Quando a nova geração de artistas se acomoda, são os mais velhos que incomodam
A história ensina que grandes artistas deixam o camarim quando a democracia chama; o silêncio atual denuncia acomodação, medo calculado e pobreza ética
Há algo que envelhece mal no Brasil: a covardia institucional que se apresenta como prudência administrativa. E há algo que envelhece com rara grandeza: a coragem ética que não pede licença ao tempo nem ao poder. Aos oitenta e tantos anos, Chico Buarque, Djavan, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Lenine e Ivan Lins continuam ocupando um território que muitos mais jovens abandonaram — o da arte como consciência crítica e intervenção pública.
Não se tornaram peças de museu. Tornaram-se critérios. Mudaram para permanecer exatamente fiéis ao que sempre foram.
Chico Buarque atravessou ditadura, redemocratização e retrocessos sem jamais negociar princípios. Em “Vai Passar” (1984), quando escreve “dormia a nossa pátria-mãe tão distraída / sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações”, expõe um país que naturaliza golpes, conchavos e violência de Estado. Não é passado: é método. Em “Apesar de Você” (1970), o enfrentamento ganha forma explícita ao anunciar o acerto de contas histórico: “apesar de você, amanhã há de ser outro dia / você vai se dar mal / eu vou cobrar com juros, juro / você vai ver o seu nome”. Não há consolo lírico; há promessa política de responsabilização. Já em “Acorda Amor” (1974), ao pedir que chamem o ladrão e não a polícia, Chico revela um Estado que inspira mais medo do que proteção, sobretudo entre pobres, negros e dissidentes.
Gilberto Gil sempre tratou a liberdade como fundamento ético. Em “Cálice” (1973), escrita com Chico, o sufocamento é direto: “como beber dessa bebida amarga / tragar a dor, engolir a labuta”. O jogo entre cálice e “cale-se” traduz a pedagogia da repressão ainda hoje presente nas periferias, onde a palavra continua sendo risco. Em “Refazenda” (1975), Gil propõe outro gesto radical: “refazenda, refazenda”. Não é fuga espiritual, mas política cotidiana de reconstrução do mundo sem reproduzir as violências que o organizam.
Caetano Veloso jamais separou estética e enfrentamento. Em “Podres Poderes” (1984), desmonta a hipocrisia estrutural ao expor um país que absolve privilégios e pune a miséria. Em “Gente” (1977), afirma uma ética humanista sem rodeios: “gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”, verso que confronta diretamente uma sociedade fundada na desigualdade. Já “London London” (1971), escrita no exílio, carrega a solidão política de quem foi expulso por pensar — “I’m wandering round and round” — experiência que retorna sempre que o autoritarismo reaprende a se organizar.
Paulinho da Viola nunca foi neutro, apenas preciso. Em “Sinal Fechado” (1969), o diálogo truncado — “olá, como vai? eu vou indo e você?” — revela um país cordial na superfície e brutal no conteúdo. Em “Meu Novo Sapato” (1978), quando canta “meu novo sapato já não pisa no chão”, fala de dignidade, tempo e recusa à ostentação num Brasil que confunde sucesso com dinheiro rápido e ausência de responsabilidade pública.
Antes de qualquer nostalgia confortável, é preciso lembrar Cazuza. Em “Brasil” (1988), ele escancara o país sem anestesia: “Brasil! Mostra tua cara / Quero ver quem paga / Pra gente ficar assim” e “o meu cartão de crédito é uma navalha”. Não é apenas denúncia da corrupção; é radiografia de uma economia que sangra os de baixo e protege os de cima. A canção tornou-se tema recorrente da televisão porque disse em voz alta o que muitos preferiam sussurrar. Como esquecer os versos cortantes de Gonzaguinha ao cantar que “a gente não tem cara de babaca”?
Enquanto esses artistas sustentam uma ética pública clara — justiça social, Estado democrático de direito, combate à violência estrutural — parte expressiva da nova geração musical parece anestesiada ou capturada. Não é detalhe que jovens artistas do hip-hop e do funk estejam hoje sendo processados por vínculos com organizações criminosas como o PCC, facção surgida nos presídios paulistas e estruturada no narcotráfico, e o Comando Vermelho, nascido no Rio de Janeiro, com controle armado de territórios populares. Não se trata de criminalizar gêneros, mas de constatar o vazio ético onde a arte deveria ser contraponto, não vitrine do crime.
E onde estão os pagodeiros?
Onde está o axé, que nasceu como festa, afirmação negra e política do corpo?
Onde foi parar o piseiro, hoje onipresente nas rádios e ausente do debate público?
No sertanejo, o contraste é ainda mais brutal. Artistas como Leonardo, Zezé Di Camargo e Gusttavo Lima recebem cachês milionários para se apresentar em cidades do Brasil profundo com 10 mil, 30 mil ou 70 mil habitantes — municípios que carecem de saneamento básico, postos de saúde, escolas equipadas e professores valorizados. Uma única noite de show custa o equivalente a investimentos capazes de transformar serviços essenciais. A conta fecha mal; o símbolo é devastador.
Será mesmo preciso lei federal que proíba prefeituras com alarmantes índices de desenvolvimento humano (IDH) de contratar esses e outros artistas que nada acrescentam à melhoria da qualidade de vida e às suas populações vulneráveis?
Nesse cenário, merece louvor a atitude de Anitta, que se recusou a realizar um show ao constatar que o pagamento envolveria recursos públicos em contexto de carências evidentes. O gesto não é moralismo: é responsabilidade. Mostra que artistas podem — e devem — escolher de que lado da história desejam estar quando o dinheiro público entra em cena.
Nos últimos dois meses, Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso, Paulinho da Viola e Djavan voltaram a ocupar o espaço público não apenas como artistas, mas como cidadãos ativos.
Na tarde luminosa de 14 de dezembro de 2025, Copacabana virou praça moral do país. Ali, a música voltou a ser trincheira e a palavra, gesto político. Caetano lembrou que “o povo brasileiro elegeu Lula. E, por isso, a democracia no Brasil resiste!”, antes de cantar um Brasil que insiste em existir “por entre corpos e nomes… no coração do Brasil”. Com Gil, avisou que nada é neutro: “é preciso estar atento e forte”, porque a morte ronda quando a democracia cochila. Gil falou de memória e travessia, de um povo que busca autonomia apesar das recaídas. Djavan exigiu compromisso — “salve a nossa democracia! Lutemos por ela sempre!” — e, com Chico, cantou o cansaço de quem não aceita mais a mentira. Ivan Lins trouxe Gonzaguinha para dizer que não há anistia para o cinismo. Lenine cravou soberania. E todos, juntos, selaram o pacto: “Apesar de você, amanhã vai ser outro dia”. A praia ouviu. O país também.
Em 21 de setembro de 2025, na Praia de Copacabana, convocaram e participaram de um grande ato contra a chamada PEC da Blindagem, denunciando tentativas de anistiar ou proteger politicamente os responsáveis pela tentativa de golpe de Estado.
Em 14 de dezembro de 2025, novamente no Rio de Janeiro, estiveram à frente de nova mobilização popular contra iniciativas da Câmara dos Deputados que relativizam crimes gravíssimos como a tentativa de golpe e a abolição violenta do Estado democrático de direito, reduzindo penas, facilitando progressões e encurtando o tempo de prisão de condenados. Não foi gesto simbólico: foi intervenção direta contra o esvaziamento da justiça e da memória democrática.
Depois de Cazuza, o Brasil também sente falta de Jorge Aragão com a interpretação arrebatadora de Beth Carvalho em “Vou Festejar” (1978). Quando o samba proclama “eu vou festejar, vou festejar / o teu sofrer, o teu penar”, não celebra vingança pequena; celebra a virada contra a traição social, transformando alegria em afirmação política.
E como não reverenciar Aldir Blanc, em parceria com João Bosco, em “O Bêbado e a Equilibrista” (1979). Versos como “choram Marias e Clarices no solo do Brasil” e “a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar” condensam o luto e a resistência de um país ferido pela ditadura, que ainda assim se recusou a desistir da democracia.
Celebrar Chico, Caetano, Gil, Paulinho e Djavan — e lembrar Cazuza, Beth, Aldir e Jorge Aragão — não é saudosismo. É cobrança. Eles provam que longevidade artística não se mede por algoritmos, mas por caráter.
A pergunta permanece incômoda e urgente: quem, entre os mais jovens, está disposto a pagar o preço de não se calar?
Porque arte que não incomoda o poder, cedo ou tarde, passa a servi-lo. Fato.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

