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Luis Felipe Miguel

Professor de ciência política da Universidade de Brasília (UnB). Os textos reproduzidos nesta coluna são postados originalmente no Facebook do autor

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PSDB, um partido sem futuro

"A perda de valor da marca PSDB é tão grande que até o próprio Alckmin, fundador do partido, ex-governador, duas vezes candidato presidencial, está pronto a trocar de legenda", diz o professor Luis Felipe Miguel

João Doria
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Por Luis Felipe Miguel, no portal A Terra É Redonda

Bruno Covas, desaparecido precocemente, representava a esperança, ainda que tênue, de reencontro do PSDB com suas origens.

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O processo de desconstrução da ordem constitucional brasileira teve como alvo privilegiado a esquerda e, em particular, o Partido dos Trabalhadores. O PT perdeu a presidência da República em 2016, com o golpe que depôs Dilma Rousseff, e foi impedido de voltar a ela em 2018, com o veto à candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva. Juízes, procuradores, policiais, empresas de mídia e, quando necessário, chefe militares se uniram na conspiração conhecida como Operação Lava Jato, com o objetivo de criminalizar o PT. Foram anos de perseguição intensa, sem tréguas.

No entanto, o PT chegou ao segundo turno das eleições presidenciais de 2018. Perdeu cadeiras, mas continuou elegendo a maior bancada na Câmara dos Deputados. Nas eleições municipais de 2020, mostrou alguma recuperação em relação a quatro anos antes. E, mais importante de tudo, apesar do esforço para a construção de um cenário em que as alternativas políticas relevantes seriam apenas Bolsonaro e a oposição de direita, a esquerda – em particular, novamente, o PT – conseguiu se impor como interlocutora política incontornável. Para a disputa do próximo ano, Lula, com seus direitos políticos restabelecidos, é favorito indiscutível. Em suma: o PT sobreviveu.

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O diagnóstico é mais complicado no caso do PSDB. Durante 20 anos, pareceu que PT e PSDB vertebrariam o sistema partidário brasileiro – que continuaria fragmentado, regionalmente disperso e mesmo gelatinoso, como a literatura da Ciência Política não cansa de repetir, mas contaria com dois polos, um na centro-esquerda e outro na centro-direita, organizando as disputas nacionais. Só que o PSDB acabou engolfado pelo processo de fragilização institucional que ele mesmo ajudou a desencadear e hoje encontra dificuldade para se manter como ator político de primeira grandeza.

A rigor, o PSDB não nasceu com a vocação de liderar a centro-direita. Quando surgiu, em meio aos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, rompia com um PMDB degradado pelo exercício do poder. O herdeiro das lutas contra a ditadura, que deveria comandar a redemocratização, tornara-se uma agremiação sem projeto, que reunia todo o tipo de oportunistas. O PSDB, então, buscava resgatar os compromissos perdidos, com uma definição programática mais clara e uma régua ética mais exigente. Sua “socialdemocracia” nunca foi mais do que um nome de fantasia. Tratava-se antes de um liberalismo progressista e, sobretudo, de uma intenção civilizadora. O objetivo do novo partido era agrupar os setores mais esclarecidos das elites brasileiras e aproximar o país das democracias capitalistas avançadas.

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Um partido, em suma, posicionado no centro, mas um centro que, nas condições atrasadas da política brasileira, bem passaria por centro-esquerda.

Porém, o PT, após chegar ao segundo turno das eleições de 1989, ocupou o espaço da esquerda, que o PSDB talvez ambicionasse para si. Com Fernando Henrique Cardoso tornado, graças ao Plano Real, a tábua de salvação que permitiu evitar uma vitória de Lula em 1994, coube aos tucanos pilotar uma ampla coalizão de direita. Estabeleceram, em particular, uma parceria íntima com o PFL (hoje DEM), sigla que inicialmente abrigara os trânsfugas da ditadura que aderiram à transição negociada para a democracia. O PSDB parecia destinado a ocupar o lugar do PMDB e se tornar o verdadeiro partido da Nova República.

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O governo tucano promoveu não propriamente o “choque de capitalismo” que Mário Covas anunciara em discurso célebre, mas um mergulho no ajuste neoliberal. Aderiu à ideia de redução do Estado e a práticas thatcheristas de estrangulamento do movimento sindical. Atravessou escândalos de grande monta, como a compra de votos para a emenda da reeleição e as privatizações “no limite da irresponsabilidade”, sem grandes arranhões graças ao controle sobre o Congresso e sobre os órgãos de fiscalização.

O partido inchou com adesistas, muitos dos quais o abandonaram quando perdeu o governo. Manteve sempre seu funcionamento como uma oligarquia ferreamente controlada por um punhado de líderes. Alguns caciques faleceram (Franco Montoro, Mário Covas), outros foram cooptados (Aécio Neves, Geraldo Alckmin), mas o PSDB prosseguia com seu perfil de partido pragmático com viés de centro-direita. A socialdemocracia permaneceu no nome, mas a fantasia que os tucanos passaram a projetar era a de uma “terceira via” à la Tony Blair, devidamente tropicalizada. Continuavam com o discurso dos direitos humanos, das liberdades democráticas e da justiça social; usavam o vocabulário moderno da “participação” e da “cidadania”, ao ponto da cientista política Evelina Dagnino diagnosticar a “confluência perversa” entre o governo liberal e a agenda progressista da oposição.

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O sucesso dos governos petistas desestabilizou o PSDB. Políticas voltadas ao resgate da dívida social eram cuidadosamente combinadas com a preocupação de não assustar os grupos privilegiados; a ordem definida pela Constituição de 1988, aquela que os parlamentares do partido se recusaram a assinar, era o horizonte final do governo. Ou seja: por uma ironia da história, foi o PT, afinal, que se tornou o partido da Nova República.

Lula enfrentou as turbulências do mensalão e se reelegeu bem. Terminou o segundo mandato batendo recordes de popularidade e fez de uma quase desconhecida sua sucessora. As políticas sociais fidelizaram para o PT um eleitorado que antes costumava ser guiado pelos partidos conservadores. Como a maior parte dos políticos adesistas preferiu migrar para a base do novo governo, o PSDB viu seus aliados assumirem cada vez mais a face de uma direita ideológica. Nas eleições de 2010 e 2014, os candidatos tucanos assumiram discursos em que temáticas abertamente reacionárias ganhavam crescente centralidade – a oposição ao aborto legal, a defesa da redução da maioridade penal, a “meritocracia”, o punitivismo.

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Quando o caminho do golpe começou a ser trilhado, após a derrota de Aécio Neves em 2014, já se invertera a situação anterior, em que a presença do PSDB como centro-direita civilizada servia para moderar seus aliados mais extremados. Eram os tucanos que cediam ao discurso dos radicais. Julgavam que poderiam se beneficiar da maré montante da antipolítica e que seus aliados de ocasião – fanáticos religiosos, saudosos da ditadura militar, olavistas, obscurantistas de todos os naipes – aceitariam passivamente voltar à posição de coadjuvantes.

Não podiam estar mais errados – como bem demonstrou o fiasco nas eleições presidenciais de 2018, em que o partido perdeu 85% dos votos que conquistara quatro anos antes. E, depois de decidir uma envergonhada “neutralidade” como posição oficial no segundo turno, marchou em peso ao lado de Bolsonaro.

A ruptura com os preceitos básicos da civilidade política, a adesão ao vale tudo, teve impacto também na vida interna do partido. Quando o então governador Geraldo Alckmin, desejoso de ampliar seu poder no PSDB, impôs a candidatura esdrúxula de João Doria à prefeitura de São Paulo, estava trazendo a raposa para dentro do galinheiro. Sem vivência partidária, sem experiência política, Doria quebrou o equilíbrio dos caciques tucanos. Seu personalismo truculento tem multiplicado ressentimentos, muitos deles possivelmente insanáveis. Seu oportunismo de curto prazo é incompatível com um projeto de construção partidária. A perda de valor da marca PSDB é tão grande que até o próprio Alckmin, fundador do partido, ex-governador, duas vezes candidato presidencial, está pronto a trocar de legenda.

O objetivo ostensivo de Doria é chegar à presidência da República no próximo ano. Apesar de todo o esforço, da máquina do governo paulista e do indecoroso marketing da vacinação, está patinando, segundo as últimas pesquisas, na casa dos 3% das intenções de voto. Não consegue unificar nem o próprio partido, muito menos a centro-direita. Muitos tucanos de alta plumagem se esforçam para encontrar um nome alternativo, qualquer que seja. Há aqueles, como o senador Izalci Lucas (DF), que não escondem a predileção por Bolsonaro; já o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, tomado por arrependimento tardio, insinua voto em Lula. O presidente do DEM declarou diretamente que com Doria não há conversa.

Ao embarcar no golpe e na desconstrução do pacto constitucional de 1988, o PSDB desbaratou seu diferencial como representante de uma direita civilizada. Ao abrir terreno para um aventureiro como Doria, torna-se cada vez menos capaz de funcionar como o partido que um dia foi. O desaparecimento precoce de Bruno Covas se reveste, assim, de um trágico simbolismo. Pelo sobrenome, pelo cargo que mesmo tão jovem já ocupava e pelo compromisso mais sólido com alguns valores democráticos, ele representava a esperança, ainda que tênue, de reencontro do PSDB com suas origens.

É difícil não ver, na morte do prefeito, um anúncio de que esta porta está fechada. O PSDB se encontra carente de uma fisionomia própria. O projeto pessoal de Doria não é capaz de supri-la, nem o antipetismo, que é usado com maior desenvoltura por outros grupos da direita.

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