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Carolina de Oliveira Pimentel

Jornalista e ex-presidente do Servas (MG)

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Preconceito ideológico e de gênero numa operação policial que acabou arquivada

"Fui execrada como mulher não pelos meus atos, mas por escolher me casar com um político. Os danos causados, a essa altura, já são irreversíveis", escreve a jornalista e ex-primeira-dama de Minas Gerais

Carolina de Oliveira Pimentel e Fernando Pimentel (Foto: Imprensa/MG)
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Saindo de uma jornada tormentosa ao longo de mais de cinco anos em uma investigação policial que jamais deveria ter ocorrido, relutei em escrever esse texto. Afinal, por que eu falaria das violências que sofri num país onde a maioria das mulheres enfrenta diariamente violências muito maiores, a profunda desigualdade social que as impede de sonhar um futuro melhor para seus filhos? Sou branca, de classe média, educação superior, e essas características são suficientes para que o caminho de qualquer um seja mais fácil que o da maioria no nosso país.

Mas sou mulher. Mulher e mãe. Mãe de uma filha. E quero para ela o que todas as mulheres querem para seus filhos e, na questão do gênero, sobretudo para as suas filhas: que vivam num país melhor que o de seus pais, onde a violência e o preconceito contra a mulher seja um tema superado. E, para superarmos essa questão, como sociedade, é preciso debatermos, tomarmos consciência de todas as faces perversas das violências contra a mulher, não importa a magnitude da malignidade.

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Por isso, não consigo ficar imune, insensível, a esse tipo de comportamento violento, mas quase invisível, nesta abundância de injustiça que vivenciamos cotidianamente no Brasil. Falo das vilanias seriais, mas sutis; uma espécie de violência branda, mas cumulativa, que aos poucos reforça e compõe o arcabouço dos pré-julgamentos e dos justiçamentos midiáticos.

Foram várias as violências seriais desse tipo que vivi por ser mulher. E aqui uso o termo violência, sem menosprezar as outras de ainda maior crueldade que abatem a grande maioria das mulheres. A alternativa seria cunhar um termo —microviolências— para colocar as que sofri em perspectiva com as enormes que sofrem as mulheres, como um todo. Mas o fato dessas vítimas serem alvo de violências inimagináveis não pode servir de escusa para que se crie uma “hierarquia” de violências. Violência contra a mulher é violência e ponto final. Vou falar daquelas que vivenciei, realmente fora do padrão das violências cotidianas de gênero, devido à minha própria condição de mulher na ocasião.

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Em português claro: fui execrada como mulher não pelos meus atos, mas por escolher me casar com um político. Minha condição de mulher foi usada por setores do Estado brasileiro, numa investigação ilegal, cujo objetivo era tentar destruir o meu marido, o ex-governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, politicamente. Durante cinco anos e dois meses fui investigada por contratos absolutamente legais em que atuei como profissional de comunicação. Em linhas gerais, a Operação Acrônimo questionava a minha subcontratação por um dos mais antigos e renomados consultores de crises do país, o jornalista Mário Rosa. A tese era que eu teria sido contratada para impedir, por meio do meu marido, um empréstimo do BNDES ao varejista Pão de Açúcar.

Tivemos, eu, meu marido e o consultor que me contratou, as vidas vasculhadas em todos os sentidos. Sigilos fiscal, bancário, telefônico, postal e todos os demais, quebrados. A devassa atingiu nossas famílias, nossos amigos e clientes. Exposição máxima na mídia, ao estilo que se tornou comum nos últimos anos. Finalmente, na última semana de julho, a pedido do Ministério Público, a Justiça Federal arquivou o inquérito por absoluta ausência de provas. Ou seja, não havia uma evidência sequer para formalizar uma acusação.

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Os danos causados, a essa altura, já são irreversíveis. Mas refletir sobre esse processo, esmiuçar as crueldades —irrelevantes para quem pratica, devastadoras para quem as sofre— e trazer luz sobre as distorções ali engendradas, é tarefa a que me imponho como cidadã, mais do que como jornalista. Como mãe de uma menina, mais do que uma mulher.

É preciso ressaltar que a operação da Polícia Federal contra mim ocorreu dias depois de sabermos que eu estava grávida. O impacto emocional de uma busca e apreensão ilegal na minha residência (sem autorização do Superior Tribunal de Justiça, a instância judicial cabível, no caso) provocou o diagnóstico de gravidez de risco com a qual convivi até o nascimento da minha filha.

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Antes de tudo destaco o que considero mais doloroso: a violência vinda do comportamento de outras mulheres. A mais aguda delas desferida pela jovem delegada federal responsável pelo meu inquérito. Chefiando a operação que lhe dava notoriedade, ela tomou o meu depoimento dentro de um hospital e iniciou insistindo para que eu, então grávida de oito meses, aceitasse a oferta de uma colaboração premiada. Dizia que, ao incriminar o pai da minha filha, a investigação contra mim poderia ser atenuada ou até mesmo encerrada (!?). O absurdo da proposta ressoa ainda hoje na minha memória.

Mas outras violências se sucediam, em paralelo. Os sucessivos vazamentos para a imprensa criavam narrativas baratas, fáceis e aderentes. Eu conhecia bem a engrenagem das redações de jornais, revistas e televisão. Sabia que cada nota ou reportagem publicada reforçaria os estereótipos da mulher jovem, de competência profissional duvidosa, sem trajetória, sem voz. Ela não tem família, história, profissão. Ela é nova e casada com um político acusado de corrupção.

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Todos os preconceitos emergiam, nas sibilinas linhas de matérias cuja origem primária era sempre o último release da polícia, o último off de algum agente ou delegado. Ao mesmo tempo, crescia de forma exponencial uma série de fake news publicadas em diversos canais, com autorias protegidas pelo anonimato da Internet. Um meme com o meu nome como marca de sabão em pó para lavar dinheiro foi amplamente espalhado pelos mesmos tipos robôs que, hoje, o país se assombra que possam ser usados até mesmo contra o Supremo Tribunal Federal.

Passei a ser uma atenta observadora do comportamento dos personagens que rodeavam minha própria crise. Identifiquei com clareza o preconceito, sem ideologia, sem gênero. Constrangida, boa parte das mulheres de esquerda me ignorou. Melhor não se aproximar muito, afinal onde há fumaça costuma haver fogo... E fumaça era fartamente produzida nos noticiários, nas manchetes, nas capas de revista. Todas me estampando com a foto de meu vestido da posse de meu marido, me coisificando como se eu fosse apenas e tão somente um objeto de feminilidade. E não uma mulher, profissional, de origem simples e que se tornou jornalista e assessora de imprensa após inúmeras superações. Já as mulheres de direita buscavam quase sempre desmoralizar pelo ridículo. De outro lado, por ofício ou por opção ideológica, não faltaram colegas de profissão multiplicando os questionamentos, explorando ilações descabidas.

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Não cabe aqui descrever os inúmeros constrangimentos ao longo dessa novela. Mas, sim, ressaltar que houve exceções à regra cruel dos pré-julgamentos discriminatórios. Amigos —jornalistas ou não— que nunca duvidaram da minha conduta, que sempre se mantiveram ao nosso lado, enfim, gente cuja amizade me honra e consola.

De tudo isso avulta a necessária autocrítica da imprensa tradicional sobre a cobertura policial e política dos últimos anos, bem como o apoio irrestrito ao combate a indústria de fake news que tem destruído reputações dos mais variados personagens públicos no nosso país. O resgate do Estado de direito no Brasil é indissociável dessa reflexão sobre os direitos civis e a liberdade de informação. Deixo o meu testemunho que não é sobre mim, pessoalmente. É sobre o país em que vivemos, para que as próximas gerações saibam que a violência contra a mulher era tão generalizada no início do século 21 no Brasil que se travestia de inúmeras faces, açoitando as mulheres mais humildes, mas de outras formas, por outros métodos, atingindo outras mulheres em outras posições não pelo que efetivamente tivessem feito de errado, mas pelo preconceito sem ideologia, sem gênero, que não podemos mais permitir.

Artigo publicado originalmente no portal El País

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