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Leonardo Segura Moraes

Professor do Instituto de Economia e Relações Internacionais (IERI) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

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Qual era a economia política de Borba Gato?

A economia política do Brasil de Borba Gato se configurava de modo que ser proprietário significava ter a capacidade de comandar e explorar trabalho escravizado

Qual era a economia política de Borba Gato? (Foto: Reprodução)

No dia 24 de julho de 2021, Paulo Lima, o Galo de Luta, liderou junto ao coletivo Revolução Periférica a queima da estátua do Borba Gato na cidade de São Paulo. Ao se apresentar de maneira voluntária junto às autoridades públicas para assumir como um dos autores do ato, Paulo Galo afirmou que o objetivo era abrir o debate para que as pessoas pudessem decidir se querem homenagear tal figura histórica, que foi “um genocida e abusador de mulheres” [1].

Este não foi um ato isolado, ainda que provavelmente tenha sido o de maior impacto no Brasil até então. Em outubro de 2020, o Grupo de Ação realizou intervenção estética na mesma estátua do Borba Gato na capital paulista. Na ocasião, colocaram representações de crânios humanos em frente a ela no intuito de revelar o passado de violência e exploração contra populações indígenas e escravizados por parte dos bandeirantes ao longo do período colonial [2].

O debate sobre quem foi Borba Gato está aberto e tem repercutido, ainda que o elitismo característico de alguns segmentos das “classes médias ilustradas” procure abafá-lo ou rejeitá-lo. Afinal, para os elitistas, quem seria Paulo Galo para contestar a memória histórica dominante sobre os bandeirantes e suas bandeiras? Em vez de aprofundar o debate, tais “críticos” preferem atacar o motoboy da periferia que ousou questionar a história oficial iluminando nosso entendimento a respeito da formação social brasileira.

Entendo que é preciso levar a sério as questões colocadas por Paulo Galo, pois elas nos conduzem para o cerne do que somos e como nos tornamos o que somos enquanto nação brasileira. É nosso dever cívico refletir sobre quem foram os chamados “heróis” do passado, assim como qual papel tais indivíduos exerciam na estrutura econômica e política da qual eram agentes fundamentais. Até porque, se foram “heróis”, sobre quem se deu tal “heroísmo”? Quem eram os “inimigos”?

Nesse sentido, procurarei apresentar em linhas gerais qual era a economia política dos bandeirantes nos tempos do Borba Gato, entre os séculos XVII e XVIII da Era Cristã. O intuito é o de somar elementos que nos ajudem entender como o passado colonial desemboca no presente do Brasil contemporâneo a partir dos questionamentos colocados por Paulo Galo na queima da estátua. Isto é, quem era Borba Gato no esquema geral da colonização e em que medida sua atuação fortaleceu uma dependência de trajetória subdesenvolvida para a economia brasileira contemporânea?

A colonização portuguesa do espaço geográfico que viria ser Brasil adquiriu contornos mais bem definidos a partir do ano de 1530, quando a expedição de Martim Afonso de Sousa estabeleceu as bases para os assentamentos coloniais permanentes ao longo da costa brasileira. Entre 1548 e 1549, instituiu-se o Governo-Geral do Brasil confirmando os termos gerais da ocupação e exploração territorial baseada em trabalho escravo, ao mesmo tempo que na Europa ia se moldando o trabalho assalariado. Esta contradição é central para encontrarmos o lugar e o legado dos bandeirantes.

Manuel de Borba Gato, bandeirante paulista nascido em 1649, insere-se no contexto de consolidação do esquema geral da colonização portuguesa do Brasil. Os bandeirantes, também chamados sertanistas por desbravarem o “sertão” através de entradas e caminhos indígenas mata adentro, foram um dos agentes responsáveis pela interiorização da colonização em busca de ouro, prata e cativos indígenas como força de trabalho. Para tanto, aliavam-se a alguns grupos indígenas para submeter outros indígenas e apresá-los como cativos. No caso dos indígenas vitoriosos, alguns prisioneiros de guerra eram devorados em rituais de antropofagia. No caso dos bandeirantes, transformados em força de trabalho escravizada a serviço do colono senhor.

Os bandeirantes logo perceberam que havia diferença entre grupos indígenas no que diz respeito à divisão do trabalho. Nesse sentido, direcionaram inicialmente suas atenções às populações Guarani, que já apresentavam uma divisão sexual do trabalho na qual indígenas do sexo masculino caçavam e indígenas do sexo feminino cuidavam da agricultura. O apresamento de tais populações articulou uma economia colonial em que o índio escravizado passou a ser utilizado como ponta de lança na captura de mais cativos indígenas, ao passo que a índia escravizada cultivava a agricultura de subsistência e servia também como fonte procriadora de força de trabalho.

Outros agentes importantes foram os clérigos jesuítas, cujo projeto colonial previa o aldeamento de indígenas para catequizá-los e torná-los força de trabalho apta para os empreendimentos coloniais. Apesar de convergentes no que diz respeito à intencionalidade colonialista, os interesses dos bandeirantes e dos jesuítas nem sempre andaram juntos. Ainda que ambos compartilhassem certa negação das culturas indígenas como forma de dominação sobre elas, os aldeamentos das missões jesuíticas apresentavam limites para o provimento de força de trabalho necessária para a continuidade da empresa colonial. Como demonstrou John Monteiro, “os colonos desejavam negociar os serviços diretamente com os índios, mas, para seu aborrecimento, os jesuítas funcionaram sempre como intermediários” [3].

Assim, a economia política do Brasil de Borba Gato se configurava de modo que ser proprietário – ou senhor – significava ter a capacidade de comandar e explorar trabalho escravizado, isto é, de constituir verdadeira empresa de exploração colonial. “O próprio [Manuel da] Nóbrega, nos seus planos de colonização, desaconselha a vinda de colonos tão pobres que não pudessem comprar logo índios cativos para pôr a seu serviço, sugerindo que só fossem mandados para cá os abonados que tivessem condições de adquiri-los” [4].

Esta capacidade de comandar e explorar trabalho escravizado é elemento estruturante da colonização no Brasil, da qual bandeirantes como Borba Gato foram agentes fundamentais. Os efeitos a longo prazo de tal economia política podem ser observados em várias fontes, sendo que destacarei algumas delas. Primeira, o sertanismo bandeirante foi peça decisiva para que fosse possível criar uma reserva indígena de força de trabalho escravizada, a qual permitiu rebaixar o valor de reprodução do trabalho em favor da espoliação colonial e condicionou, posteriormente, a formação de um mercado de trabalho assalariado no Brasil com persistente subemprego estrutural [5]

Segunda, a lógica de interiorização territorial ao estilo de bandeirantes como Fernão Dias, que foi sogro de Borba Gato, a qual definia como inimigos quem se opunha aos interesses de suas bandeiras particulares, guarda notórias semelhanças quando se observam os recorrentes conflitos no campo associados à expansão da fronteira agrícola e mineral do país, notadamente entre povos indígenas e ruralistas [6]

Terceira, o empreendedorismo bandeirante ao se fundamentar na capacidade de comando e exploração de trabalho escravizado, atuava contra a introdução de transformações que pudessem ameaçar suas posições de poder em tal economia.

Não restam dúvidas de que a combinação destas três fontes de efeitos está associada à incapacidade de superação do subdesenvolvimento econômico no Brasil, embora resta muito a ser investigado sobre o assunto. Não por acaso é um motoboy entregador de aplicativos quem levanta o questionamento que contesta o lugar de herói ocupado por Borba Gato. O desterro dos indígenas no tempo dos bandeirantes se assemelha ao desterro dos entregadores de aplicativos hoje, cujo conhecimento das rotas, caminhos e técnicas de trabalho é apropriado por empresas privadas que lucram em cima destes trabalhadores.

Como explicou em 1612 o governador de Buenos Aires Diego Negrón à Coroa espanhola, o êxito dos paulistas na captura dos cativos indígenas “[...] se devia à colaboração de certos caciques guarani, que ‘lhes servem de guias nesta estradas’” [7]

O incômodo causado pela queima da estátua do Borba Gato evidencia certa continuidade entre o escravismo colonial e o capitalismo de plataformas, revelando que a economia política dos bandeirantes é bem presente no Brasil contemporâneo.

[1] Ver: https://youtu.be/wWUeLHkKKtw
[2] Ver: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/10/cranios-visitam-estatuas-para-marcar-historia-violenta-em-sp.shtml
[3] MONTEIRO, John Manuel, Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 2ª ed., 2022, p. 55.
[4] RIBEIRO, Darcy, O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1995, p. 100, acréscimo próprio.
[5] ZULLO, Gustavo, O subemprego em perspectiva histórica e a estrutura de ocupações no Brasil entre 1980 e 2010, América Latina en la Historia Económica, vol. 26, n. 3, 2019. DOI: https://doi.org/10.18232/alhe.979.
[6] Ver: http://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2022/08/15/descumprimento-dos-direitos-indigenas-esta-ligado-persistencia-de-visao
[7] MONTEIRO, Negros da terra, p. 77.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.