Putin desce na goela dos russos feito Beluga ou Balalaika?
Para os russos, com um passado de glória e grandes feitos, existe algo essencial: a autoestima
Existem experiências que somente são possíveis de vivê-las in loco, assim como pedalar uma bicicleta, sentir o cheiro de uma dama da noite ou o arranque de um avião. São sensações impossíveis de serem captadas à distância.
A percepção de um povo a respeito de seu líder causou-me a mesma sensação. Lemos muito a respeito da Rússia, principalmente neste contexto de guerra, mas nunca saberemos de fato certas minúcias sobre esse país até pisar em seu solo, olhar no olho de seus habitantes e puxar uma prosa, coisa que nós, brasileiros, sabemos muito bem fazer- e eles adoram também um bom papinho.
E mesmo ao leitor mais assíduo a respeito das pautas russas, existe a barreira da imprensa ocidental que distorce várias narrativas para beneficiar os EUA e Europa.
Há 16 dias estou em solo russo participando do intercâmbio “InterRússia”, indicada pelo 247, e conversei com várias pessoas que aqui vivem, de diferentes faixas etárias e em diferentes contextos. Claro que, em algum determinado momento, a pauta Putin veio à tona e, com ela, uma questão: qual é o sentimento do povo em relação ao líder máximo desse gelado país? Ele é aturado? amado? Desce na goela do povo feito Beluga (uma deliciosa vodka) ou Balalaika (vodka de qualidade duvidosa)? Então, entre muitos adjetivos citados nas respostas, algo ganhou extremo destaque: absolutamente todos concordaram que ele resgatou a autoestima do povo, e tal fator é determinante para um país com o histórico de glórias.
A autoestima é algo muito caro para a população russa e foi violentamente sequestrada em 26 de dezembro de 1991. Nessa data, o Soviete Supremo, que era o mais alto órgão legislativo do país, declarou formalmente a dissolução da URSS, reconhecendo a independência das 15 repúblicas soviéticas.
É claro que muitos, naquele momento, não possuíam a mínima ideia dos anos difíceis que o país enfrentaria dali adiante, como ouvi de um radialista russo que trabalhou na rádio Rádio Moscou Internacional. “Eu era um dos maiores defensores da Perestroika (conjunto de reformas políticas e econômicas implementadas na União Soviética a partir de 1985, durante o governo de Mikhail Gorbachev), queria o liberalismo em meu país, não aguentava mais as amarras. Então eu pedi tanto que consegui. Estava nos anos 90 ganhando infinitamente menos, foram anos muito difíceis para todos nós.”
O relato do colega radialista traduz a dor da pobreza que a maioria dos russos enfrentaram após o colapso: cerca de um terço da população passou a viver abaixo da linha da pobreza, segundo estimativas do Banco Mundial. Em 1992, o país registrou uma inflação de mais de 2.500%, destruindo a poupança das famílias e provocando uma queda drástica no poder de compra. O desemprego, praticamente inexistente no período soviético, saltou para mais de 12% em meados da década, enquanto o PIB despencou cerca de 40% entre 1991 e 1998. Em 1998, ano da moratória russa, mais de 60 milhões de pessoas — de uma população total de cerca de 147 milhões — viviam em condições de pobreza. O salário médio mensal chegou a cair para menos de 100 dólares, e muitos trabalhadores recebiam pagamento em bens, não em dinheiro. A expectativa de vida masculina, que havia alcançado 64 anos nos anos 1980, caiu para cerca de 57 anos em 1994, reflexo do empobrecimento, do colapso dos serviços públicos e do aumento do consumo de álcool.
E outras humilhações ocorreram, como os EUA intervindo até em museus da Rússia, impondo a narrativa da vitória imperialista. “O querido e amável Tio Sam venceu e dá as cartas. Aceitem ou não.” Sob a liderança de um Boris Yeltsin extremamente “manso”, o governo russo adotou reformas de mercado inspiradas em economistas ocidentais, conhecidas como “terapia de choque”, que privatizaram rapidamente grande parte da economia estatal soviética e, com ela, todas as conquistas sociais que outrora foram motivo de orgulho aos russos.
Vladimir Putin foi eleito presidente da Rússia pela primeira vez em 26 de março de 2000. Ele havia assumido interinamente o cargo em 31 de dezembro de 1999, quando Boris Iéltsin renunciou. Nas eleições seguintes, Putin venceu no primeiro turno, com cerca de 53% dos votos, tornando-se oficialmente o segundo presidente da Federação Russa.
Desde então, muitas coisas mudaram na Rússia, principalmente sobre sua força bélica, que compete com as principais potências. E falar sobre esse tema é muito importante por aqui e implica diretamente na autoestima desse povo, que entende que defender suas fronteiras segue sendo algo fundamental. Seja contra a Ucrânia, nazistas ou Napoleão (inclusive, constuíram a maior igreja da Rússia para celebrar o feito contra os franceses), os russos são historicamente forjados em contextos de conflitos e entendem que hoje ter um país fortalecido belicamente é um sinal de segurança e respeito perante outros países. A Rússia possui o maior estoque de ogivas nucleares do mundo dentre países reconhecidos como potências nucleares. As Forças Armadas russas têm cerca de 3,57 milhões de pessoas registradas, incluindo 1,32 milhão de militares ativos.
No campo da economia, existe uma questão preocupante com a inflação, reflexo das sanções aplicadas pelo Ocidente, mas, em 2024, o crescimento do PIB foi de cerca de 4,3% e o desemprego se manteve abaixo dos 3%. Em Moscou, a cidade opera na normalidade, com sua vida pulsante em dia. Inclusive, uma curiosidade: as marcas mundiais possuem outros nomes aqui, pois venderam suas sucursais a empresários russos quando deixaram o país após a guerra. Você pode comer seu Big Mac ou Subway, tomar um Coca-Cola com o exato sabor (eu provei e aprovei). Apenas os nomes mudaram.

No campo de vista social, muita coisa mudou desde os anos 90 também. Atualmente, o país ocupa o ranking de 52º no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
Oposição
Questionei a dois amigos jornalistas que vivem em Moscou — mas não se conhecem — qual é a visão de quem se opõe a Putin no país. As respostas foram semelhantes: “geralmente são jovens que se apaixonam pelo discurso ocidental e que nasceram após os anos 2000, não sabem e nem querem saber a dificuldade de tirar esse país da lama e da humilhação. Se estudassem mais e fossem mais patriotas, teriam mais respeito ao legado de Putin.”
Deixando bem claro...
É claro que esse artigo é apenas reflexo de uma pequena amostragem, não tem caráter científico e muito menos traduz o sentimento de um país inteiro e gigantesco, mas creio que ajuda a entender parte da visão de uma sociedade sobre seu líder. Somando os relatos com o fato de andar pelas ruas de Moscou e ver tantas imagens de Putin, incluindo nas lojas de presentes uma réplica gigante do presidente segurando bolsinhas de matrioskas, a sensação é de que o chefe do executivo da Rússia desce mais na garganta dos Russos como uma Beluga do que uma Balalaika. Um brinde a essa nação que tem recebido os brasileiros com muita hospitalidade!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

