Quando o ódio vem da esquerda
Hoje, qualquer pessoa pode se autoproclamar militante, ativista ou referência política, basta acumular seguidores
Não deixa de ser curioso ver tanta comoção entre pessoas da esquerda diante de atitudes racistas ou elitistas vindas… da própria esquerda. Parece que nós temos uma proteção invisível que não nos permite ou até nos proíbe de cometer aquilo que condenamos do outro “lado”. Mas esse espanto parece servir apenas para limpar a própria consciência, para reforçar uma ilusão de que “do nosso lado” esse tipo de coisa não acontece. Mas acontece, e muito.
O caso da influencer “Esquerdogata” é o exemplo mais recente disso até que aconteça algo que sobrepasse o ocorrido. Ela foi entregue a arena das redes sociais, cancelada por uns e defendida por outros, como ocorre no “tribunal” virtual em situações polêmicas. O que não acontece nesse caso foi um debate profundo de que o racismo não é monopólio de um “lado”. Ele também atravessa o discurso progressista, de forma mais disfarçada, mais polida, mas não menos real e dolorosa.
Falo como alguém de esquerda, nordestina, que já sentiu na pele esse tipo de contradição. A esquerda brasileira, principalmente a das grandes capitais, tem enorme dificuldade em reconhecer os seus próprios privilégios. Quando um militante, um acadêmico ou um influenciador se diz “progressista”, mas não reconhece o preconceito que pratica, a hipocrisia fica escancarada. O espanto seletivo com o racismo “do nosso lado” só mostra o quanto essa esquerda ainda vive numa bolha.
Mas vamos ser honestos, para nós nordestinos (falo em causa própria, mas isso acontece com todas as regiões do país) que somos lembrados como parte da esquerda apenas a cada quatro anos, quando nossos votos ajudam a impedir que o país afunde de vez, no resto do tempo, continuamos alvo de piadas, de paternalismo e de desprezo inclusive dentro dos espaços que se dizem mais “conscientes”. Nas universidades, nas redes sociais e inclusive naqueles ambientes onde nós deveríamos nos sentir acolhidos. Quem acompanha as lives de influenciadores ou canais progressistas sabe: os ataques mais sutis, os comentários mais mesquinhos partem muitas vezes de militantes de esquerda e não de bolsonaristas.
Essa é uma ferida antiga. A esquerda brasileira sempre teve um pé na elite. Fala de povo, de trabalhador, de luta de classes, mas não consegue falar com e para o povo. Usa jargões acadêmicos, cita teóricos europeus (e alguns brasileiros quando convém), constrói um discurso que soa bonito, mas que o trabalhador comum não entende e pior nem se sente representado. Pois é, o policial atacado pela tal influenciadora era um trabalhador e por mais que existam ressalvas em relação ao funcionamento da polícia sob a gestão Tarcísio, ele estava cumprindo seu dever. É justamente aí que aparece a contradição: uma parte da esquerda que diz defender o trabalhador, mas trata com desprezo o trabalhador que não cabe no seu recorte “ideal” (seja o policial, o evangélico, o nordestino). Essa arrogância intelectual não sabe ouvir. E quando a militância se transfere para as redes sociais, a coisa piora: vira um mercado de vaidades.
Hoje, qualquer pessoa pode se autoproclamar militante, ativista ou referência política, basta acumular seguidores. E, com isso, o debate político virou um desfile de egos. Discutem-se mais identidades e rótulos do que ideias. Em vez de construir alianças, criam-se ainda mais bolhas morais onde todo mundo disputa quem é “mais de esquerda” do que o outro. Essa guerra de pureza ideológica não muda o país, só o fragmenta ainda mais. E o resultado é previsível: quando uma influenciadora “de esquerda” comete uma série de erros graves, como injuria racial, elitismo, preconceito linguístico. A antiga carteirada do “você sabe com quem está falando?” foi atualizada para seguir a era das redes sociais e virou o “você sabe quantos seguidores eu tenho?”
No entanto, o ódio não desaparece automaticamente porque alguém se diz “de esquerda”. O elitismo não evapora porque alguém cita Paulo Freire. O preconceito não muda de natureza quando vem acompanhado de discurso humanista. Se a esquerda quiser de fato ser transformadora e libertadora, precisa olhar para dentro, para o seu próprio racismo, machismo e xenofobia velados, para o seu próprio elitismo e suas próprias estruturas de exclusão. Sim, eu sei também que não é fácil admitir que temos esses elementos que tanto criticamos junto com a gente. Mas é preciso.
Não podemos mais fingir que o problema está só “do outro lado”, é exatamente isso que nos impede de qualquer mudança real. O Brasil precisa de uma esquerda que tenha coragem de reconhecer os seus próprios erros, enquanto isso não acontecer, seguiremos vendo a mesma história se repetir: discursos inflamados sobre igualdade, empatia e justiça vindos de bocas que ainda não aprenderam a ouvir o sotaque nordestino sem fazer chacota. E, mais cedo ou mais tarde, aí sim, essa “bolha” explode. Afinal, ninguém consegue mentir para si mesmo por tanto tempo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
