Quando o yuan barato fica caro para o mundo
A reação no Ocidente tem sido ambígua, oscilando entre o protecionismo defensivo e a impotência estrutural.
A nova distorção cambial chinesa e seus efeitos globais
A fotografia da economia mundial no fim de 2025 tem um protagonista incontornável: a taxa de câmbio chinesa. Com o renminbi — nome oficial da moeda da República Popular da China —, mantido artificialmente fraco em relação ao dólar e ao euro, a China ultrapassou pela primeira vez a marca de US$ 1 trilhão de superávit comercial em bens em apenas onze meses, um salto que recoloca no debate internacional velhas questões sobre competitividade, equilíbrio macroeconômico e governança global.
O fenômeno não nasceu de um único fator. Ele resulta de uma combinação complexa: desaceleração doméstica, consumidores retraídos, supercapacidade industrial acumulada ao longo de uma década de investimentos financiados por dívida e, sobretudo, uma política cambial que mantém o yuan em níveis muito inferiores aos que a paridade de poder de compra indicaria. Enquanto preços industriais na China permaneceram estáveis ou em queda, Estados Unidos e Europa conviveram com aumentos superiores a 25% no período recente. A diferença estrutural de inflação entre as regiões ampliou ainda mais a subvalorização cambial.
O caso do yuan é um exemplo clássico onde uma série de desvalorizações deliberadas resultaram em uma condição de subvalorização contínua no mercado global.
O efeito dessa dinâmica aparece em comparações triviais do cotidiano — carros, celulares, hotéis e restaurantes — e, ao mesmo tempo, nos dados mais agregados do comércio global.
O caso da BYD
Um BYD Seal custa US$ 15.500 na China e até US$ 50.000 no Ocidente; um smartphone chinês premium custa 30% a 40% menos em Xangai do que em Nova York; um Big Mac sai pela metade do preço americano. Esses contrastes, que antes podiam ser atribuídos a diferenças de renda, agora expressam sobretudo a distorção cambial. A moeda chinesa opera hoje como um multiplicador de competitividade: onde há supercapacidade e produtividade elevada, o câmbio fraco transforma cada unidade produzida em uma arma geoeconômica de grande alcance.
Nenhum setor evidencia isso de forma tão dramática quanto o de veículos elétricos. A BYD, que há pouco mais de cinco anos era tratada como uma rival distante da Tesla, deve encerrar 2025 com quase 4 milhões de veículos vendidos. A empresa consolidou um modelo integrado — do lítio aos softwares de direção — que lhe permite operar com custos muito inferiores aos dos concorrentes. A isso se soma o câmbio desvalorizado, que reduz o custo em dólares de cada componente e torna possível uma política de preços quase irresistível para qualquer mercado.
A BYD hoje lidera uma onda exportadora que engloba também montadoras chinesas independentes como Chery, SAIC e Geely, ampliando a presença chinesa na Europa, América Latina, Oriente Médio e Sudeste Asiático. Não se trata apenas de competitividade tecnológica, mas de um choque sistêmico: a capacidade instalada chinesa para produzir automóveis já se aproxima de 45 milhões de unidades por ano, embora sua demanda interna dificilmente supere 25 milhões. O excedente estrutural é empurrado para o exterior, num volume que nenhuma outra economia consegue acompanhar.
O segmento de painéis solares passou por fenômeno semelhante. A China detém cerca de 80% da capacidade global e, em 2025, produziu módulos suficientes para equipar sozinha toda a União Europeia duas vezes. As baterias de lítio, outro insumo crítico para a transição energética, também se tornaram mais baratas por causa do câmbio: os preços globais caíram quase 50% em dólares desde 2022, graças à combinação de avanços tecnológicos e excesso de oferta chinesa. Em todos esses casos, a desvalorização do renminbi age como força multiplicadora: reduz custos, acelera exportações e aprofunda o desequilíbrio competitivo.
A desvalorização do yuan e a economia do Ocidente
A reação no Ocidente tem sido ambígua, oscilando entre o protecionismo defensivo e a impotência estrutural. Nos Estados Unidos, as tarifas impostas a partir de 2018 não foram suficientes para conter a onda chinesa, embora tenham reduzido parte das importações diretas. O déficit bilateral persiste, e a pressão política sobre o Tesouro e a Casa Branca aumenta. A possibilidade de elevar tarifas sobre veículos elétricos chineses para 60% ou até 100% reapareceu em discussões recentes no Congresso, num ambiente marcado pelo receio de que a BYD e outras marcas superem a produção combinada americana e europeia até o fim da década, caso o câmbio permaneça favorável à China. A administração americana sabe que enfrenta um dilema: responder com força pode elevar custos para seus próprios consumidores; não responder pode significar a perda definitiva de setores industriais estratégicos.
A Europa vive dilema ainda mais agudo. O continente se viu pressionado simultaneamente pela estratégia industrial dos Estados Unidos — materializada em subsídios maciços para energia limpa — e pelo avanço chinês em setores que outrora foram pilares industriais europeus. A Comissão Europeia concluiu uma investigação anti-subsídio sobre veículos elétricos chineses e aplicou tarifas entre 17% e 37%, mesmo assim as exportações chinesas de automóveis multiplicaram-se por dezesseis em cinco anos. O impacto é direto no coração industrial da Europa: fábricas alemãs operam com níveis de utilização historicamente baixos, enquanto França e Itália exigem medidas mais duras. A Alemanha, tradicionalmente avessa ao protecionismo, encontra-se dividida entre a necessidade de defender o mercado interno e o temor de retaliações chinesas que atingiriam empresas como BMW, Mercedes e Volkswagen. Há, na Europa, uma sensação de mudança de época: não se trata mais de “concorrência saudável”, mas de uma transição acelerada em que a moeda desvalorizada da China funciona como avalanche estrutural sobre setores inteiros.
Impactos da desvalorização do yuan no Sul Global
No Sul Global, os efeitos são mais ambivalentes. Para países de renda média, como os latino-americanos, a presença chinesa traz benefícios imediatos em bens de capital e tecnologias de energia limpa, que se tornam acessíveis justamente por causa do câmbio. Mas esses ganhos de curto prazo convivem com riscos profundos de desindustrialização: nenhuma fábrica emergente consegue competir com painéis solares, carros elétricos e eletroeletrônicos produzidos em escala gigantesca e vendidos com preços artificialmente deprimidos em dólar. A dependência do crédito chinês, que financia parte dessas exportações, reforça ainda mais o vínculo assimétrico. O resultado é um paradoxo: o yuan fraco melhora o acesso do Sul Global a bens essenciais, mas dificulta a construção de cadeias produtivas próprias, criando um padrão de desenvolvimento que combina modernização tecnológica com fragilidade industrial.
O Brasil, dentro desse quadro, vive tensões que se sobrepõem. De um lado, a demanda chinesa por commodities — soja, minério, petróleo — sustenta parte da balança comercial brasileira. De outro, a competição chinesa ameaça setores em que o país tenta avançar em direção a uma economia de baixo carbono. A instalação da BYD em Camaçari é exemplo dessa ambivalência: representa oportunidade concreta de reindustrialização e, ao mesmo tempo, risco real de captura tecnológica. Se o país se limitar a montar carros elétricos com componentes importados, sem política industrial que estimule inovação local, conteúdo nacional e redes de fornecedores, pode repetir padrões históricos de dependência. A desvalorização persistente do yuan aprofunda esse perigo, pois torna sempre mais vantajoso importar peças chinesas — baterias, motores elétricos, semicondutores — do que desenvolvê-las internamente.
Esse dilema se agrava porque o Brasil tem pouco espaço para conduzir sua própria política cambial em um mundo em que China, Estados Unidos e Europa travam disputas simultâneas. Um real muito apreciado prejudica a indústria frente à China; um real desvalorizado pressiona a inflação e dificulta a gestão do Banco Central. A política industrial brasileira precisa navegar nesse estreito corredor, articulando parcerias estratégicas com a China sem renunciar ao objetivo essencial de construir capacidades tecnológicas próprias. A diplomacia econômica também ganha peso: fóruns como o G20 e o BRICS ampliado tornam-se canais para discutir regras mais equilibradas de comércio, transparência cambial e responsabilidade compartilhada sobre grandes superávits e déficits.
Yuan subvalorizado é sustentável?
A pergunta central é se o atual arranjo global é sustentável. Uma moeda sistematicamente subvalorizada numa economia do tamanho da China produz tensões cumulativas. Ela alimenta guerras tarifárias, desloca cadeias produtivas inteiras e introduz uma deflação exportada que, embora reduza preços no curto prazo, aumentará desemprego e instabilidade política em várias regiões. Não é coincidência que a extrema direita avance na Europa e nos Estados Unidos com discursos centrados na perda de empregos industriais e no medo de uma “invasão” econômica chinesa. Ao mesmo tempo, mecanismos multilaterais como a OMC e o FMI permanecem insuficientes para lidar com superávits persistentes dessa magnitude; foram concebidos para outra realidade e não para administrar desequilíbrios de um país que é, simultaneamente, segunda maior economia do planeta, principal potência manufatureira e economia ainda oficialmente “em desenvolvimento”.
Uma valorização ordenada do renminbi poderia reduzir tensões e aproximar os preços chineses de sua equivalência internacional. Mas isso implicaria impactos internos delicados para Pequim num momento de fragilidade do setor imobiliário, dívidas locais elevadas e retração do consumo. Paradoxalmente, quanto mais a China precisa sustentar sua economia doméstica, mais tende a se apoiar em exportações baratas; e quanto mais se apoia nelas, mais tensiona o sistema global.
O yuan barato pode parecer, num primeiro olhar, um trunfo interno para a China, mas é cada vez mais caro para a estabilidade econômica e política do mundo. O desafio global — e do Brasil em particular — é compreender que a disputa cambial é também disputa por modelos de desenvolvimento. Se o século XXI será marcado por transição energética, inteligência artificial e reindustrialização verde, o câmbio não pode ser tratado como detalhe técnico. Ele é parte da arquitetura do poder. E, como tal, precisa voltar ao centro das discussões internacionais.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

