Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva avatar

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva: economista, pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY), com Mestrado na PUC-SP, e doutor em História Econômica pela USP

23 artigos

HOME > blog

Quando o filé é privatizado e o osso fica para o Estado

Setor privado entra onde há lucro garantido e deixa ao Estado a parte cara, dispersa e arriscada do mercado

Trabalhadores dos Correios (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)

Nos últimos dias, canais alinhados à direita têm apresentado gráficos mostrando que as estatais brasileiras, antes lucrativas, agora dão prejuízo. Tentam transformar isso em prova da suposta incapacidade administrativa do governo atual. Não se trata disso; trata-se de compreender que os resultados dessas empresas refletem mudanças estruturais profundas provocadas por privatizações seletivas, aberturas de mercado assimétricas e transformações tecnológicas que deslocaram para o setor público aquilo que o privado não quis assumir.

O que acontece é conhecido na literatura econômica como cream skimming: o setor privado entra apenas onde há lucro garantido, deixando ao Estado a parte cara, dispersa ou arriscada do mercado. Isso não é uma questão de polarização política. É microeconomia aplicada.

O caso da CMTC é um clássico. Quando Luiza Erundina assumiu a Prefeitura de São Paulo, encontrou uma frota sucateada. Organizavam-se mutirões, restauravam-se ônibus, recuperava-se a manutenção. A empresa voltou a funcionar com dignidade. Bastou a troca de governo para que a CMTC fosse extinta. As empresas privadas que entraram no sistema assumiram somente as linhas rentáveis, deixando a periferia para trás. Nessas regiões, onde o desgaste dos veículos é muito maior, o privado não viu vantagem. O resultado foi a explosão do transporte clandestino, não por desordem social, mas por simples funcionamento da lógica de mercado: onde a expectativa é de que o custo marginal sempre supere a receita marginal, ninguém entra. Sem estatal, não há alternativa.

O mesmo mecanismo reaparece hoje de maneira explícita na Infraero. Durante décadas, os grandes aeroportos superavitários financiavam centenas de pequenos terminais indispensáveis para a integração territorial do país. Com as concessões, o filé mignon — aeroportos já amortizados, com demanda consolidada e risco mínimo — foi entregue à iniciativa privada. À Infraero restaram os terminais deficitários, espalhados por longas distâncias e com baixa densidade de passageiros. A consequência contábil era previsível: a estatal perdeu justamente sua fonte de receita. Ainda assim, a direita apresenta o resultado como sinal de má gestão, ignorando que a empresa foi mutilada de suas bases financeiras.

Mas nenhum caso é tão complexo quanto o dos Correios. A correspondência física praticamente desapareceu com a digitalização. A assinatura eletrônica foi o tiro de misericórdia. O único mercado que cresceu foi o de encomendas, imediatamente ocupado por grandes operadores nacionais e estrangeiros. Só que esses operadores concentram suas operações nos centros urbanos verticalizados, onde o volume de entregas por quilômetro torna o serviço lucrativo. O interior profundo, as áreas remotas, os bairros perigosos e as favelas dominadas pelo crime organizado não interessam ao capital privado. São caros, arriscados e logisticamente difíceis. Para atender esses lugares, as transportadoras contratam os próprios Correios a preços que muitas vezes não cobrem os custos. É o setor privado operando onde é fácil e terceirizando para a estatal aquilo que não deseja assumir.

Há, porém, um elemento subterrâneo que raramente aparece no debate público. Desde os anos 1970, os Correios construíram um banco de dados de endereçamento de valor inestimável. A criação do CEP, inicialmente de cinco dígitos e depois expandido para oito, foi um feito de engenharia territorial sem paralelo no mundo. Esse sistema permitiu mapear ruas, quadras, áreas de risco e zonas de difícil acesso. Em torno dele surgiram plugins, APIs e ferramentas de roteirização que hoje estão embutidos em praticamente todas as plataformas de entrega do país. O comércio eletrônico brasileiro só é possível porque existe esse CEP de oito dígitos, construído rua a rua, bairro a bairro, durante meio século — e disponibilizado gratuitamente pelo Estado.

E é exatamente aqui que surge o maior paradoxo da economia brasileira contemporânea. As empresas de maior faturamento líquido do setor urbano — Uber, 99 e iFood — só funcionam porque amarram seus aplicativos a esse banco de dados estatal. A Uber pode ter o mapa mais sofisticado do planeta; o iFood pode cercar cidades com geofences precisos; a 99 pode operar algoritmos de otimização de última geração. Mas nenhuma delas conseguiria localizar um endereço numa viela, num beco de cidade pequena, numa ocupação informal ou numa favela sem o CEP que os Correios construíram gratuitamente para o país inteiro. Em lugares onde sequer há placas de rua, é o CEP que organiza o território. E é essa organização pública que permite que plataformas bilionárias ofereçam serviços ao toque de um botão.

A ironia é evidente: os Correios fornecem, de graça, a principal infraestrutura informacional que sustenta seus próprios concorrentes. Uber, 99 e iFood faturam bilhões usando uma base territorial que não construíram, não financiaram e não mantêm, enquanto a estatal que a criou é acusada de dar prejuízo. O lucro é privado; o investimento foi público; o risco logístico recai sobre a estatal que o mercado usa, mas não remunera.

Quando a direita apresenta perdas contábeis de estatais como prova de incompetência, omite deliberadamente esse contexto. O que se vê como prejuízo é, na verdade, a consequência matemática de um mercado fatiado, de um território assimétrico e de uma infraestrutura pública capturada gratuitamente pelo setor privado. Não se trata, portanto, de discutir esquerda ou direita. Trata-se de entender que, quando se entrega o filé ao privado e se deixa o osso para o Estado, o resultado financeiro só pode ser esse.

A questão real não é se as estatais dão lucro ou prejuízo, e sim que país se quer construir. Um país onde o Estado financia a infraestrutura e o privado captura a renda, ou um país em que a lógica de universalização do serviço público seja reconhecida como parte essencial da civilização moderna.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.