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Pedro Simonard

Antropólogo, documentarista, professor universitário e pesquisador

92 artigos

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Precariado, corona vírus e pandemia

Esta crise do capitalismo globalizado intensificada pelo corona vírus enfraquece o capitalismo e o discurso ideológico que o sustenta. Poderia se tornar uma ótima oportunidade para o estabelecimento de novas relações de produção e de trabalho que contribuíssem para o fim da exploração do trabalhador

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Nas últimas enchentes que levaram o caos a Belo Horizonte no último mês de janeiro uma imagem causou impacto: um entregador que trabalha “com” o iFood, no meio da enchente, com água até o joelho, indo fazer uma entrega. Ele não tinha opção já que ele é um “empreendedor” é só recebe quando trabalha. A justiça já definiu que não há vínculo empregatício entre os aplicativos de entrega de comida – iFood, Uber Eats e outros – e os entregadores. Em decisão da Justiça de Trabalho de São Paulo uma juíza afirmou que há “ausência de vínculo de emprego por falta de preenchimento dos requisitos necessários”. E quais são os requisitos necessários para que haja vínculo empregatício? São cinco. A subordinação (o empregado deve cumprir as ordens do empregador), habitualidade (a prestação de serviço deve ser contínua e com uma expectativa de continuidade entre patrão e empregado), onerosidade (o empregado presta um serviço ao empregador e recebe um pagamento por isto), pessoalidade (ocorre quando um trabalhador não pode ser facilmente substituído por outro), pessoa física (o empregado não pode ser uma pessoa jurídica). No caso dos ifooders e dos ubereatsers – não existem os farialimers? - não se configura a subordinação porque o “empreendedor autônomo” é “livre” para escolher quais entregas fará sem sofrer punição por isto, descaracterizando a subordinação, e não se configura a habitualidade, porque o entregador pode escolher “livremente” seu horário de trabalho, o meio pelo qual irá trabalhar e quando irá trabalhar, descaracterizando a habitualidade. Se não há subordinação nem habitualidade a magistrada da Justiça do Trabalho entendeu que não há vínculo empregatício. Sendo assim, de acordo com seu “livre arbítrio” o entregador Wesley Muniz , fotografado dentro da enchente, decidiu por conta própria que realizaria a entrega. 

Esta seria a justificativa do discurso neoliberal que chama desempregado de empreendedor. Segundo as mudanças nas leis trabalhistas brasileiras realizada segundo os preceitos neoliberais, a relação de trabalho se dá entre iguais e coloca em interação social alguém que quer contratar mão de obra e alguém que, em pé de igualdade, quer vender sua mão de obra. Isto é uma grande falácia porque o que vende sua força de trabalho é forçado a vendê-la para sobreviver. Assim como ele, outros milhares querem vender sua força de trabalho para poucos que querem comprá-la e que, devido a isto, podem reduzir o valor do trabalho.

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Na verdade, Wesley foi fazer a entrega arriscando-se a contrair uma leptospirose ou a ser carregado pela correnteza da enxurrada ou a ser tragado por um buraco porque ele só recebe pagamento pela entrega realizada. A vida dura do trabalhador precarizado não permite que ele se dê ao luxo de não trabalhar. A paga é pouca e para conseguir amealhar algo que lhe permita colocar-se um pouco acima do trabalho escravo e/ou da miséria absoluta ele tem que trabalhar muitas horas quase sem descanso.

Esta dura relação de trabalho onde o “empregador” – já vimos que não se pode considerar o iFood e o Uber Eats como empregadores – maximiza seus lucros explorando mais-valia absoluta de um trabalhador que não possui nenhum direito trabalhista é muito bem abordada no filme Você não estava aqui (Sorry we Missed You, 2019) do cineasta britânico Ken Loach, conhecido por seus filmes políticos entre os quais Terra e liberdade (Land and Freedom, 1995 e Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake, 2016). Você não estava aqui explora a difícil relação entre um trabalhador precarizado e sua família, estando ele sempre ausente de casa devido a seu trabalho. A sequência inicial deste filme começa com um diálogo que ilustra bem a fragilidade da relação entre um trabalhador especializado desempregado, em situação desesperadora e que aceita um trabalho precarizado e um “empregador” muito à vontade para explorar o trabalhador porque sabe que há um enorme exército de desempregados e, mais cedo ou mais tarde, alguém mais desesperado aceitará as relações de trabalho aviltantes que ele propõe. O diálogo começa com o trabalhador, outrora um especializado operário da construção civil, enumerando uma infindável lista de atividades especializadas que ele é capaz de executar. O “empregador”, cujo uniforme demonstra que não é o dono da empresa, pergunta-lhe porque ele largou o trabalho e ele responde que largou porque estava cansado de fazer o que fazia e porque seus colegas de trabalho eram preguiçosos e que prefere trabalhar por conta própria. O “empregador” pergunta-lhe, então, se ele já recebeu seguro desemprego e ele responde que tem dignidade e que preferiria passar fome a receber o seguro desemprego. O “empregador” retruca dizendo que o trabalhador é “um dos nossos”. E continua: “vamos deixar as coisas claras. Nós não te contratamos, você embarca. Chamamos isto de onboarding. Não trabalha para nós, trabalha conosco. Você não dirige para nós, realiza serviços. Não há contratos, não há metas de desempenho. Tem que atender às normas. Não há salário, senão comissões por serviços prestados. Está claro?” Ao que o trabalhador responde “sim, sim, tudo bem” e agradece.

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Este diálogo e a situação de Wesley Muniz explicitam de maneira cabal as novas relações de trabalho que os neoliberais cinicamente defendem, alegando que se dão entre pessoas livres que em pé de igualdade decidem estabelecer uma relação de trabalho livre onde qualquer uma das partes pode romper a relação no momento em que assim o desejar. O trabalhador precisa trabalhar todos os dias, o máximo de horas possíveis para fazer um ganho que lhe assegure a reprodução da sua força de trabalho. Isto o torna vulnerável em vários aspectos, inclusive no que concerne à sua saúde. E aí surge um problema nestes tempos de pandemia de corona vírus.

As notícias difundidas pela grande mídia dão conta que o corona vírus se propaga rapidamente e é muito letal e esta informação é o que a maioria da população retém e aceita como a única verdade, muito graças às imagens de pessoas usando máscaras nas ruas, de disputas por alimentos em supermercados que ajudam a causar medo e pânico, utilizados pelos governos para chantagear a população. No Brasil, o Ministro da Fazenda Paulo Guedes não se cansa de ameaçar a população, condicionando o combate ao corona vírus à aprovação das reformas que vão piorar ainda mais as condições e vida do trabalhador brasileiro.

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Os médicos e cientistas afirmam que este vírus é muito menos letal que outros que já apavoraram a população mundial no século XXI como o ebola e o H1N1. Mas esta informação não é retida pela população. O irresponsável presidente da República, o tosco Jair Bolsonaro, afirmou em live que o perigo do vírus está sendo “superdimensionado” pela imprensa irresponsável, mas afirmou isto utilizando uma máscara para se proteger. O que fica desta imagem é que se ele, o presidente da República que goza de uma série de regalias, está usando máscara é porque o risco é alto e todos estão sujeitos ao ataque do vírus.

O combate à doença recomenda boa alimentação, descanso e isolamento. O trabalhador precarizado, sem direito a descanso semanal remunerado e sem horário de trabalho pré-estabelecido, não se alimenta saudavelmente, não descansa e tem que se relacionar com várias pessoas durante sua jornada exaustiva de trabalho. Sua atividade laboral coloca sua vida em risco, bem como a vida daqueles que entram em contato com ele. Este trabalhador é submetido a uma rotina de trabalho exaustiva que prejudica sua saúde e afeta o seu sistema imunológico. Por outro lado, descanso e isolamento significariam que o precarizado deveria permanecer em sua casa enquanto o risco de contágio permanecesse. Para ele, contudo, não ir trabalhar significa não ter dinheiro para sobreviver. E lá vai ele, o trabalhador precarizado, trabalhar, lá vão os milhares de ifooders e ubereatsers, sem outra opção, fazer entregas, expondo-se e expondo aqueles com quem entram em contato ao risco de contágio pelo corona vírus. Mas não são apenas os precarizados que correm risco. Os carteiros, por exemplo, manuseiam pacotes e cartas vindas de locais onde o corona vírus está disseminado e também entram em contato com várias pessoas durante sua jornada de trabalho. Tal como os pracarizados e outros trabalhadores não precarizados, os carteiros também podem se tornar vetores do vírus.

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As novas relações de produção capitalistas pressupõem um Estado que não investe em políticas sociais voltadas para os trabalhadores e direciona o dinheiro que seria nelas investido para o financiamento o grande capital. Nesta crise atual, o governo Trump anunciou ajuda de 200 bilhões de dólares para socorrer as empresas estadunidenses. Três dias depois, o governo alemão anunciou “ajuda ilimitada” às empresas alemãs para superação da crise econômica. Nenhuma medida para a geração de empregos ou para repassar dinheiro para os trabalhadores para que possam ficar em casa e se protegerem do vírus. Nenhuma medida para baratear o preço dos remédios e de produtos para assepsia, mas muitas medidas que visam liberar dinheiro para aperfeiçoar os mecanismos de concentração de capital e precarização do trabalho ou alguém duvida que este será o resultado final desta crise do capitalismo? Ela resulta do desmonte do Estado, dos cortes no orçamento e nos investimentos públicos, da desregulamentação do trabalho e das leis trabalhistas e os governos não propõem nenhuma medida para rever estes equívocos.

O fato é que o vírus atinge o Brasil em um momento em que o país está sendo governado por indigentes cognitivos e entreguistas paus-mandados do imperialismo. Seria interessante as esquerdas se unirem e convocarem uma greve geral para o dia 18 de março, aproveitando que uma das recomendações para combater a propagação do corona vírus é evitar aglomerações e ficar em casa. Parar a produção até o governo Bolsonaro cair. Seria importante, também, a criação de grupos de ajuda mútua que contribuíssem para a criação de medidas que permitissem que todos os trabalhadores, os precarizados sobretudo, pudessem ficar em casa sem passar por dificuldades. Entre as reivindicações desta paralisação, além do #ForaBolsonaro e #EleiçõesgeraisJá, o fim do teto de investimentos, mais verbas para o SUS, contratação de mais profissionais de saúde, mais verbas para a educação e a pesquisa, políticas públicas de distribuição de renda, medidas emergenciais para a criação de empregos, fim das privatizações e reestatização de todas as empresa que foram privatizadas desde 2016.

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Esta crise do capitalismo globalizado intensificada pelo corona vírus enfraquece o capitalismo e o discurso ideológico que o sustenta. Poderia se tornar uma ótima oportunidade para o estabelecimento de novas relações de produção e de trabalho que contribuíssem para o fim da exploração do trabalhador. Contudo, os movimentos sociais e os trabalhadores não estão em um nível de organização que lhes permita assumirem o protagonismo político na atual conjuntura. Pode ser que fatos novos – o aprofundamento da crise? – possam mudar esta conjuntura e favoreçam a que este protagonismo se apresente.

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