Emerson Barros de Aguiar avatar

Emerson Barros de Aguiar

Escritor, bioeticista e professor universitário

30 artigos

HOME > blog

Quando não há um Lula

A ausência de Lula expõe o vazio simbólico da esquerda, fragiliza a disputa emocional e abre espaço para o medo virar identidade política Brasil

Brasília (DF) - 10/12/2025 - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Foto: Agência Brasil/EBC)

Há momentos na história política em que a disputa eleitoral deixa de ser apenas um confronto entre programas e passa a ser uma luta por sentido, por pertencimento, por amparo simbólico. É nesses momentos que se revela, com clareza quase brutal, o peso da ausência de uma liderança popular carismática. “Quando não há um Lula” não é apenas uma constatação sobre um nome próprio, mas sobre um tipo específico de liderança que faz falta quando a sociedade entra em estado de medo, frustração e desalento.

Lula não é apenas um político experiente, nem apenas um articulador habilidoso. Ele encarna uma biografia coletiva. Sua trajetória pessoal funciona como metáfora viva da mobilidade social possível, ainda que imperfeita, ainda que interrompida. Em sociedades profundamente desiguais, essa identificação não é um detalhe: é um eixo estruturante da confiança política. Quando existe alguém assim no campo progressista, a política não se limita a promessas futuras; ela se ancora em memórias concretas, em lembranças de tempos em que a vida pareceu menos áspera para os de baixo. Quando não há um Lula, essa ponte entre passado vivido e futuro desejado se rompe.

Nesses cenários, a esquerda costuma insistir na racionalidade do discurso, na correção técnica, na superioridade moral de suas propostas. Tudo isso é importante, mas insuficiente. A política, sobretudo em períodos de crise, não é movida prioritariamente pela razão, mas pelo medo e pela esperança. Quando a esperança não tem rosto, o medo encontra terreno livre. E o medo, historicamente, é o combustível mais eficiente das direitas autoritárias. Elas compreendem, talvez melhor do que seus adversários, que pessoas angustiadas não buscam projetos sofisticados, mas proteção simbólica, ainda que ilusória.

Quando não há um Lula, a esquerda fala, mas não é ouvida; argumenta, mas não mobiliza; governa, mas não cria vínculo. Falta-lhe alguém capaz de traduzir complexidades em linguagem afetiva, de falar de economia contando histórias, de falar de Estado como quem fala de cuidado, de dignidade, de mesa farta. Falta-lhe alguém que não pareça um gestor distante, mas um par, um igual, alguém que “sabe como é”. Sem isso, a política progressista passa a soar abstrata, mesmo quando correta.

A ausência de uma liderança carismática também produz outro efeito silencioso e corrosivo: a fragmentação. Sem um polo simbólico forte, as forças de esquerda se dividem em disputas internas, em guerras de pureza ideológica, em competições por pequenos espaços de poder. Cada grupo fala para o seu público, reforça suas próprias certezas e perde a capacidade de construir uma narrativa comum. Lula, com todos os seus limites e contradições, sempre funcionou como esse eixo agregador, capaz de manter unidas correntes diversas em torno de um mínimo compartilhado. Quando não há um Lula, a esquerda tende a se tornar um arquipélago de boas intenções isoladas.

Ao mesmo tempo, a direita ocupa o espaço emocional deixado vazio. Apresenta-se como voz firme em meio ao caos, como promessa de ordem diante da insegurança, como resposta simples para problemas complexos. Pouco importa se essas respostas são viáveis ou justas. O que importa é que elas oferecem sensação de controle. Sem uma figura popular que dispute esse terreno afetivo, a esquerda assiste à direita transformar ressentimento em identidade política e medo em voto.

É preciso compreender que o carisma de Lula não se reduz a uma habilidade pessoal ou a um talento retórico. Ele é fruto de uma história social específica, de uma experiência concreta de pobreza, exclusão e ascensão que ressoa em milhões. Por isso, não se trata de “fabricar” um novo Lula por estratégia de marketing. Trata-se de reconhecer que, sem lideranças enraizadas na vida real do povo, a política progressista corre o risco de se tornar um exercício de administração sem alma, incapaz de inspirar lealdade em tempos difíceis.

Quando não há um Lula, a esquerda governa sob permanente defensiva. Precisa explicar demais, justificar demais, conceder demais. E, enquanto explica, perde a batalha do sentimento. A política vira um campo onde a razão fala baixo e o medo grita alto. Nessa condição, a derrota não é apenas eleitoral; é simbólica. Perde-se a capacidade de fazer o povo acreditar que o futuro pode ser melhor do que o presente.

Por isso, refletir sobre “quando não há um Lula” é, no fundo, refletir sobre a necessidade de reconectar a política com a experiência concreta das maiorias. Não como culto de um líder específico, mas como alerta histórico. Sociedades desiguais, marcadas por frustrações acumuladas, não sobrevivem politicamente apenas com bons gestores e discursos corretos. Elas precisam de lideranças que personifiquem a possibilidade de dignidade, que ofereçam esperança com rosto humano. Quando isso falta, o vazio não permanece vazio por muito tempo. Ele é ocupado. E quase sempre por quem sabe explorar o medo melhor do que ninguém.

Quando Lula não puder mais disputar eleições no Brasil, a esquerda brasileira entrará numa zona de risco histórico real e profundo. Não se trata apenas de perder uma eleição presidencial, mas de perder a capacidade de disputar o imaginário nacional quando já não houver um nome capaz de ocupar o centro simbólico da política. A eleição seguinte, na qual Lula não estará no jogo, não será apenas mais uma alternância de candidaturas; ela tende a marcar uma mudança de era. E a esquerda, hoje, está encurralada.

O primeiro risco é estrutural: a esquerda brasileira acostumou-se, por décadas, a disputar eleições presidenciais com uma âncora carismática. Mesmo quando Lula não foi candidato, sua presença orbitou o processo, legitimando nomes, transferindo votos, organizando afetos. Quando essa referência desaparece, o campo progressista se vê diante de uma realidade dura: não há sucessão clara, não há liderança consensual, não há figura capaz de unificar. E política sem centro gravitacional se fragmenta rapidamente.

Esse vazio ocorre justamente num contexto desfavorável. O debate público foi deslocado para temas em que a esquerda chega atrasada e defensiva, sobretudo segurança pública, criminalidade, sensação de desordem, medo cotidiano. Esses assuntos não são novos, mas agora ocupam o centro emocional do eleitorado. A direita fala de segurança com frases curtas, imagens fortes e promessas imediatas. A esquerda responde com dados, diagnósticos estruturais e explicações longas. Não está errada, mas está fora do tempo emocional da sociedade.

Quando não há um Lula, a esquerda perde a capacidade de falar de temas duros sem parecer distante. Lula consegue falar de polícia, crime e ordem sem ser confundido com autoritarismo, porque havia confiança afetiva. Sem essa confiança prévia, qualquer discurso progressista sobre segurança soa ou como ingenuidade ou como cumplicidade. O resultado é o encurralamento: se fala em repressão, perde sua base histórica; se fala em direitos humanos, perde o eleitor médio amedrontado.

O segundo risco é narrativo. A esquerda brasileira construiu sua identidade na promessa de inclusão social, redução da pobreza, ampliação de direitos. Esse discurso foi extremamente potente enquanto produziu resultados visíveis e rápidos. Hoje, porém, ele já não basta. As novas gerações não viveram o antes e o depois. Para elas, políticas sociais são ponto de partida, não conquista histórica. Sem um líder que personifique essa memória, a esquerda perde a vantagem comparativa e passa a parecer apenas mais uma força do sistema.

Enquanto isso, a direita se reinventa como “antissistema”, mesmo sendo profundamente ligada a interesses tradicionais. Ela se apropria da linguagem da revolta, da indignação moral, da promessa de ordem, deve fretamento de problemas cotidianos, como o da insegurança. E faz isso com eficácia porque oferece algo que a esquerda, no momento, não está oferecendo: pertencimento emocional e identidade clara. Em política, quando alguém diz “nós”, e o outro responde com “depende”, o “nós” vence.

O terceiro risco é organizacional. Sem uma liderança presidencial forte, a esquerda tende a se fechar em nichos, movimentos específicos, pautas segmentadas. Isso é importante, mas insuficiente para ganhar eleições majoritárias. Presidência se vence com maioria emocional, não apenas com razão moral. A esquerda corre o risco de se tornar correta, mas minoritária; coerente, mas isolada; barulhenta nas redes, mas frágil nas urnas.

Diante desse quadro, as soluções não são simples nem rápidas, mas existem.

A primeira é reconhecer o problema sem autoengano. Não haverá um “novo Lula” por decreto, nem por escolha interna. O carisma que ele representa não se fabrica. Mas é possível reconstruir uma cultura política popular, capaz de formar lideranças com lastro social real, e não apenas bom desempenho em debates ou redes sociais. Isso exige tempo, presença territorial, escuta real e reconstrução de vínculos com o cotidiano das periferias, das cidades médias, do Brasil que não milita, mas vota.

A segunda saída passa por enfrentar o tema da segurança pública sem medo e sem clichês. A esquerda precisa construir uma narrativa própria sobre segurança que una proteção da vida, ordem pública e justiça social, em linguagem simples e direta. Segurança não pode ser tratada apenas como efeito colateral da desigualdade; ela é uma demanda imediata. Ignorá-la é entregar o debate de bandeja à direita. Disputá-la exige coragem política e capacidade de síntese.

A terceira solução é abandonar a dependência excessiva da eleição presidencial como único eixo de sobrevivência. A esquerda precisa reconstruir poder local, formar quadros, ganhar prefeituras, governar bem cidades, produzir exemplos concretos de gestão que falem por si. Lula sempre foi relevante porque veio de uma base social organizada. Sem essa base renovada, qualquer candidatura presidencial será frágil, mesmo que bem-intencionada.

Por fim, talvez a solução mais difícil: a esquerda precisa reaprender a falar de esperança sem parecer ingênua, e de ordem sem parecer autoritária. Precisa recuperar a capacidade de emocionar sem demagogia, de simplificar sem trair princípios.

Quando já não há um Lula, não basta administrar o legado; é preciso reconstruir o sentido da política progressista para um país que mudou, envelheceu, empobreceu em expectativas e se cansou de promessas abstratas e teses caducas.

Se não fizer isso, o risco não é apenas perder a próxima eleição presidencial. É perder uma geração inteira. E, em política, gerações perdidas custam décadas para serem recuperadas.

Veja-se o exemplo do Chile.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.