Quando existir se torna um crime
O mês em que o país celebra a “Consciência Negra” mal havia acabado, e nove garotos pobres foram covardemente assassinados em uma operação abjeta promovida pela Polícia Militar (PM) em um baile funk que ocorria na comunidade da periferia
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.
Os tempos no Brasil não são nada fáceis, com retrocessos diários nas mais variadas áreas. Os descalabros são tantos, que acabamos correndo o risco de naturalizar situações que são bizarras por natureza. Mas para tudo há limite nesta vida. O que vimos na comunidade de Paraisópolis, no último dia 01/12, ultrapassa todas as raias do hediondo e da covardia.
O mês em que o país celebra a “Consciência Negra” mal havia acabado, e nove garotos pobres foram covardemente assassinados em uma operação abjeta promovida pela Polícia Militar (PM) em um baile funk que ocorria na comunidade da periferia.
Assim como milhões de brasileiros, eu estava em minha casa, assistindo à TV, quando soube da notícia. Logo notei que se tratava de uma situação gravíssima. Na medida em que os vídeos foram chegando pelo WhatsApp, comprovando a violência desmedida da PM para com aqueles jovens, fui tomada de um misto de revolta e asco. Por mais que a violência e o autoritarismo pautem nossa vida pública, não há como não se sentir extremamente mal diante de crianças sendo massacradas por agentes do Estado.
Tão ou mais revoltante que as imagens foi o movimento que se iniciou logo em seguida, na mídia e nas redes, com determinados grupos tentando a todo custo justificar a violência policial.
O raciocínio absurdo parte da premissa de que o problema todo não está no fato de a PM ter usado de força desmedida e desnecessária contra adolescentes e até crianças, ocasionando as mortes por pisoteamento e asfixia. Mas sim nos bailes funks, que seriam ambientes de drogas e degradação cultural e moral.
Esse tipo de raciocínio permeia nossa cultura racista ao longo dos séculos. Antes do funk, outras manifestações culturais do povo negro e das periferias também foram criminalizadas, a ponto de o Estado ter editado leis proibindo o samba e a capoeira, no século passado. Nesta sociedade racista, o simples ato de existir já representa um crime da parte dos negros e miseráveis.
Quem já teve a oportunidade de visitar uma comunidade da periferia sabe o quanto esses locais são carentes nos mais variados aspectos. Faltam serviços básicos como creche, posto de saúde, escola, iluminação, asfalto, saneamento básico. E falta, além disso tudo, cultura e lazer para as crianças e adolescentes.
A adolescência e a juventude são época mágicas da vida. Tanto que a maioria daqueles que hoje são adultos ou idosos recordam-se com ternura das experiências vividas nessas fases. É também um tempo em que as pessoas querem se arriscar, contestar, desafiar.
Na comunidade onde ocorreu esse massacre, as opções de lazer e cultura para a juventude são praticamente nulas. Dezenas de milhares de jovens repletos de energia e prontos para curtir a vida, namorar e tudo mais. O que as autoridades esperavam que eles fizessem?
Atualmente goste-se ou não, os pancadões são as únicas alternativas de diversão para esses garotos e garotas. E o funk, apesar de muitos torcerem o nariz para esse estilo, é um elemento que marca a identidade desses indivíduos.
Na medida em que nada faz para oferecer lazer, esporte e cultura para os jovens da periferia, o mínimo que o poder público poderia fazer seria buscar alternativas para que tais eventos ocorressem com respeito às leis, de modo a não incomodar a vizinhança e não trazer riscos a seus frequentadores. Em vez disso, opta-se simplesmente por atacar com violência os adolescentes que se divertiam no baile.
Quando vemos as fotos das vítimas dessa operação, notamos que a maioria delas é negra e que todos têm origem muito humilde. No pancadão de Paraisópolis rolavam drogas ilícitas, álcool, músicas com conteúdo sexualizado e som alto que incomodava a vizinhança? Provavelmente. Mas nas baladas de classe média alta e nos grandes shows de rock frequentados pela elite também encontramos todos esses elementos reunidos. A diferença é que, no último caso, a polícia comparece para garantir segurança aos frequentadores, e não para espancá-los sadicamente.
Um levantamento trazido nesta semana pelo site G1 mostra que o bairro de Pinheiros é a região da Capital que mais apresenta reclamações por som alto, com quase 9,5 mil verificadas no primeiro semestre deste ano. Em contrapartida, o setor onde se localiza Paraisópolis possui apenas 60 queixas no “Psiu”, da prefeitura paulistana, no mesmo período. Ironicamente, o lugar que a PM escolheu para invadir com violência foi justamente o frequentado por pobres e negros.
Sempre importante frisar que não buscamos, aqui, generalizar essa crítica a todos os membros da PM, pois sabemos que há muitos policiais que respeitam os direitos humanos. Mas é preciso que fique igualmente claro que existe um componente estrutural nessa violência, com aspectos de ordem racial e de classe social.
Esse é um problema histórico que agora se agrava diante de uma política que enxerga na letalidade policial a solução para a questão da segurança pública. Isso fica bem evidente em declarações públicas do governador tucano João Doria, como a proferida no início do ano, quando disse que, a partir daquela data, a polícia atiraria para matar. Ou sua tentativa recente de justificar a todo custo a ação da PM em Paraisópolis, desprezando a dor dos pais e amigos que ainda choravam a perda de seus entes queridos.
Na condição de presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp, é evidente que irei exigir uma apuração rígida do caso e a punição dos responsáveis pelo massacre. Mas penso que não podemos nos limitar a isso. Paralelamente a essa cobrança, precisamos, com urgência, trabalhar pela criação de mecanismos efetivos para o enfrentamento dessa violência estrutural que marca nossa força policial, que existe para proteger as pessoas e não massacrá-las.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247,apoie por Pix,inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: