados que interferem de modo activo nos processos políticos dos diferentes países selecionados para intervenção em função de estratégias globais. A intervenção nas redes, o financiamento de partidos de extrema direita ou de ultradireita e de institutos supostamente de investigação, mas, de facto, think tanks e centros de comunicação estratégica são alguns dos mecanismos de interferência. O Atlas Network (anteriormente Atlas Economic Research Foundation) é um dos agentes globais mais conhecidos, uma agência não governamental baseada nos EUA que “fornece treino, contactos e financiamento a grupos libertários, pró-mercado livre e conservadores em todo o mundo”. A internacional ultra-conservadora visa transformar a Europa num aliado incondicional dos EUA, criar o pânico anti-Rússia de modo a justificar os investimentos em armas em detrimento das políticas sociais e ambientais e travar a China.

O não-presente é o modo como a memória de um povo é tratada valorizada ou manipulada para produzir resultados políticos concretos. Em Portugal, essa memória assenta em três pilares, cada um deles com a sua temporalidade. O primeiro pilar é a memória da revolução do 25 de Abril de 1974, cujo quinquagésimo aniversário celebramos este ano. Os portugueses concebem o 25 de Abril como o acto fundador da modernidade em que hoje vivem. Em Portugal, a democracia ainda não é um regime formal emocionalmente neutro ou pragmaticamente descartável. Apesar de todas as suas limitações, avaliar políticos e votar é a manifestação de uma potência existencial que, apesar de muitas vezes frustrada nas expectativas, ainda não se transformou numa frustração colectiva. Estão vivos e activos alguns milhões de portugueses que votaram pela primeira vez em 1976. Essa emoção fundadora tem sido agressivamente manipulada pelo Chega, mas, contraditoriamente, o Chega alimenta-se dela, trazendo para as mesas de votos muitos cidadãos descrentes da democracia ( a taxa de abstenção mais baixa desde há muitos anos). O voto de protesto é um voto tão democrático como os outros. Os empreendedores por detrás dele é que o usam para destruir a democracia.

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O segundo pilar da memória dos portugueses é a crise existencial de 2011 com o colapso financeiro: a tutela da Troika ( Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu) e um governo de direita para quem a austeridade imposta externamente aos trabalhadores e à classe média não era suficiente e devia ser ainda mais agravada por iniciativa própria.

Os trabalhadores e os pensionistas, os jovens e os idosos, lembram-se do que então ocorreu. O que correu para o rio da memória não foram apenas os cortes nas pensões, a perda de direitos laborais, a pobreza abrupta e a iniquidade com que o sofrimento foi distribuído entre as diferentes classes sociais. Correu sobretudo a ferida na soberania e na auto-estima de um povo que se libertara do pesadelo colonial para, pouco depois, abraçar o sonho europeu, e que via agora esse sonho convertido num novo pesadelo (muitos se lembram dos termos colonialistas usados pelos jornais alemães e ingleses para se referir a Portugal e aos portugueses). Era a destruição de uma materialidade muito concreta traduzida no aumento de bem-estar que as classes populares tinham vindo a experimentar apenas há três ou quatro gerações.

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As forças de direita estão coladas a essa memória e durante a campanha eleitoral fizeram tudo para a avivar (o campeão da austeridade, Passos Coelho, na campanha). O retumbante êxito, que estava ao seu alcance, fugiu-lhes. A direita moderada, Aliança Democrática, terminou quase empatada com o Partido Socialista. Menos visível por agora é que a direita moderada pensou que ao respeitar a primeira memória (do 25 de Abril) podia desqualificar a memória de 2011. Com a mesma certeza com que rejeitaram o Chega, aceitaram a Iniciativa Liberal, cujo programa eleitoral é muito mais assustador que o do Chega no plano social. Se o Chega representa a destruição política do 25 de Abril, a IL representa a destruição socioeconómica do 25 de Abril.

O seu programa é uma versão do paradigma ultraliberal de Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, ridicularizado nos anos de 1930 e reabilitado quarenta anos depois no Chile do ditador Augusto Pinochet (1973). O programa da IL significa a privatização de tudo o que se move e pode dar lucro. Os dirigentes e eleitores da IL professam a democracia, mas talvez nem se deem conta de que o seu programa é inaplicável em democracia. Já o mesmo não se pode dizer dos seus mentores. Hayek admitia o colapso da democracia como um dano colateral das suas políticas económicas, cuja implementação era de longe o mais importante. Escreveu ao diário alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung em 1977 a protestar contra a crítica injusta feita no periódico contra o regime de Pinochet no Chile; considerava o Chile de Pinochet como um milagre político e económico e invectivava contra a Amnistia Internacional, considerando-a “uma arma de difamação da política internacional”.

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O terceiro pilar da memória dos portugueses diz respeito ao desempenho do governo durante a pandemia do coronavírus. Foi um excelente desempenho enquanto uma articulação exemplar entre políticos, profissionais de saúde e cidadãos conscientes da seriedade da emergência de saúde pública. Pouparam-se vidas que noutros mais países mais ricos se perderam. Esta memória foi desvalorizada e o governo que a tornou possível desbaratou o capital de confiança que granjeara ao não saber compensar adequadamente os enormes sacrifícios do SNS num contexto em que a saúde privada desapareceu como que por encanto. Se o governo, no dia seguinte a dar por finda a pandemia, tivesse aumentado em 100% os salários de todos os profissionais do SNS, o povo português teria aplaudido de pé. Lamentavelmente, as contas certas (a preocupação em diminuir a dívida externa e o défice orçamental) não acertaram com o país.

Com excepção do Partido Comunista, todos os pequenos partidos à esquerda do Partido Socialista mantiveram o seu peso parlamentar e um deles, o Livre, ecologista e europeísta, aumentou o número de deputados de 1 para 4. Como não é provável que a direita moderada, Aliança Democrática, aceite governar em coligação com a extrema-direita, o Chega, vamos ter nos próximos meses um governo minoritário e, portanto, um cenário de grande instabilidade.

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