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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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Quando o iPhone vira manifesto: o embate entre tarifas, transparência e poder

Quando um iPhone vira panfleto, é porque a política já invadiu até o bolso do consumidor

iPhones em loja da Apple em Nova York - 16/10/2024 (Foto: REUTERS/Kent J. Edwards)

Com mais de quatro décadas dedicadas à administração pública e ao setor financeiro — 18 anos no Banco do Nordeste, onde chefiei áreas estratégicas de comércio exterior e câmbio, e 21 anos no Senado Federal, além da atividade como professor universitário —, aprendi que as grandes mudanças econômicas nem sempre começam com leis ou decretos. Às vezes, começam com um gesto. Em 28 de abril de 2025, um gesto simbólico — ainda que não implementado — causou alvoroço no coração político dos Estados Unidos: a suposta intenção da Amazon de incluir, nos produtos vendidos, uma nota explicando o quanto das tarifas comerciais impactava o preço final de um iPhone, por exemplo.

A Casa Branca reagiu com virulência. A porta-voz Karoline Leavitt classificou a ideia como “ato político hostil”, sugerindo vínculos entre Jeff Bezos e o governo chinês, e acusou a empresa de parcialidade por não ter feito o mesmo durante o governo Biden. Bezos, que esteve presente na posse de Trump em janeiro ao lado de Elon Musk e Mark Zuckerberg, virou novamente alvo — mesmo após gestos de aproximação com o novo governo. A Amazon negou oficialmente que planejasse tal ação, mas o estrago simbólico estava feito. A guerra comercial ganhava uma nova trincheira: a da narrativa.

A tarifa do “Dia da Libertação”: retórica protecionista e impacto real

A decisão que acendeu o pavio foi a adoção, em 2 de abril de 2025, de uma tarifa adicional de 10% sobre todas as importações acima de US$ 800. Batizada politicamente de “tarifa do Dia da Libertação”, a medida impôs novas barreiras a bens de consumo, peças industriais e equipamentos, atingindo países aliados como o Brasil. As exceções foram mínimas, restritas ao Canadá e ao México, membros do acordo USMCA.

A China respondeu à altura, impondo tarifas de até 34% sobre produtos americanos e restringindo a exportação de terras raras — minerais essenciais para a indústria de eletrônicos e semicondutores. Os Estados Unidos, por sua vez, eliminaram a isenção para encomendas de baixo valor vindas da China, Hong Kong e Macau, o que impactou diretamente plataformas populares como Shein e Temu. Em alguns itens, as tarifas chegaram a 245%. Pequim respondeu com taxas de até 125%.

Trata-se da maior ofensiva tarifária desde a década de 1930. Mas, diferente do discurso de soberania econômica, o efeito real é um aumento expressivo nos preços, retração nas margens de lucro, risco de desemprego e instabilidade global nas cadeias de produção. O cenário deixa claro: em meio à guerra retórica, quem sangra é a economia real.

Demissões, reajustes e empresas sob pressão

A United Parcel Service (UPS), maior empresa de logística dos EUA e principal parceira da Amazon, anunciou a demissão de 20 mil funcionários. A justificativa da CEO Carol Tomé foi clara: queda nos volumes transportados da Amazon e necessidade de reestruturar a operação frente à nova realidade tarifária.

Outras empresas também reagem. A rede de restaurantes Chipotle Mexican Grill, presente em mais de 3 mil localidades nos EUA, reportou aumento nos custos operacionais. Carnes bovinas importadas da Austrália, embalagens do Vietnã e abacates da Colômbia e do Peru passaram a ter tarifas de 10%, o que elevou os custos da empresa. A construção de novos restaurantes também encareceu, com prateleiras e móveis vindos da China agora mais caros. O CFO Adam Rymer revisou para baixo as projeções de vendas, alertando investidores para “um ambiente macroeconômico desfavorável”.

No setor automotivo, a Tesla, embora mantenha boa parte da produção em solo americano, sofre na divisão de energia, dependente de baterias LFP importadas da China. A suspensão de pedidos chineses dos modelos Model S e Model X, como retaliação, é uma perda significativa. Elon Musk, conselheiro informal de Trump, defendeu tarifas mais baixas nos bastidores, mas não obteve êxito.

Setores inteiros sob efeito dominó: tecnologia, varejo, semicondutores

As consequências não se limitam a algumas empresas. Os efeitos se espalham por setores inteiros. A indústria automotiva enfrenta tarifas entre 10% e 25% sobre peças e componentes, afetando empresas como General Motors e Ford, com queda nas exportações e pressão sobre os lucros. O fundo DRIV, que reúne ações do setor de veículos elétricos e autônomos, refletiu essa instabilidade com grande volatilidade.

No setor tecnológico, o fim das isenções fiscais (regime de minimis) encareceu notebooks e smartphones. A Apple já avalia transferir parte da produção para o Vietnã e a Índia. A HP, outra gigante, também estuda relocalização. O fundo XLK, que representa o setor de tecnologia no mercado financeiro, apresentou desempenho inferior ao S&P 500 em abril.

No varejo, plataformas como Shein e Temu, voltadas ao público jovem e popular, perderam competitividade. O Walmart, maior rede varejista americana, começou a repassar os aumentos nos preços de roupas, brinquedos e eletrônicos. O fundo XRT, que acompanha o setor varejista, também oscilou negativamente.

Em semicondutores, o impacto das restrições chinesas às exportações de terras raras foi direto. Empresas como Nvidia e Intel viram os custos subirem e os cronogramas de produção atrasarem. O fundo SOXX, composto por ações do setor, registrou perdas ao longo de abril.

Outro calcanhar de Aquiles (tenhamos em conta que mesmo na mitologia Aquiles possui apenas dois calcanhares!) da atual política econômica se revela na produção agrícola norte-americana. Além do impacto das tarifas sobre fertilizantes, máquinas e sementes importadas, os produtores enfrentam escassez aguda de mão de obra. A aceleração da política de deportação de imigrantes indocumentados — muitos dos quais eram latino-americanos e asiáticos — atingiu em cheio o setor. Essas populações representavam parcela expressiva dos trabalhadores rurais, encarregados da colheita em plantações espalhadas por estados como Califórnia, Texas e Flórida. Com sua ausência, safras inteiras vêm sendo perdidas nos campos. Segundo o Departamento de Agricultura dos EUA, em 2024 houve um prejuízo estimado em US$ 3,1 bilhões por alimentos que apodreceram sem serem colhidos. Ao mesmo tempo, o trabalhador norte-americano de baixa renda resiste a assumir esses empregos, citando a dureza das jornadas e a baixa remuneração. Essa conjugação de tarifas e mão de obra escassa fragiliza o pilar agrícola do país, elevando preços e acentuando a insegurança alimentar em várias regiões.

Custos bilionários e pequenas empresas no fio da navalha

Gigantes industriais também se manifestam. A GE Vernova, braço de energia da General Electric, projeta um aumento de US$ 400 milhões nos custos operacionais em 2025. A Baker Hughes, especializada em serviços e equipamentos para o setor de petróleo e gás, estima perda de US$ 200 milhões no lucro anual, e suas ações caíram 6,4% após a divulgação desses dados.

As operadoras AT&T e Verizon — esta última, líder em telecomunicações e infraestrutura de rede — alertaram para o aumento nos preços de celulares, roteadores e planos residenciais. No setor médico, a Boston Scientific, fabricante de equipamentos cirúrgicos e cardíacos, e a Johnson & Johnson projetam gastos adicionais de até US$ 600 milhões em dispositivos médicos.

As pequenas empresas, no entanto, são as mais expostas. Sem acesso facilitado a crédito, com margens reduzidas e pouca capacidade de repassar aumentos ao consumidor, muitas enfrentam risco de falência. Representando quase metade da força de trabalho dos EUA, seu colapso poderia ter efeitos devastadores sobre a economia.

ETFs, investidores e a reconfiguração global

Diante desse cenário, investidores institucionais ajustaram suas estratégias. BlackRock e Vanguard, duas das maiores gestoras de ativos do mundo, aumentaram posições em setores menos expostos à guerra comercial — como saúde, software e utilities (serviços essenciais como energia e saneamento). Também aumentaram a exposição a ativos reais, como ouro e commodities agrícolas.

Esses ajustes aparecem nos ETFs (Exchange Traded Funds), fundos negociados em bolsa que replicam o desempenho de setores específicos da economia. Assim, os ETFs funcionam como termômetros do mercado: o DRIV (veículos autônomos), XLK (tecnologia), XRT (varejo) e SOXX (semicondutores) vêm refletindo a turbulência causada pelas tarifas.

No curto prazo, a continuidade da guerra tarifária deve manter essa volatilidade. Empresas precisarão reestruturar suas cadeias produtivas, diversificar fornecedores e investir em inovação logística. Mas nada disso acontece da noite para o dia — e, no meio tempo, os custos sobem e os consumidores pagam mais.

Um ambiente econômico sufocante, bem mais caro e menos cooperativo

As tarifas implementadas em abril de 2025 representam uma inflexão histórica. A política tarifária, usada de forma seletiva e ideológica, transforma-se em instrumento de guerra econômica. Longe de proteger a economia nacional, ela compromete o crescimento, agrava tensões internacionais e desorganiza cadeias produtivas complexas e interdependentes.

A experiência acumulada em décadas de atuação nos setores público e privado me permite reconhecer quando uma medida econômica extrapola sua função original. Estamos diante de uma delas. O impacto se alastra — das grandes corporações às pequenas lojas, das prateleiras dos supermercados às decisões dos fundos de investimento.

Na busca por protagonismo eleitoral e poder estratégico, os Estados Unidos, hoje, arriscam perder o que sempre foi sua maior força: a confiança do mundo em sua estabilidade econômica e previsibilidade. Quando um iPhone vira panfleto, é porque a política já invadiu até o bolso do consumidor.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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