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Paulo Kliass

Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal

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Qual equilíbrio fiscal?

Banco Central cobra austeridade fiscal enquanto ignora seu papel

Sede do Banco Central em Brasília-DF - 29/10/2019 (Foto: REUTERS/Adriano Machado)

Durante os últimos dias de 2025, o Banco Central (BC) voltou às páginas e às telas dos grandes meios de comunicação. O escândalo multifacetado envolvendo o Banco Master passou a receber destaques e holofotes, tendo em vista os valores bilionários envolvidos nas operações desta empresa do financismo. Trata-se de um caso complexo, com possibilidade de que a crise possa respingar em grupos de interesse e personalidades de grande cacife no mundo empresarial, político e jurídico.

A estratégia empresarial do banco presidido por Daniel Vorcaro já era amplamente conhecida por todos aqueles que tinham alguma intimidade com o modus operandi do grupo no mercado financeiro. Até as belas peças de mármore que servem como piso de entrada nos edifícios da Faria Lima sabiam que aquele modelo era insustentável, caso não contasse com apoio e cumplicidade de gente muito poderosa na estrutura do Estado brasileiro. Vorcaro contava com esse elemento para arriscar ainda mais na conduta irresponsável, de modo a atrair mais e mais clientes para seu banco. No final, uma multiplicidade de fraudes foi apontada pelos investigadores e pelo Ministério Público na ação que levou à sua prisão em novembro passado. No entanto, graças à intensa rede de contatos que sempre manteve bastante azeitada, o banqueiro conseguiu ser liberado logo em seguida. Mas as investigações prosseguem.

Enfim, uma das causas para esse escândalo ter conseguido sobreviver por tanto tempo — sem que nenhum tipo de ação em sentido contrário tenha sido adotado por parte do Estado brasileiro — reside exatamente na absoluta complacência do órgão que deveria regular e fiscalizar o sistema bancário e financeiro. Apesar de todas as evidências apontando para a prática de crimes em andamento contínuo sob as suas barbas, o BC nada fez para impedir tais condutas. Permanece com a mesma cara de paisagem que o órgão apresenta quando se trata de spreads monumentais praticados pela banca ou quando o tema são as tarifas absurdas cobradas dos clientes em suas operações no sistema.

BC sempre a favor do rentismo e do financismo

É bem verdade que tal impunidade do BC vem de longe e não pode ser caracterizada como uma particularidade da gestão de Galípolo. Trata-se de mais uma manifestação do fenômeno que os estudiosos classificam como “captura das agências reguladoras”. Elas passam a defender os interesses das grandes empresas que operam no ramo ou setor que deveriam regular, justamente para defender os interesses dos usuários, dos cidadãos e do conjunto da sociedade. Os dirigentes de tais instituições públicas são capturados pelo capital privado, e a lógica da regulamentação fica de cabeça para baixo. Ou seja, estamos diante de algo muito semelhante ao que ocorre na relação da SUSEP com as seguradoras, da ANATEL com as empresas de telefonia, da ANEEL com as empresas de energia elétrica, da ANS com as empresas de planos de saúde privados etc.

No entanto, o BC também costuma frequentar as manchetes da imprensa por outra ordem de razões. Refiro-me aqui às atribuições do Comitê de Política Monetária (COPOM). Afinal, os integrantes do colegiado que tem por responsabilidade a definição do patamar da taxa oficial de juros são os próprios diretores do banco. A cada 45 dias, eles trocam de boné, fecham-se em uma longa reunião durante uma terça e uma quarta-feira e, logo em seguida, o país fica conhecendo qual será o nível da SELIC para o próximo período.

Todos sabemos da profunda irresponsabilidade do colegiado ao estabelecer, de forma sistemática, a taxa referencial nos atuais 15% ao ano. Com tal decisão, fica estabelecido que o Brasil continua mantendo o vergonhoso segundo lugar no campeonato mundial da taxa real de juros. Como a inflação está situada em torno de 5%, a remuneração financeira mínima, em termos reais, é de aproximadamente 10%. Uma loucura! Ao arbitrar a rentabilidade mínima do sistema financeiro nesse nível, o COPOM insiste na priorização das alocações de recursos no âmbito financeiro, em detrimento do necessário estímulo aos investimentos no setor real da economia.

Despesas com juros na faixa do trilhão

Porém, a mesma decisão relativa à SELIC provoca uma explosão das despesas financeiras do governo federal. Afinal, os gastos com juros da dívida pública têm o mesmo impacto sobre o Orçamento Geral da União (OGU) que os dispêndios com saúde, previdência social, educação e outros. A única diferença é que os últimos são classificados com o adjetivo “primário”, ao passo que os gastos financeiros recebem o carimbo de “não primários”. Como as regras jurídicas e institucionais das últimas décadas seguem sendo orientadas segundo as determinações do já extinto Consenso de Washington, não há limite, nem teto, nem contingenciamento para as despesas com juros.

Dessa forma, as Atas do COPOM se metem a dar lição de moral a respeito da política fiscal, ainda que isso fuja completamente ao escopo e às atribuições do colegiado. Por exemplo, desde a 271ª reunião realizada em junho deste ano, quando o COPOM decidiu elevar a SELIC para 15%, a menção à política fiscal se faz por um explícito movimento de copiar e colar do item. O parágrafo versando a respeito da política fiscal é repetido de forma monotônica em todas as Atas do colegiado.

(...) A política fiscal tem um impacto de curto prazo, majoritariamente por meio de estímulo à demanda agregada, e uma dimensão mais estrutural, que tem potencial de afetar a percepção sobre a sustentabilidade da dívida e impactar o prêmio a termo da curva de juros. Uma política fiscal que atue de forma contracíclica e contribua para a redução do prêmio de risco favorece a convergência da inflação à meta. O Comitê reforçou a visão de que o esmorecimento no esforço de reformas estruturais e disciplina fiscal, o aumento de crédito direcionado e as incertezas sobre a estabilização da dívida pública têm o potencial de elevar a taxa de juros neutra da economia, com impactos deletérios sobre a potência da política monetária e, consequentemente, sobre o custo de desinflação em termos de atividade. O Comitê manteve a firme convicção de que as políticas devem ser previsíveis, críveis e anticíclicas. Em particular, o debate do Comitê evidenciou, novamente, a necessidade de políticas fiscal e monetária harmoniosas. (...) [GN]

Efeitos de dificuldade com o economês à parte, o fato é que o comitê responsabiliza o governo, o Congresso Nacional e a própria sociedade pela alta dos custos financeiros. Afinal, o aumento da dívida pública tem sido resultado direto do elevado custo de rolagem da mesma, em função da SELIC nas estratosferas. É o popular caso de enxugar gelo ou do cachorro correndo atrás do próprio rabo. A taxa oficial elevada aumenta as despesas orçamentárias de natureza financeira, que provocam déficit fiscal, que aumenta o endividamento público. E, por isso, na próxima reunião, o COPOM aumenta ou não diminui a SELIC por conta das “incertezas sobre a estabilização da dívida púbica” (sic).

Gastos com juros têm tratamento VIP

O último Relatório Fiscal do BC divulgado neste ano traz informações trágicas a esse respeito. No mês de novembro, o volume de despesas do governo federal com juros da dívida pública atingiu o total de R$ 87 bilhões. Isso significa uma média diária de dispêndio dessa natureza de R$ 3,8 bi. Uma loucura imaginarmos que, a cada dia útil de novembro, o volume de gastos seja superior à maioria das cifras anuais que ganham manchetes nos jornais, com gritos acusadores de “gastança irresponsável”, sempre que se trata de rubricas de natureza social.

Já o acumulado dos últimos 12 meses se aproxima perigosamente da marca de R$ 1 trilhão — desta vez estamos com R$ 982 bi. Ao longo dos primeiros 11 meses de 2025, a soma registra R$ 886 bi, uma média mensal de R$ 77 bi. Mais do que uma referência simbólica, esse valor escancara a falácia do esforço da austeridade fiscal, tão propalada por Haddad e mesmo por Lula. Eles insistem em bater no próprio peito por tal compromisso com um suposto rigor na condução das contas públicas. Mas o fato é que, apesar de o governo ter enviado um compromisso no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias estipulando uma meta de superávit fiscal primário de 0,25%, o resultado fiscal nominal — aquele que efetivamente interessa em termos macroeconômicos — é de um déficit trilionário.

E o mais contraditório dessa novela toda é que isso não significa que estejamos nos aproximando do fim do mundo ou da antessala do apocalipse. O Brasil vem apresentando déficit nominal de forma sistemática há décadas, assim como tem ocorrido mais recentemente com os países desenvolvidos. E isso não é um problema, uma vez que mais de 95% de nossa dívida pública é denominada em moeda nacional, em reais. Isso significa que, ao contrário do que acontecia conosco antes do Plano Real de 1994 e do que ocorre ainda hoje com a maioria dos países do chamado Terceiro Mundo, não precisamos realizar um grande esforço nacional para gerar divisas e honrar compromissos em moeda estrangeira. Ao contrário do que nos querem fazer crer os arautos do financismo, o calcanhar de Aquiles deste imbróglio não é o valor do estoque do endividamento público, mas o custo do fluxo de seu serviço — os juros — em razão da SELIC elevada.

Novo Arcabouço Fiscal não resolve: seguimos com déficit nominal

Por outro lado, estamos muito longe da relação dívida pública/PIB exibida por países como os Estados Unidos, os integrantes da União Europeia, a Inglaterra, o Japão, o Canadá e outros. De acordo com o Tesouro Nacional, a participação da Dívida Líquida do Setor Público sobre o PIB é inferior a 70%, quando os países acima mencionados variam entre 120% e 200%. E ninguém quebrou até o momento por essa razão. Assim, o clima de catastrofismo criado pelo povo do financismo e reproduzido pelos responsáveis da área econômica do governo só serve para aprofundar a austeridade fiscal de forma desnecessária e transferir recursos do orçamento governamental para os setores do topo da nossa pirâmide da desigualdade.

A retórica de um suposto compromisso com a austeridade fiscal não se sustenta. Apesar do rigor no controle das contas públicas, o Brasil ainda apresenta um déficit nominal expressivo. Mas isso não é preocupante. O fundamental seria reverter a orientação da política econômica com vistas a buscar o desenvolvimento econômico, social e ambiental. Não há razões para se criminalizar o gasto público e conviver eternamente com o suposto fantasma do déficit e da dívida a nos atormentar. Estamos há décadas operando sob um ambiente de déficit fiscal nominal, e nem por isso os entes apocalípticos desceram dos céus para nos apresentar o fim dos tempos.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.