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    Luciana Sérvulo da Cunha

    Documentarista, diretora artística, terapeuta holística e ativista. Foi assessora da presidência da República e diretora de patrocínios no governo Lula. Trabalhou na EBC /TV Brasil e na TV INES. Atualmente é parceira do #MeTooBrasil e coordenadora do coletivo #RespeitoEmCena de combate à violência contra a mulher.

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    Quando a história muda, mas o olhar permanece o mesmo

    O silenciamento das conquistas femininas e a estrutura que perpetua as desigualdades de poder

    Lula e Maria Elizabeth Rocha (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

    Pela primeira vez em 217 anos, uma mulher assumiu a presidência do Superior Tribunal Militar (STM) no Brasil. Maria Elizabeth Rocha, jurista com trajetória robusta, quebrou a lógica excludente de um espaço historicamente masculino e militarizado. Em seu discurso de posse, declarou: "sou feminista e me orgulho de ser mulher! E nós, mulheres, temos um sonho: o sonho da igualdade!".

    Sua posse não foi um evento qualquer. Foi um marco. Mas esse momento histórico passou quase despercebido. Não ocupou as manchetes, não foi tema de análise política, não se tornou debate nacional. O que ocupou esse espaço foi uma fala machista do presidente Lula sobre a nomeação e presença de uma ministra em seu governo. 

    Esse apagamento não é coincidência. O Brasil se interessa mais por narrativas em que as mulheres são reduzidas a piadas, polêmicas ou escândalos do que por suas conquistas reais. A engrenagem do machismo estrutural opera de forma precisa: quando uma mulher rompe uma barreira, esse fato é minimizado ou silenciado. Mas quando o poder masculino a define por sua aparência, isso se torna pauta nacional. 

    "O que define um líder não é o gênero, mas a coragem". Essa foi uma das frases ditas por Maria Elizabeth Rocha em seu discurso de posse. Palavras que, num país comprometido com a igualdade de gênero, deveriam ecoar como um manifesto. Mas o Brasil ainda não é esse país. A nossa pseudo democracia segue operando sob estruturas excludentes, e a presença de mulheres no topo do poder ainda é tratada como exceção.

    A posse da nova ministra do STM aconteceu apenas dois dias depois do discurso da ex-ministra Nísia Trindade sobre misoginia, que também não teve a repercussão devida na grande mídia. Durante discurso na cerimônia de posse do novo representante da pasta, Alexandre Padilha, a então ministra da Saúde denunciou o machismo estrutural no país e como as mulheres no poder são sistematicamente desvalorizadas e atacadas. “Não posso esquecer que, durante os 25 meses em que fui ministra, uma campanha sistemática e misógina ocorreu de desvalorização do meu trabalho, da minha capacidade e da minha idoneidade”, disse Nísia. “Não é possível e não aceito e acho que não devemos aceitar como natural um comportamento político dessa natureza”.

    Curiosamente, ao justificar sua saída, o presidente Lula afirmou que o governo precisa de mais “agressividade política”. A noção de "agressividade política" em um ambiente misógino como Brasília, denunciado pela própria Nísia, reflete a perpetuação de uma cultura política que favorece posturas autoritárias, desrespeitosas e que marginaliza lideranças femininas. Esse conceito, mobilizado justamente contra a primeira mulher a ocupar o Ministério da Saúde, revela que a disputa de poder continua sendo travada em termos que desqualificam a presença feminina nos espaços de decisão. 

    “Podemos e devemos construir uma nova política, baseada efetivamente no respeito, e destaco o respeito a nós, mulheres, e no diálogo em torno de propostas para melhorar a vida de nossa população”, reforçou Nísia.

    A posse de Maria Elizabeth Rocha não é apenas um evento simbólico. O STM, até agora um bastião da hierarquia masculina, foi forçado a abrir espaço para uma mulher. Mas essa mudança ocorreu sem holofotes, sem mobilização pública, sem reconhecimento proporcional à sua importância. O UOL mobilizou nada menos que 10 colunistas para analisar a fala de Lula, cada um destrinchando suas palavras com lupa, enquanto a posse de uma mulher no comando do STM e o discurso contundente de Nísia Trindade foram quase solenemente ignorados. É interessante notar como certos veículos de comunicação sabem amplificar determinados temas e fazer desaparecer outros. O sistema segue funcionando para que a presença feminina no poder seja invisibilizada – e para que os discursos que reforçam a desigualdade sigam sendo normalizados.

    Quando um presidente fala publicamente de uma ministra como se ela fosse um enfeite, não se trata apenas de um comentário infeliz ou de um simples deslize pontual. Trata-se da manifestação de um sistema que permite até mesmo líderes progressistas reproduzirem discursos que objetificam e diminuem as mulheres. Lula já afirmou anteriormente que “todo político tem amante”, revelando uma visão de mundo onde as mulheres são vistas como objetos de desejo, presenças secundárias e instrumentos da virilidade política masculina. Esse tipo de declaração reforça a lógica perversa de que mulheres em cargos de poder precisam da validação do olhar masculino, sugerindo que suas conquistas estão vinculadas à aparência ou às relações pessoais, e não à competência.

    Ao reforçar preconceitos profundamente arraigados, declarações desse tipo feitas a partir da mais alta posição do país têm efeitos devastadores: legitimam a percepção machista de que mulheres ascendem profissionalmente graças à beleza, e não por mérito próprio. O resultado prático é o aumento da vulnerabilidade das mulheres no ambiente profissional, onde se sentem ainda mais expostas a abusos cotidianos, perdem respeito e enfrentam dificuldades adicionais para serem reconhecidas em suas habilidades e méritos reais.

    Mais grave que a fala presidencial em si é o silêncio que a acompanha: a ausência de uma resposta pública contundente, a falta de reflexão crítica dentro do próprio governo e a inexistência de qualquer esforço real para transformar a cultura política que sustenta esses discursos. Não é apenas uma "brincadeira infeliz"; é a constatação preocupante de como o machismo permanece intocado mesmo nos espaços que se dizem progressistas. Ignorar ou minimizar esses episódios significa perpetuar um ambiente político irresponsável, perigoso e profundamente injusto com as mulheres.

    Por que a posse de Elizabeth Rocha não virou manchete? - O machismo estrutural escolhe o que deve ser visto e o que deve ser apagado.

    Mulheres no poder ainda são tratadas como exceção – e não como parte da ordem natural das coisas.

    É mais conveniente discutir o machismo quando ele aparece na forma de uma frase pontual do que quando ele se revela na estrutura do poder.

    Esse sistema precisa que mulheres como Maria Elizabeth Rocha cheguem ao topo sem alarde, sem perturbar a ordem, sem exigir que o país confronte sua misoginia institucional.

    E esse mesmo sistema precisa garantir que os homens no topo sigam podendo falar sobre mulheres como se elas fossem acessórios – e não sujeitos políticos.

    O machismo não se combate só com mais mulheres no poder – se combate com mudança de estrutura.

    A posse de Maria Elizabeth Rocha não é só uma conquista. É um lembrete do que ainda falta.

    O que esperamos do governo Lula não é apenas que continue nomeando mulheres para cargos importantes. Esperamos que entenda que a presença feminina no poder não pode ser tratada como concessão – e que as mulheres que chegam lá não precisam da validação masculina para existirem.

    Se há um governo que se diz progressista, ele precisa agir como tal.

    Isso significa enfrentar o machismo dentro do próprio governo.

    Significa compreender que a misoginia política não está apenas nos ataques da extrema-direita às mulheres progressistas – ela também está na cultura política que trata a presença feminina como um detalhe, como um favor, como uma casualidade.

    Significa que um presidente que reduz uma ministra ao seu atributo físico deve reconhecer publicamente que esse discurso não é aceitável – e agir para que ele não se repita.

    E significa, sobretudo, que uma democracia não se mede pelo escândalo causado por uma fala machista ou racista, mas pelo reconhecimento e pela celebração das mulheres que rompem séculos de exclusão.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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