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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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Presos na montanha mágica

Na montanha mágica de hoje, o tempo adoece: a extrema direita avança, o multilateralismo desmorona, e as planícies ardem sob crises econômicas permanentes

Pico da Neblina (Foto: Ramilla Rodrigues/icmbio.gov.br)

No romance monumental A Montanha Mágica, Thomas Mann ergueu uma metáfora que atravessa séculos. A montanha, espaço rarefeito do sanatório, representa a suspensão do tempo, a vida sob constante observação da doença e da morte. A planície, em contraste, é o lugar da vida prática, dos afazeres diários, da rotina que insiste em seguir. Entre esses dois espaços se distribuem personagens, dramas, longas conversas e dilemas que, quase um século depois, ainda parecem falar diretamente a nós.

O mundo atual, cercado de injustiças palpáveis e de conflitos que não cessam, assemelha-se a essa geografia simbólica. Vivemos entre a montanha e a planície, entre o tempo suspenso da incerteza global e a brutalidade cotidiana das economias em crise. O multilateralismo, que durante décadas prometeu equilíbrio, transparência e cooperação, encontra-se hoje enfraquecido, como se estivesse internado no mesmo sanatório de Davos que abrigava Hans Castorp. A ONU e outras instituições internacionais parecem medir o tempo em meses ou anos, enquanto as guerras e as crises humanitárias marcam cada hora que passa.

Na montanha de Mann, Settembrini e Naphta discutiam sem descanso, travando um duelo verbal que raramente conduzia a soluções. No mundo contemporâneo, vivemos o mesmo: fóruns internacionais se multiplicam em debates circulares, incapazes de deter os horrores que se desdobram na Ucrânia, em Gaza ou no Sahel africano. Em 2023 e 2024, o Conselho de Segurança da ONU registrou mais de uma dezena de vetos (Rússia e EUA liderando), uma trombose diplomática que mantém as guerras pulsando na planície.

Enquanto isso, a planície segue sua rotina de desigualdade, violência e sobrevivência. O deslocamento forçado global alcançou 122,1 milhões de pessoas em abril de 2025 — um recorde histórico segundo o ACNUR. Esse número equivale a praticamente duas vezes a população da França vivendo em trânsito, sem teto e sem destino, vítimas de conflitos e perseguições. É a tradução estatística do que a literatura chama de dor.

A planície também enfrenta a turbulência econômica permanente. O Banco Mundial projeta apenas 2,3% de crescimento global em 2025, o mais fraco fora de recessões desde 2008; o FMI é um pouco mais otimista (3,0%–3,1%), mas ressalva que tarifas e choques geopolíticos podem azedar o quadro. Para quem vive na planície, isso significa emprego frágil, inflação persistente e insegurança estrutural.

Mas a montanha guarda outra febre: a emergência da extrema direita. Em 2024, o Parlamento Europeu viu partidos nacionalistas e reacionários crescerem, reunidos no novo bloco Patriots for Europe, que já ocupa o posto de terceira maior força. A planície assiste, perplexa, ao retorno de ideias que julgava ter enterrado em 1945.

Do outro lado do Atlântico, a Casa Branca volta a ser habitada por um governante autoritário, confirmando a cisão democrática. O Índice de Democracia da Economist Intelligence Unit (EIU) caiu em 2024 para 5,17 pontos, o menor desde que a série começou em 2006. Hoje, 39% da população mundial vive sob regimes autoritários; os EUA figuram como “democracia com falhas”. 

A montanha tornou-se palanque; a planície, trincheira.

Na montanha de Mann o tempo era doença. No nosso, a doença é o tempo. A Freedom House registrou em 2024 o 19º ano consecutivo de declínio da liberdade global. Mais de 40% das eleições nacionais tiveram episódios de violência, e mesmo o chamado “superciclo” eleitoral — 74 eleições envolvendo 1,6 bilhão de eleitores em 2024 — trouxe mais desconfiança do que legitimidade. É como se a democracia tivesse passado a habitar o sanatório: discursos intermináveis, resultados incertos, febre permanente.

E como se não bastasse, o abismo da desigualdade segue escancarado. A Oxfam mostrou que os bilionários aumentaram sua riqueza em US$ 2 trilhões em 2024 — quase US$ 5,7 bilhões por dia. Desde 2015, o 1% mais rico acumulou US$ 33,9 trilhões, quase o dobro do PIB da China. 

A planície empobrece; a montanha privatiza o horizonte.

O romance de Mann sugere que a montanha é inevitável: todos, em algum momento, são chamados ao tempo suspenso, à doença, à incerteza. Mas quando sociedades inteiras ficam presas no sanatório, adoecem. É o risco que corremos: naturalizar a exceção, transformar o absurdo em rotina, aceitar o adoecimento como condição permanente.

A lição de Mann é clara. A montanha pode ser espaço de reflexão, mas não pode ser morada eterna. Se nela nos demorarmos, perecemos de tédio, discursos e ilusões. A planície, com toda a dureza que carrega, exige retorno: é lá que se decide o destino dos povos.

O desafio do presente é escapar da tentação de viver permanentemente na montanha — seja ela o isolamento das elites, o multilateralismo paralisado ou as fantasias autoritárias de quem governa. É preciso descer com lucidez e subir com justiça. 

O mundo não pode se perder na montanha: deve reencontrar-se na planície, onde a vida real existe, onde a esperança precisa ser construída, onde o futuro insiste em nascer.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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