Quando o Congresso vira ameaça, o povo precisa ser o freio
No domingo (14/12), o povo brasileiro honrará mais uma vez a advertência do velho Ulisses, como fez contra a anistia e PEC da bandidagem
Ulisses Guimarães, símbolo das Diretas Já e da Constituinte Cidadã, advertiu com a lucidez de um parlamentar democrata: “A única coisa que mete medo em político é o povo na rua.” A advertência de Ulisses retorna na atual conjuntura com toda força, porque jamais tivemos um Congresso tão disposto a afrontar a democracia, a Constituição e o próprio sentido de representação popular. A composição majoritária fruto da simbiose tóxica entre o Centrão fisiológico e a extrema direita autoritária age sem pudor, sem limite e sem vergonha. É a política reduzida ao balcão de negócios, à chantagem institucionalizada, à defesa de interesses privados travestidos de prerrogativas parlamentares.
Diante dessa desfaçatez, dessa máquina legislativa antipovo, antidemocracia e antiética, não há conciliação possível. Esses parlamentares, sustentados por pactos obscuros e por uma agenda reacionária que ameaça direitos, instituições e políticas públicas essenciais, operam diariamente para capturar o Estado e subjugar a sociedade. A única resposta proporcional a esse assalto político é a que Ulisses sabiamente referiu. No domingo (14/12), o povo brasileiro honrará mais uma vez a advertência do velho Ulisses, como fez contra a anistia e PEC da bandidagem.
É precisamente nesse cenário de ofensiva contínua contra a democracia que se insere a atuação da maioria deletéria de congressistas na Câmara de Deputados, que representa tudo, exceto o interesse público, nos dias 09 e 10/12, deflagrou episódios deploravelmente indignos que não condizem com a lisura ética política de um parlamento em meio ao Estado Democrático de Direito.
O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB) figura inepta e manipulável, deixa evidente em caráter definitivo, a sua incapacidade para presidir uma das casas do povo. Infinitamente distante da estatura ético-política que marcou a trajetória democrática do parlamentar Ulisses Guimarães, Hugo Motta agiu com truculência ao decidir pautar de surpresa a votação de um projeto polêmico sobre a redução de pena para a trupe de golpistas ao Estado de Direito, recentemente condenada pela Suprema Corte, com trânsito em julgado.
O texto substitutivo do deputado Paulinho da Força (SD -SP) investigado por suspeita de envolvimento em um esquema de captação ilícita de clientes para ações trabalhistas, inspirado pela lavra de dois golpistas, Michel Temer e Aécio Neves (PSDB-MG), prevê que, quando os crimes de tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado ocorrerem no mesmo contexto, aplicar-se-á apenas a pena mais severa, em vez de somar as punições previstas para cada um deles.
Para os parlamentares alinhados ao projeto antidemocrático, a mudança legislativa abre caminho para um drástico abrandamento das penas impostas aos responsáveis pelo ataque institucional. No caso de Jair Bolsonaro, os cálculos indicam que a nova regra poderá reduzir o período de prisão em regime fechado para apenas 2 anos e 4 meses, em vez dos 7 anos e 8 meses fixados na execução penal.
Trata-se de um benefício que não se restringe somente ao ex-presidente. A medida tende a aliviar de forma significativa as condenações de todo o núcleo central envolvido na tentativa de golpe, composto por figuras-chave como Almir Garnier, ex-comandante da Marinha; Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa; Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil; Augusto Heleno, ex-chefe do GSI; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; e o deputado Alexandre Ramagem. Somado a isso, o efeito pode se estender à libertação de outros condenados por diversos tipos de crimes, não apenas daqueles envolvidos nos atos de 8 de janeiro.
O grupo de usurpadores extremistas e sem nenhum escrúpulo que foi responsável por arquitetar, sustentar e operacionalizar a ofensiva que tentou ferir a democracia brasileira, agora se vê prestes a ser contemplado por uma revisão penal feita sob medida para seus interesses. Esse golpe continuado perpetrado na Câmara de Deputados confirma a hashtag em voga nas redes de sociais de que o Congresso é inimigo do povo.
Num conluio articulado entre Ciro Nogueira (PP-PI), liderança do Centrão, e Antônio Rueda, presidente do União Brasil, ambos contrários à indicação de Flávio Bolsonaro à presidência por decisão de Bolsonaro, prevaleceu a avaliação endossada por setores da Faria Lima e pelas bancadas reacionárias de que o nome almejado seria a cria do bolsonarismo dita moderada, Tarcísio de Freitas (Republicanos -SP). Ao lado deles, o líder do Partido Liberal, Sóstenes Cavalcanti (PL-SP), participou de uma reunião realizada na casa do próprio Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Na véspera desse convescote da vergonha, Flávio advertiu os caciques do Centrão ao declarar: “eu tenho um preço para desistir” da candidatura. Assim, foi costurado, na calada da noite e com a anuência de Hugo Motta, a inclusão súbita da escorchante pauta de redução de pena, nada mais, nada menos do que uma anistia disfarçada de dosimetria.
Ao lançar Flávio como candidato, Jair Bolsonaro recorre novamente ao seu truque preferido, transformar a política num balcão de proteção familiar. É o toma lá, dá cá a serviço da autopreservação destinada a evitar o cumprimento dos 27 anos e três meses de pena. Trata-se de mais um capítulo da atuação covarde de um personagem que tanto mal fez e insiste em continuar fazendo ao país e aos brasileiros que lutam por um Brasil justo, democrático e soberano.
Diante de uma conjuntura marcada por um golpe continuado, conduzido por elites que historicamente sequestram o bem-estar coletivo e jamais aceitaram a soberania popular expressa em governos progressistas, a Câmara dos Deputados protagonizou mais um capítulo de retrocesso institucional. O dia 9/13 desnudou a truculência das forças antidemocráticas que dominam o Congresso Nacional, principalmente o atual campo desqualificado de deputados do Centrão e da Extrema direita que colocam seus interesses partidários e de suas bancadas do agro, do boi, da bala, da elite financeira, do crime organizado acima dos interesses do povo.
Esse episódio escancarou cenas que suplantaram os tempos da ditadura de 64, não só pela violência física, moral e ética a parlamentares, como também pelo silenciamento da cobertura das cenas de horror pela mídia, como das vozes dos parlamentares progressistas que protestavam diante da barbárie e da exceção, como a deputada Benedita da Silva (PT-RJ) que foi desrespeita com o corte abrupto e indevido de sua fala pela direção da mesa, ato acompanhado de expressões de escárnio dos trogloditas do Centrão e da violenta extrema direita. Mesmo após o episódio de violência contra o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), agredido brutalmente e removido à força do plenário em plena sessão, a maioria dos parlamentares escolheu avançar com a votação do PL da dosimetria, com o resultado que expô a profundidade da captura do parlamento por interesses antidemocráticos, em que 291 deputados votaram a favor da medida e 148 se posicionaram contra.
A aprovação não apenas alivia a situação jurídica dos extremistas que invadiram e depredaram as sedes dos três poderes, mas também abre caminho para beneficiar diretamente o próprio Jair Bolsonaro (PL), transformando sua atual pena em mera formalidade, o que revela o claro objetivo político da manobra.
A sessão foi conduzida de forma açodada no fim do dia, que praticamente exclui a população do acompanhamento dos debates. Daí a indignação exposta pelo vice-líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias, ao denunciar a farsa legislativa: “O senhor está colocando para votar um tema de extrema importância às 23h30. Pelo menos tenha a decência de votar à luz do dia. A decisão de votar isso hoje foi tomada ontem à noite com deputados do Centrão. Estamos rasgando a Constituição. Isso é um atentado à democracia”. Ao forçar a votação em meio à madrugada, após um ato de violência física contra um parlamentar de oposição, a Câmara sinaliza que parte expressiva do Legislativo atua não como guardiã da ordem constitucional, mas como instrumento de proteção daqueles que atentaram contra ela.
Como referiu o emérito Jurista e ex ministro da Justiça, Tarso Genro na plataforma X: Esses novos articuladores do golpe continuado, hoje instalados e camuflados no Poder Legislativo, infiltrados em outros órgãos de Estado e presentes em setores da sociedade civil atuam guiados por três propósitos inequivocamente criminosos: “achacar e desmoralizar o Estado, através da apropriação orçamentária destinada a fortalecer os suas negociatas e seus negócios políticos; transformar a política numa sucessão de atos degradados de disputa violenta, para corroer e desmoralizar as instituições do Estado de Direito; proteger os milicianos e grupos criminosos, que controlam grande parte dos negócios do crime organizado, em territórios que eles - como políticos - tem seus redutos eleitorais”.
Entre as aberrações e os raros momentos de sensatez desta semana fatídica para a história do país, surgiu ao menos um sinal de lucidez: a preservação do mandato do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ). Progressista combativo, íntegro e de coragem inabalável, Glauber tem sido uma das vozes mais consequentes na defesa do povo e da transparência pública. Foi ele quem expôs o esquema das emendas secretas, o famigerado “orçamento secreto”, ou “emendas Pix”, desnudando as manobras obscuras e irregularidades no Congresso. A tentativa de cassação articulada por Arthur Lira tinha um objetivo evidente, o de calar o parlamentar que denunciava o sequestro do orçamento público e apontava práticas que classificava como criminosas. Glauber, além disso, ingressou com ações no STF que levaram à suspensão de determinadas emendas parlamentares, aumentando ainda mais a animosidade de Lira contra ele.
Logo depois desse momento de sensatez, o Congresso voltou ao seu curso habitual de distorções. Parlamentares da direita e da extrema direita votaram para preservar o mandato de Carla Zambelli, bolsonarista já condenada em duas ações penais pelo STF. Mas, menos de 24 horas depois, a realidade institucional foi restabelecida, o ministro Alexandre de Moraes anulou a decisão da Câmara que havia rejeitado a cassação da deputada e determinou a perda imediata de seu mandato. Moraes ordenou ainda que o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), dê posse ao suplente em até 48 horas. Os demais ministros da 1ª Turma do STF confirmaram por unanimidade a decisão do ministro Moraes.
A continuidade do golpe institucional e a degradação moral, ética e política que se instalaram na atual composição majoritária do Congresso dominada por figuras desclassificadas, a começar pelos presidentes das duas Casas, ficaram ainda mais evidentes nesta semana. No Senado, Davi Alcolumbre, ao receber a decisão enviada pela Câmara sobre o PL da dosimetria, estava pronto para atropelar o devido processo e levar o texto diretamente ao plenário. Só não o fez porque foi oportunamente interpelado pelo senador Otto Alencar (PSD-BA), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que impôs o necessário freio à manobra articulada entre Alcolumbre e Hugo Motta. Frustrado o atalho, Alcolumbre rapidamente foi nomeado como relator do projeto o senador Esperidião Amin (PP-SC), político da direita alinhado ao bolsonarismo. A escolha não foi casual. Esperidião quer se reeleger senador pelo estado mais bolsonarista do país. Entretanto, pelas inúmeras incongruências e consequências jurídicas decorrentes do péssimo texto do PL aprovado na Câmara, Esperidião pediu ajuda ao senador Alessandro Vieira (MDB-SE) para juntos realizarem os reajustes imprescindíveis.
Diante desse cenário de descalabro institucional, captura do Parlamento por interesses golpistas e degradação moral sem precedentes, tornou-se evidente que as instituições, por si sós, já não bastam para conter a marcha autoritária e corrupta que se instala no país a partir do Congresso Nacional.
E mais, em 12/12, a Polícia Federal deflagrou uma operação sobre desvios de emendas parlamentares que tem como alvo Mariângela Fialek, ex-assessora do deputado e ex-presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL). Até o presente, o deputado Lira não é alvo das investigações da PF. A ação foi autorizada pelo ministro Flávio Dino, relator no STF de processos que tratam da falta de transparência nas emendas. Mariângela atua na área responsável pela organização das indicações de emendas e, atualmente, integra a liderança do PP na Câmara. O inquérito que motivou a operação foi instaurado a partir dos depoimentos de seis parlamentares, entre eles Glauber Braga. Isso explica a ofensiva desproporcional dirigida contra ele, especialmente por parte de Arthur Lira.
No mesmo dia 12/12, outra notícia positiva para o Brasil foi a retirada dos nomes do ministro Alexandre de Moraes e de sua esposa da lista da Lei Magnitsky. A decisão representa uma vitória do presidente Lula e da diplomacia brasileira e um revés direto para o clã bolsonarista, que atuou junto ao governo Trump para prejudicar economicamente o país e retaliar a Justiça brasileira pelo julgamento de Jair Bolsonaro.
Nessa materialidade adversa a advertência de Ulisses Guimarães ressurge com a força de um imperativo histórico, como antídoto capaz de deter uma maioria parlamentar empenhada em sabotar a democracia. Foi assim no passado contra a ditadura. Diante de um Congresso capturado pelo Centrão fisiológico, pela extrema direita golpista e pelos interesses mais espúrios, a presença física e massiva do povo na rua é inadiável.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

