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Pablo Arantes

Pablo Arantes é doutor em linguística pela Unicamp

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Preconceito linguístico não serve como arma contra o fascismo

Independentemente da opinião que se tenha a respeito de Moro como juiz e político, imaginar que a ocorrência de "conge" só pode ser explicada pelo fato dele não saber falar português é má observação dos fatos e má ciência

Preconceito linguístico não serve como arma contra o fascismo (Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado)
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No português falado no Brasil, o padrão acentual predominante nas palavras com mais de duas sílabas é o paroxítono. Por exemplo: em palavras como "casa" e "cachorro", vemos que a sílaba tônica é seguida de uma sílaba pós-tônica, que é pronunciada de maneira reduzida e menos saliente do ponto de vista da percepção auditiva.

Palavras proparoxítonas, como "sábado" e "pêssego", nas quais há duas sílabas pós-tônicas, são muito menos frequentes, correspondem a menos do que 3% dos vocábulos da língua.

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É um fato característico das línguas, não só do português, que sílabas fracas sofram reduções fortes o suficiente para que deixem de ser pronunciadas na fala corrente. No caso das palavras proparoxítonas, a redução mais extrema da força articulatória, que pode acontecer, por exemplo, quando se fala mais rápido do que o habitual, somada à predominância do padrão paroxítono, muitas vezes leva à omissão completa de uma das sílabas pós-tônicas, em geral a que fica em posição não final, ou seja, entre a tônica e a última sílaba da palavra.

Na história da  língua portuguesa, esse processo explica como a palavra latina "oculus", com acento na primeira sílaba, resulta em uma forma como "olho" em português. Esse processo acontece o tempo todo, não só no passado, e é sua ação que nos leva todos a eventualmente pronunciar "abobra" e "fosfru" em lugar de suas versões menos reduzidas "abóbora" e "fósforo".

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Não é uma questão de ter ou não diploma universitário, de ter tido professores de português exigentes ou lenientes ou de ter lido Machado de cabo a rabo. É um processo linguístico natural, ordinário, tanto que poucos falantes percebem as reduções na fala de seus pares e, principalmente, na própria. Ninguém chama a atenção por perguntar o preço da "abobra" na mercearia. Muitos falantes, se confrontados, negarão que falam desse modo, imaginando que sempre pronunciam as palavras assim como as escrevem.

Considerando essa frequência do fenômeno da redução das proparoxítonas, me chamou a atenção a maneira como uma parte expressiva da chamada "imprensa progressista" reagiu ao aparecimento da forma sincopada (síncope é o nome que a gramática dá para a “queda” de um som no meio de uma palavra) da palavra "cônjuge" na fala do ex-juiz Sérgio Moro em uma audiência recente no Congresso. As notas que apareceram nos portais e blogs são coisas como "trata-se de um analfa", "erro crasso", "fugiu das aulas de português" e "os concursos para juiz devem ser fraudados".

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Quando alguém usa um fator externo à língua, como o valor social que atribui a um falante, como critério para avaliar a produção linguística dessa pessoa, essa atitude constitui preconceito linguístico. A situação mais comum é que os falantes que têm pouco ou nenhum prestígio social sejam acusados de absoluta incompetência linguística e, por extensão, de pouca capacidade de raciocínio por usarem formas e estruturas linguísticas que, por mais sistemáticas que sejam, não coincidem com aquelas que as pessoas mais bem colocadas na escala social usam ou, ironicamente, imaginam que usem.

O caso em questão é insólito porque representa uma inversão do padrão desse preconceito: é o bacharel lá no topo da pirâmide social sendo repreendido e rebaixado a pretexto de sua produção linguística, não o camponês ou operário, como costuma ser. Para quem se filia aos pedaços do espectro político que de algum modo representam as causas populares e lutam por elas, pode ser tentador imaginar que essa inversão de papeis seja uma coisa boa - afinal um poderoso tem aquilo que merece. Direi muito claramente: não é uma coisa boa. O preconceito do oprimido não é melhor do que o preconceito do opressor.

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O aparecimento da forma "conge" é um fenômeno linguístico e deve ser entendido à luz da história e da estrutura da língua portuguesa. Desse ponto de vista, "conge" é imediatamente explicável pelo processo que descrevi antes.

Independentemente da opinião que se tenha a respeito de Moro como juiz e político (e a minha opinião, é bom deixar claro, é de repúdio absoluto ao modo como ele exerce os cargos que ocupa), imaginar que a ocorrência de "conge" só pode ser explicada pelo fato dele não saber falar português é má observação dos fatos e má ciência. É como negar o aquecimento global - os dados já não permitem outra conclusão.

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Registro, ainda, uma outra mostra de que o fato linguístico foi interpretado em função de quem o produziu e não em função do próprio fato. Na mesma semana, a mídia progressista tematizou de maneira proeminente o desempenho linguístico da deputada Tabata Amaral.

No debate que aconteceu entre parlamentares e o Ministro da Educação em uma visita sua ao Congresso, uma intervenção da deputada evidenciou a falta de planos da atual gestão para a pasta e a mais nítida incompetência do titular. No entanto, talvez porque a atuação da deputada naquela ocasião estivesse alinhada à agenda da mídia progressista, apenas o conteúdo de sua fala mereceu atenção.

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Pois bem, ouvindo um clipe com um recorte de cinco minutos da fala da deputada, que estudou em Harvard, identifiquei os seguintes desvios em relação à norma considerada culta: “tremestre”, com “e” em lugar de “i”; pronúncia da palavra “desejos” com o troca do som de “s” pelo de “j”; “perguntano”, com a omissão do som de “d”; "aconticê", com a troca do “e” por “i” e com a omissão do “r” do infinitivo; “haviam metas, haviam dados, haviam projetos”, três ocorrências seguidas do verbo “haver” que, quando usado com sentido de “existir”, não deveria ir para o plural; “tudo que a gente está acontecendo”, o verbo “acontecer”, nessa construção, não aceita “a gente” como sujeito; “ao menos acolha o nossos”, com omissão do plural no artigo.

São questões de diversas ordens, como pronúncia, concordância e coerência. Fica a pergunta para os que se prontificaram a declarar a suma ignorância linguística de Moro: serão os desvios de Tabata menos graves, embora mais diversos e numerosos? Ou se está relatando o milagre conforme o santo? Não estou aqui advogando que Tabata deveria ter recebido o mesmo tratamento de Moro, de jeito nenhum. Mas colocando em evidência que fatos semelhantes foram tratados com critérios diferentes pelos veículos de comunicação que, em tese, combatem as más práticas da mídia monopolista tradicional.

Chamar Moro de “analfa” (curiosamente, uma palavra que é resultado da eliminação de parte de sílabas da palavra original, assim como “conge”), como como fez Paulo Henrique Amorim em seu portal, não vinga o preconceito dirigido às classes populares (e ao ex-presidente Lula como seu maior representante) pelas elites. Apenas reforça um comportamento deletério, baseado na ignorância sobre o funcionamento da língua.

Discutindo o assunto esta semana em público, ouvi um comentário que poderia ser resumido da seguinte maneira: “Lula vem de um meio no qual todo mundo fala errado, portanto ele pode errar. Moro, que teve chance de estudar, não pode”. Não repreender Moro, logo, seria “passar o pano”.

Esse comentário se baseia na crença em um pressuposto: que Lula verdadeiramente não sabe falar português, mas que esse fato deve ser perdoado porque Lula é uma boa pessoa, luta pelo povo etc. Difícil imaginar atitude mais paternalista e condescendente.

O comentário sugere, ainda, que não “passar o pano” para Moro significaria combater o fascismo representado por ele. Essa sugestão é equivocada porque não faz sentido tratar comportamentos linguísticos como o equivalente a um crime: omitir uma sílaba pós-tônica não é um delito, é um fato natural da língua. Ainda que fosse delito, castigar Moro por supostos erros linguísticos e, ao mesmo tempo, perdoar Lula pelos seus seria a encarnação da lógica do "aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei". Não é essa a arma por excelência do fascismo?

Pode-se argumentar que esse foi um comentário equivocado de uma única pessoa. Mas e o comportamento coletivo de uma parte importante da mídia progressista? Entendo que foi um equívoco político: energizar a plateia ridicularizando um adversário por motivos equivocados, baseados, em grande medida, no desconhecimento da língua e de seu funcionamento.

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