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Joaquim Pinto de Andrade

Economista, PhD pela Universidade de Harvard. É professor emérito da Universidade de Brasília e pesquisador nas áreas de economia monetária e financeira e economia comportamental. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB.

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Quando o mercado é imoral

(Foto: Reuters)
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Mercado é todo processo de interação humana de compra e venda de mercadorias por meio de uma unidade monetária. O mercado, em sua concepção mais simples, é o espaço, seja ele físico ou não, onde compradores e vendedores estabelecem relações comerciais. Todo mercado pressupõe a existência de demanda e oferta por determinada mercadoria ou serviço, tangível ou não, que por serem escassos, têm um preço. 

Numa economia capitalista, as empresas e as organizações são, em sua maioria, orientadas para gerar mais lucros. Há limitações à participação nos mercados, dadas as restrições de renda e preferências, o que tornam muitos mercados excludentes. Em princípio, as trocas se encarregam de garantir a qualidade e equivalência entre os produtos. Neste sentido, o mercado é neutro. Numa economia monetária moderna, as trocas se dão de forma indireta, via a intervenção da moeda ou títulos. Entretanto, o mercado é amoral e pode ser imoral. 

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Mudanças nas restrições podem ocorrer por falcatruas, roubos etc. mas o mercado é neutro. Observem o que se passa com os direitos humanos, um valor que ninguém disputa. Imaginem alguém que rouba uma carga de caminhão e mata o motorista. Obedecidas as restrições, a carga será vendida no mercado, mas sem conhecimento deste da contravenção e muito menos do assassinato do motorista. Pensem numa situação ainda pior. Imaginem uma carga de carne sendo levada por um caminhão frigorífico, que foi assaltado na estrada, o motorista morto, e todos tomaram conhecimento do ocorrido, mas a carne está em falta na comunidade e as pessoas com deficiência alimentar. Será que os habitantes desta comunidade, se disporão a comprar a um preço bem abaixo do mercado mesmo sabendo a origem da carga? A resposta é, provavelmente, sim. Então o mercado é amoral. Não se trata de o preço ser justo ou não. O mercado é sempre justo. 

O que parece uma metáfora, mas que não é, se aplica para questões mais globais. Pensem nas consequências da guerra que assolou a Ucrânia. As fontes do petróleo e do gás natural podem secar pelo comportamento da Rússia. A busca pelo recurso escasso encontra um país fornecedor: Arábia Saudita. Não importa que lá não sejam respeitados os direitos humanos, não importa a origem do petróleo. O governo ditatorial da Arábia Saudita, não é apenas pouco democrático, mas manchado de sangue, de forma explícita e o mundo inteiro tem conhecimento. O príncipe Bin Salman foi acusado de perseguir vozes dissidentes e contrárias à monarquia Saudita. Em outubro de 2018, o jornalista e opositor Jamal Khashoggi foi morto em Istambul, enquanto adentrava a embaixada saudita. Homens ligados ao príncipe foram acusados do assassinato, embora Salman tivesse negado participação. Em novembro, um relatório da CIA, divulgado na imprensa americana, acusou Mohammad bin Salman de ter ordenado a morte de Khashoggi, o que causou indignação internacional e tensões diplomáticas. Mesmo assim, e sem nenhum pudor, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, vai visitar o rei assassino para negociar o petróleo que ameaça secar no ocidente pelo boicote da Rússia. Esse parece ser um exemplo clássico de falta de moral que permeia a economia de mercado não  do mercado que é neutro, por assim dizer, mas pelos que manipulam o mercado. Penso que isto é grave, e deve ser avaliado pelos agentes que buscam salientar os valores democráticos e de respeito aos direitos humanos que devem ser preservados pelos cidadãos. Um exemplo semelhante ocorreu com o  presidente Bolsonaro,  que convidou o príncipe saudita para uma visita oficial ao Brasil. O mais inusitado, o príncipe exigiu que lhe fosse concedida imunidade para não ser preso. 

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Fato análogo ocorreu na Venezuela. O governo americano que rapidamente havia reconhecido o auto-declarado presidente Juan Guaidó como legítimo presidente da Venezuela, em 23/1/2019, tentando pressionar o presidente totalitário, mas eleito, Nicholas Maduro a abandonar o poder, de repente estabelece relações diplomáticas amistosas com o temido ditador. O motivo principal foi, indubitavelmente, manter acesso ao petróleo, visto que na Venezuela estão as maiores reservas de petróleo do mundo. Novamente o mercado falava mais alto. 

O mercado, do ponto de vista da teoria econômica dominante, garante a alocação ótima dos fatores de produção e mercadorias, incluindo entre esses o trabalho. O trabalho é uma mercadoria ao ser vendido como força de trabalho, mas é considerado pelos economistas neoclássicos, como um fator de produção, enquanto prestador de serviços.

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Portanto, do ponto de vista da teoria hegemônica, o trabalhador é considerado uma relação técnica, um fator de produção. Neste sentido, a remuneração do trabalho corresponde à contribuição que este dá à produção. Quanto maior a produção marginal do trabalhador, maior o seu salário. 

Entretanto, esta visão é claramente insuficiente pois não leva em consideração que a relação de trabalho é uma relação social em que o comportamento do trabalhador é essencial. Reconhecendo isto os gerentes passaram a pagar um salário mais elevado do que o salário costumeiro de equilíbrio para manter a disciplina e o controle dos trabalhadores.

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Um salário mais elevado, aumentava o custo do desemprego e colocava os trabalhadores na linha, inibindo desobediências, furtos, manejo incorreto das máquinas e etc. O interessante é que esta teoria reconhece, claramente, que o trabalho é uma relação social e não apenas técnica. 

Qual a relação do salário com a produção segundo Karl Marx? Tome, como exemplo, os trabalhadores da construção civil que constroem mansões de luxo. Eles jamais perceberão um salário que os permitirá usufruir desse bem. Assim, segundo Marx, o trabalhador é desumanizado por esse processo, se transformando numa peça da engrenagem capitalista. 

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A visão marxista reconhece, desde o início, que o trabalho é uma relação social e, enquanto tal, apresenta conflitos de classe. Os trabalhadores não negociam com os gerentes ou os capitalistas, quem negocia são os seus sindicatos. Desta negociação é que os salários são acordados. Quanto mais fortes forem os sindicatos, maior o poder de barganha, melhor as condições de trabalho e maior o salário dos trabalhadores. 

Atualmente, as relações de produção estão sofrendo modificações significativas com sérias implicações para o desenvolvimento dos sindicatos. A desindustrialização crescente que desloca os trabalhadores para novas atividades no setor de serviços, bem como as experiências de home office, possibilitadas pelo desenvolvimento de comunicações on line  e reuniões on line, têm reduzido o poder  de negociação dos trabalhadores. Eles estão perdendo o chão da fábrica, por assim dizer. A implicação dessas mudanças é uma perda significativa do poder dos sindicatos. O resultado concreto é uma piora na renda dos trabalhadores. Ao contrário do pensamento neoclássico dominante, os salários não refletem a produtividade dos trabalhadores, mas, sim, o poder dos sindicatos.

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A piora dos salários e da distribuição de renda estão associados à piora da desigualdade.    

A diferença entre o que o trabalhador produz e o salário é a renda que é apropriada pelos empresários, pelos capitalistas. A força dos sindicatos explica boa parte das diferenças de renda apropriadas pelos trabalhadores e pelos capitalistas. 

Ronald Dworkin, filósofo e amigo, perguntou uma vez ao Solow, professor do MIT e prêmio Nobel, o que ele pensava da desigualdade. Ele respondeu que não era estético (un-aesthetic). E Dworkin continuou ‘Você quer dizer que é imoral?’ E nervoso Solow respondeu que sim ele achava que é imoral.

O que se observa hoje é uma obsessão por atender antes ao mercado e aos interesses políticos do que às necessidades do povo, especialmente dos mais pobres, negando a ética e desviando-se do caminho da justiça. São frequentes golpes de Estado e implantação de ditaduras, instrumentalizadas por conveniências econômicas de mercado e interesses políticos. As intervenções do Estado para minorar problemas de má distribuição são, propositalmente, associadas com discursos moralistas, anticorrupção, manipulando a opinião pública de forma a responsabilizar o Estado e eximindo as elites de culpa sob o discurso de imparcialidade e eficiência dos mercados .

Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.

O mercado está na base do pensamento liberal e permite sugerir que as trocas se dão entre iguais, mas, como se percebe, ele esconde as desigualdades que permeiam as transações.

Mais complexo é o mercado de trabalho onde patrões controlam os trabalhadores e  a renda gerada pela força de trabalho é distribuída de acordo com o poder de negociação. O embate se resolve a depender do poder relativo dos sindicatos patronais e dos empregados. No momento atual, com sindicatos de trabalhadores enfraquecidos, o embate tem cartas marcadas. Fica claro que a troca não se dá entre equivalentes, expressa uma relação social desigual. 

 

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