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Cláudio Roberto Cantori

Formado em Letras, estudioso das poesias musicadas da literatura brasileira desde 1982, ano da morte de Elis Regina, e diretamente influenciado pelo incidente para os estudos posteriores

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“Que tal um Samba?” (A poética da Redenção?)

Eis que Chico Buarque novamente nos surpreende com mais um daqueles presentes de tirar o fôlego

“Que tal um Samba?” (A poética da Redenção?)

O poder ilimitado de Chico Buarque de Holanda em nos surpreender.

É senso comum entre os estudiosos da cultura, acadêmicos da literatura, amantes da boa música e sobretudo dos defensores do progressismo e da democracia que Chico Buarque é, no mínimo, um gênio!

Pela sua maneira discreta e elegante de lidar com seu tamanho artístico e intelectual, muitas vezes Chico Buarque não rebate as críticas de que parou de produzir, como se quantidade fosse sinal de qualidade.

Talvez por desconhecimento do que ele fez pela literatura com seus livros e peças de teatro, tais como “Fazenda Modelo”, “Gota D´Água (releitura da Tragédia Grega “Medeia” – de Eurípedes), “A Ópera do Malandro”, “Estorvo”, e mais recentemente “Budapeste” (que lhe rendeu o prêmio Jabuti de Literatura), e “Anos de Chumbo”, alguns críticos cometam tais equívocos. 

O fato é que, enquanto vem sendo cobrado por alguns críticos que fazem de maneira sórdida o jogo da contracultura no afã de minimizar nossos grandes talentos, Chico Buarque continua sua trajetória rica e vasta no que tange à capacidade de produzir conteúdos que tendem as nos surpreender a ponto de não conseguirmos vislumbrar até onde sua mente pode chegar.

Basta observarmos que ao receber a maior honraria possível dentro do universo restrito à Língua Portuguesa, qual seja, o prêmio Luis de Camões de Literatura, Chico Buarque é arremessado para um patamar superior ao A.B.L. (Academia Brasileira de Letras), tornando-se assim muito mais do que um imortal. O tempo se encarregará de mostrar.

Por fim, enquanto passamos os dias nos deleitando com sua obra tão rica e farta, eis que Chico Buarque novamente nos surpreende com mais um daqueles presentes de tirar o fôlego.

Trata-se da poesia musicada “Que tal um Samba”.

Poder-se-á abordar-se esse texto sob vários eixos e ainda assim, possivelmente, no futuro novas percepções e leituras darão ainda mais brilho a essa nova obra prima de Chico Buarque.

Evidentemente os focos principais que Chico evidencia são a força e a beleza da influência africana sobre nossa sociedade e a forma escravagista com que a elite branca do Brasil ainda age.

O recado que Chico Buarque é para o mundo.

O texto “Que tal um Samba” é um alerta e um recado que transcende às novas fronteiras.

Coincidentemente, toda vez que o Brasil se depara com ondas fascistas de extrema direita, tais ondas sempre vêm acompanhadas das forças armadas e das polícias militares que invariavelmente cumprem o papel de reprimir as comunidades pobres e carentes onde a predominância de afro descentes é visível e notória.

“Que tal um Samba” é carregado de intertextualidades e figuras de Linguagem com uma precisão e um estilo típicos da grandeza de seu autor. Por isso a necessidade de degustá-lo sob várias óticas, ainda que essas, em algum momento, se entrelaçam e se misturem.

É importante destacar que os anos “22” dos últimos séculos trazem efemérides centenárias com as quais o texto de Chico se “beija”, quais sejam, o bicentenário da independência do Brasil -1822 e o centenário da semana de arte moderna de 1922.

Sendo assim, que tal olharmos eixo a eixo para depois, quem sabe, tentarmos juntá-los.

“Que tal um Samba”

Um samba!

Que tal um samba?

Puxar um samba, que tal? Para espantar o tempo feio?

Para remediar o estrago que tal um trago?

Um desafogo, um devaneio!

Um samba pra alegrar o dia, pra zerar o jogo!

Coração pegando fogo e cabeça fria!

Um samba com categoria, com calma!

Cair no mar, lavar a alma, tomar um banho de sal grosso.

 Que tal sair do fundo do poço?

Andar de boa.

Ver um batuque lá no cais do Valongo!

Dançar o jongo lá na Pedra do Sal e entrar na roda da Gamboa!

Fazer um gol de bicicleta, dar de goleada!

Deitar na cama da amada e despertar poeta!

Achar a rima que completa o estribilho!

Fazer um filho, que tal? Pra ver crescer!

 Criar um filho num bom lugar, numa cidade legal!

Um filho com a pele escura, com formosura, bem brasileiro!

 que tal não com dinheiro, mas a cultura?

Que tal uma beleza pura no fim da borrasca?

Já depois de criar casca e perder a ternura!

Depois de muita bola fora da meta de novo com a coluna ereta!

Que tal juntar os cacos e ir à luta?

Manter o rumo e a cadência!

Desconjurar a ignorância!

Que tal desmantelar a força bruta?

Então, que tal puxar um samba?

Puxar um samba legal!

Puxar um samba porreta!

Depois de tanta mutreta!

Depois de tanta cascata!

Depois de tanta derrota!

Depois de tanta demência!

E uma dor filha da puta!

Que tal puxar um samba?

Que tal um samba?

Um samba!


Eixo 1 – (Exaltação da Cultura Africana)

Esse talvez seja o eixo mais delicado dessa obra, pois permite uma ampla exploração do tema não apenas pelo aspecto seu literário, bem como pelo seu aspecto histórico, abrindo assim um caminho confortável para que o lugar de fala sobre o assunto possa ser explorado de maneira ampla por quem é de direito.

Chico Buarque desenvolve um trabalho brilhante ao nos induzir a reflexões históricas quando partes do seu texto se voltam à cultura trazida para o Brasil através da chegada dos africanos.

Apesar do peso de uma escravização oriunda da maldade dos brancos europeus (que ainda hoje carregam em suas culturas o racismo estrutural), a cultura africana nos enriquece com sua culinária, sua religião, sua arte e tudo de belo que existe por trás da passagem histórica mais nefasta que esse país pode protagonizar. 

A maior representação cultural de influência africana que o Brasil produziu foi, sem dúvidas, o Samba. Não à toa, o texto começa e termina com a expressão “Um Samba”, entretanto essa abordagem será feita no decorrer das próximas linhas.

Além do Samba como maior elemento cultural a ser explorado, Chico Buarque usa expressões de cultura africana tais como:

 “tomar um banho de sal grosso” 

“ver um batuque lá no Caís do Valongo”

 “dançar o jongo lá na pedra do sal”

 “entrar na roda da Gamboa”

 “um filho com a pele escura, bem brasileiro”

 “fazer um gol de bicicleta”

“que tal uma beleza pura” (alusão ao texto beleza pura de Caetano Veloso com mais detalhes no eixo das intertextualidades).

Façamos uma leitura “frase a frase”:

A origem do “Banho de Sal Grosso” vem da tradição das religiões de matriz africana por meio do Candomblé e da Umbanda, também conhecida como banho de descarrego. Trata-se de um ritual de purificação feito para limpar energias pesadas.

Na sequência Chico Buarque cita “Batuque no Cais do Valongo”, e sob a ótica cultural, o batuque também chega ao Brasil junto com os africanos. Quanto ao “Cais do Valongo”, trata-se do local por onde mais se exerceu o tráfico de escravos africanos no mundo. 

Em 3 séculos o Brasil traficou quatro milhões cidadãos africanos, tornando-os escravos, sendo que um milhão deles, ou seja, vinte e cinco por cento, entraram pelo Cais do Valongo, em apenas quatro décadas, tornando o local uma prova material de nossa origem escravocrata que se arrasta até os dias de hoje.

O Cais do Valongo situado na região portuária do Rio de Janeiro recebeu o título de patrimônio histórico da humanidade em 09/07/2017 por ser o único vestígio material da chegada dos africanos nas Américas.

Chico Buarque cita a frase “dançar o Jongo lá na pedra do sal”,  assim sendo, vale lembrar que o Jongo, também conhecido como “Caxambu ou Corimá”, é uma dança brasileira de origem africana que, por sua vez, é praticada ao som de tambores, sendo essa uma dança essencialmente rural, mas que influiu significativamente na criação do samba carioca, bem como na cultura popular brasileira como um todo.

É importante percebermos que a “Pedra do sal” é um monumento histórico e religioso localizado no bairro da Saúde na cidade do Rio de Janeiro onde se encontra a comunidade “Remanescentes do Quilombo da Pedra do sal” tombada em 20/11/1984 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural.

E tem mais, “entrar na roda da Gamboa” para quem é do samba, é sem dúvidas, uma experiência única e inesquecível. Essa roda por sua vez fica localizada na já citada Pedra do Sal.

Diante deste banho de cultura que Chico Buarque oferece, vem um toque elegante e poético nessa homenagem à influência africana com a citação ao texto “Beleza Pura de Caetano Veloso”.

E você deve estar se perguntando:

 O que a expressão “marcar um gol de bicicleta” tem a ver com a cultura africana?

Tem tudo a ver se lembrarmos de que o inventor de bicicleta foi um afrodescendente chamado “Leônidas da Silva”, ainda num tempo em que os negros sofriam preconceitos e rejeição para praticar o futebol.

Diante de tantos detalhes históricos ligados à cultura africana, fica a pergunta: Aonde Chico Buarque quer chegar?

Sigamos então para o próximo eixo:


Eixo 2 – (Crítica ao fascismo e à interferência militar)

É notório e de conhecimento de todos que o Brasil está sob golpe e tomado por um grupo de extremistas de direita extremamente corrupto e ganancioso, comandado por políticos, empresários, setores da mídia corporativa, militares, falsos profetas e simpatizantes de alguns segmentos sociais, sendo que a predominância na adesão a esse fascismo é predominante entre homens brancos da chamada meia idade.

Vale lembrar que Chico Buarque, entre tantos outros artistas, combateu o regime de ditadura militar de 1964, imposto mediante golpe. A história nos mostra que de tempos em tempos grupos militares intervém sempre a favor dessa elite branca que, ao que tudo indica, os suborna e os torna comparsas nos crimes que advêm desses mesmos golpes.

 Durante todo o tempo em que a ditadura de 1964 se manteve, ao longo de quase duas décadas e meia, foi vasta a sua produção musical voltada para o combate a essa ditadura, tendo como grande ferramenta, na luta contra os corruptos de fardas daquele período, as suas poesias musicadas de cunho político, muitas delas tendo passado despercebidas pela censura, enquanto que,  outras foram rapidamente censuradas e proibidas como por exemplo o texto “ Tanto Mar” (homenagem a Revolução dos Cravos em Portugal - 1974), escrita e censurada em 1975 e reescrita apenas em 1979. Entretanto, houve textos que driblaram a censura e, carregados de mensagens nas entrelinhas, expuseram toda a sujeira da ditadura militar no Brasil nos anos em que sucedeu entre 1964 e 1988, tais como “Acorda Amor”, “Apesar de Você”, “Geni e o Zepelim”, Cálice”, “Meu caro Amigo” entre outros.

No texto “Que tal um Samba” o que não faltam são elementos linguísticos que sugerem os tempos difíceis que o país atravessa.

 “Puxar um Samba! Que tal? Para espantar um tempo feito”. 

 “Para remediar o estrago que tal um trago?”. 

“Sair do fundo do poço”.

 “Juntar os cacos e ir à luta”.

 “Escorraçar a ignorância”!

 “Desmantelar a força bruta!”.

 “Depois de tanta mentira”.

 “Depois de tanta cascata”.

 “Depois de tanta derrota”.

 “Depois de tanta demência”!

 “E uma dor filha da puta”.

Toda essa crítica em suas linhas traz uma orientação, um norte, um caminho a ser seguido. Chico sugere em seu texto que devemos manter o “coração pegando fogo e cabeça fria”.

Não podemos entrar na onda dos fascistas, pois eles estão perdendo o jogo. Por isso ele diz: 

 “Um samba com categoria, com calma”, manter o rumo e a cadencia”.

Chico Buarque sugere que estamos no caminho certo e que nesse ritmo podemos até “fazer um gol de bicicleta” (eleger Lula), “dar de goleada” (vencer, quem sabe, no primeiro turno).

Desde que mantenhamos “o rumo e a cadência”.

Trata-se, sem dúvidas, de uma grande obra, podendo ser considerada uma “Poética da Redenção” e um aviso de que talvez seja o momento de definitivamente tirar a Senzala das garras da Casa Grande, pois esse é o grande temor dos fascistas.

O que os move é o medo...e Chico Buarque sabe disso.

Sendo assim, o poeta sugere que sigamos em frente com as nossas armas. Não podemos usar as mesmas técnicas dos fascistas. O que nos fará “ganhar o jogo”, serão os nossos métodos.

“Coração pegando fogo e cabeça fria”.

 “Um samba com categoria, com calma”. 

“Manter o rumo e a cadência”.

Aos poucos vamos percebendo que Chico Buarque dá à palavra “Samba” o resumo de que devemos enfrentar o fascismo com todo gigantismo de nossa cultura e do nosso povo. Juntos somos a grande maioria.

“De novo com a coluna reta”.

“Puxar um samba” uníssimos em nossos desejos de libertação e ruptura!


Eixo 3 – (Efemérides Centenárias e a importância do momento histórico)

Independência do Brasil – 07/11/1822

Semana da Arte Moderna – 13 à 17/02/1922

Há uma percepção muito clara de que 2022 é o ano mais importante da História Política, Social e Cultural do Brasil.

Coincidência ou não, os anos “22” passaram a ter significados de libertação e mudança de rumo Social e Cultural em nossa sociedade, haja vista os últimos duzentos anos de nossa História.

Não à toa, Chico Buarque coloca de maneira emblemática a poesia musicada, “Que tal um samba” estrategicamente no ano de 2022 não apenas para fazer alusão à nossa iminente necessidade de nos libertarmos de maneira definitiva, tanto nacionalmente, como também internacionalmente, numa alusão explícita à “Independência do Brasil”, 1822, bem como usa elementos do movimento literário “Modernismo”, do qual Chico Buarque recebe grande influência tanto na música quanto na literatura, para propor nos dias atuais  uma ruptura cultural típica dos modernistas. Nas alusões às duas efemérides centenárias colocadas de maneira implícita fica uma dica preciosa por parte do poeta: 

Se quisermos mudar esse modelo oligarca vigente desde sempre teremos que provocar uma ruptura cultural e mobilizar nosso povo em torno da nossa origem para quem sabe, a partir dessa ruptura, nos libertarmos definitivamente.

“Um samba para alegrar o dia e zerar jogo”. 

“Zerar o jogo”, começar do zero, escrever uma nova história a partir da memória dos erros cometidos não apenas atualmente, bem como ao longo de toda nossa história. 

“Para remediar o estrago, que tal um trago?”.

“Que tal sair do fundo do poço?”.

Todo momento em que Chico Buarque cita, ora de maneira conotativa, ora de maneira denotativa, todos os desmandos e descasos da política atrasada e escravagista do Brasil, o faz com frases e palavras fortes e contundentes para sinalizar a real necessidade de mudança (ruptura).

Ao mesmo tempo, sempre que propõe uma sugestão para mudança suas palavras passam a ter suavidade e leveza, aveludando o texto e mostrando a direção para um porvir possível e atraente.

“Deitar-se na cama da amada e despertar poeta”.

“Achar a rima que completa o estribilho”.

“Fazer um filho, que tal? Para ver crescer”.

“Criar um filho num bom lugar”.

Até aqui todas as sugestões apontam para independência e necessidade de ruptura cultura, mas ainda tem mais. Chico sugere a beleza da pele africana, da pele escura, da formosura que é a beleza oriunda dos povos africanos e a influência benéfica dessa mistura étnica que forma a sociedade brasileira.

“Um filho com a pele escura!”.

“Com formosura”.

“Bem brasileiro”.

“Que tal uma beleza pura no fim da borrasca “.

Posteriormente completa a sugestão numa linda homenagem à Caetano Veloso (tema do eixo a seguir), não apenas exaltando a riqueza do texto “Beleza pura, bem como, oferecendo para as comunidades lusófonas, toda a genialidade da obra de Caetano.

Não há uma vírgula no texto “Que tal um Samba?” que passe despercebida. Tudo se encaixa. Tudo se mistura e se junta num texto para além de progressista e democrática. Trata-se de um texto humanista, atemporal e absolutamente modernista em seus versos livres.


Eixo 4 – (Intertextualidades e figuras de linguagem)

Esse talvez seja o eixo mais complexo a ser abordado no texto de Chico Buarque. Lidar com intertextualidades e elementos da teoria literária, tais como, figuras de estilo e figuras de linguagem, requer uma atenção especial, não apenas no que tange à obra do poeta/escritor, bem como também requer um conhecimento histórico para que, sobretudo as equivalências textuais possam ser devidamente reconhecidas em tais comparações.

A primeira das intertextualidades é com o texto do próprio Chico Buarque de nome “Meu caro amigo” de 1976.

Em 1976 vivíamos o pior momento da ditadura militar no Brasil.

 Sangrenta! Corrupta! Violenta!

Era o auge da repressão!

Tanto quanto em “Que tal um Samba?”, em 1976 Chico Buarque escreveu o texto “Meu caro amigo” para ser ouvido e compreendido além das nossas fronteiras.

Chico Buarque precisava mandar um recado simples e objetivo, no qual dizia:

“Aqui na terra tão jogando FUTEBOL!

Tem muito SAMBA, muito CHORO e ROCK IN ROLL!

Uns dias CHOVE noutros dias BATE SOL!

Mas o que eu quero é te dizer:

A COISA AQUI TÁ PRETA!”

Antes de abordarmos comparativamente as metáforas de ambos os textos é necessário que se diga algo sobre esse texto.

Trata-se de uma “carta musicada” que além de avisar ao mundo dos desmandos e da violência com que os corruptos de fardas daquele momento nefasto de nossa história lidavam com o povo brasileiro, Chico Buarque dizia para os exilados que aquele não era o momento de voltar.

Para explicar que o povo estava alienado ele usou a expressão:

“Aqui na terra tão jogando futebol”

Lembremos que o futebol é, e sempre foi, o ópio do povo.

Para dizer que a influência estadunidense estava nos oprimindo ele diz:

“Tem muito SAMBA (Brasil), muito CHORO (não era o choro musical e sim o choro do povo) e ROCK IN ROLL (EUA)”.

Chico sugere que entre Brasil e EUA havia muito choro, quem sabe até estivesse se referindo à toda América Latina.

Na sequência, Chico Buarque faz uma metáfora usando o clima como figura a ser explorada.

“Uns dias CHOVE noutros dias BATE SOL.”

Traduzindo:

“Uns dias a repressão está violenta (chove), noutros dias está tudo mais suportável (sol)”.

E resume com a principal frase do texto:

“Mas o que eu quero te dizer:

 A coisa aqui tá preta!”

Na poesia musicada “Que tal um samba?”, Chico Buarque usa alguns elementos estilísticos de figuras de linguagem muito parecidos com os que usou em “Meu caro amigo”.

Vale lembrar que o contexto histórico atual compreende uma verossimilhança com esses “anos de chumbo” da década de 1970 no Brasil, uma vez que, nos dias de hoje os militares, ainda sejam nitidamente muito mais limitados intelectualmente, mantém toda truculência e toda característica fascista e golpista do que foi o regime ditador a partir do que foi o golpe de 1964.

Tanto quanto em “meu caro amigo”, Chico Buarque usa no texto “Que tal um samba” a metáfora do futebol, porém dessa vez de uma maneira positiva:

“Marcar um gol de bicicleta, dar de goleada”.

 “Depois de muita bola fora da meta de novo com a coluna ereta!”.

Há também, figuras de linguagem ligadas ao clima, para expor o horror do fascismo vigente atualmente:

“Puxar um samba. Que tal? Para espantar o tempo feio”.

“Que tal uma beleza pura depois da borrasca” *(borrasca-ventania muito forte seguida de muita chuva)

Há em ambos os textos, “Meu caro amigo” e “Que tal um samba”, mais duas informações a serem consideradas:

 Ambos contêm a palavra “mutreta” que é a maneira como os militares agem sempre que golpeiam o Brasil. Várias mutretas.

Outra verossimilhante é o estilo de samba escolhido para a denúncia acerca dos desmandos ocorridos no Brasil, qual seja, o chorinho!

Em “Meu caro amigo” o chorinho é acelerado indicando que, naquele momento, dever-se-ia ser lépido e cuidadoso:

Em “Que tal um samba” o chorinho estabelece um ritmo que interage com todo contexto poético das palavras do autor sugerindo uma cadência e uma leveza necessárias para o momento.

“Um samba com categoria, com calma”.

“Manter o rumo e a cadência”.

Há também uma outra intertextualidade entre as obras do Chico Buarque.

Trata-se de alguns aspectos metafóricos verossímeis da poesia musicada “Cale-se” de 1973.

A similaridade histórica entre o que foi ditadura pós-golpe de 1964 e a ditadura pós golpe de 2016 colocada nas linhas acima vale também para a comparação entre o texto “Cálice” e o texto “Que tal um samba”, não havendo necessidade de reiteração de argumentos.

O fato é que no texto “Cálice”, onde há uma tão conhecida ambiguidade sonora para a expressão do tema (Cálice ou Cale-se), existem algumas críticas políticas que se “beijam” com o texto “Que tal um samba”, as quais exploraremos a seguir.

Gilberto Gil, no texto “Cálice”, escreveu uma frase ambígua para Chico Buarque e pediu para que Chico Buarque compusesse o término do texto, a partir desta frase, qual seja :

“Pai afasta de mim este cálice de vinho tinto sangue”.

A partir daí, Chico Buarque escreve um texto tão rico e pleno em seu contexto que necessita de nossa parte uma leitura frase a frase, entretanto devemos nos ater apenas às intertextualidades.

“Cálice” denuncia toda truculência assassina e corrupta da ditadura de 1964, que fôra(acento diferencial tônico) tão perversa e sanguinária quanto à ditadura vivida no Brasil nos dias atuais, guardadas as particularidades nos métodos de assassinato e tortura.

Se existe uma verossimilhança nas denúncias que ambos os textos (Cálice/Que tal um samba?) fazem, isso se intensifica no momento que encontramos figuras de linguagem praticamente idênticas quando percebemos que nos dois textos aparece a expressão “força bruta” fazendo rima com a expressão chula “puta”.

No texto “Cálice” de 1973, por conta das dificuldades com a censura e do aspecto diacrônico para o uso de determinadas palavras naquele período, Chico Buarque desenvolve uma metáfora á partir de uma rima implícita que dribla a censura e respeita a forma de comunicação literária da época, porém deixa claro que , se a rima não acontece de forma direta, poder-se-á percebê-la a partir de uma simples análise contextual, senão vejamos:

“De que me vale ser filho da SANTA?

 Melhor seria ser filho da OUTRA.

 Outra realidade menos morta.

 Tanta mentira, tanta FORÇA BRUTA!”

Reparem que se juntarmos a antítese do que é ser “filho da SANTA” com a

Necessidade de se rimar essa estrofe com a expressão “força BRUTA”, a única forma de rima cabível será a expressão “filho da PUTA” e não a expressão “filho da OUTRA”.

O palavrão fica implícito no texto, afinal de contas, o que é ser “filho da OUTRA”?

Consequentemente, fica implícita também a rima, que caso fosse escrita nos dias de hoje, considerando o momento de expressão literária, teria possivelmente seu quarteto em decassílabos concluído assim:

“De que me vale ser filho da santa?

Melhor seria ser filho da puta!

Outra realidade menos morta,

Tanta mentira, tanta força bruta!”

Eis que, no texto “Que tal um samba?”

Chico Buarque retoma a rima, porém dessa vez o faz de maneira direta, reconhecendo os afrouxamentos que o momento literário permite e encaixando um palavrão que, de tão bem encaixado e escolhido, não nos dá chance de imaginar nenhuma expressão que caiba tão precisamente em sua poesia musicada, pois trata-se do sentimento de todos que almejam uma sociedade melhor, em que o respeito e a justiça sejam uma garantia e um direito irrevogáveis.

“Que tal desmantelar a FORÇA BRUTA?

Então que tal um samba? Puxar um samba legal!

Puxar um samba porreta depois de tanta mutreta!

Depois de tanta cascata! Depois de tanta derrota!

Depois de tanta demência e uma dor filha da PUTA!”

Vale lembrar que todos os temas que um dia Chico Buarque elucidou nos textos “Meu caro amigo de 1976” e “Cálice de 1973” reaparecem implícitos no texto “Que tal um samba?”, entretanto no texto atual há um elemento a mais.

Chico Buarque sugere que a partir da força do nosso povo e de toda influência advinda principalmente da nossa origem africana, podemos derrotar o fascismo vigente e a partir daí estabelecer uma nova realidade.

É aí que surge a terceira e mais significativa intertextualidade dessa mais nova obra prima de Chico Buarque, qual seja, o texto “Beleza Pura” de Caetano Veloso, texto esse que é uma das mais belas homenagens a todas as pessoas afrodescendentes no Brasil.

Em “Beleza Pura”, Caetano Veloso expõe toda a beleza, charme e elegância dos afrodescendentes.

Sua poesia exalta especificamente a beleza física oriunda das pessoas originárias da África. Cita expressões africanas e da Bahia, tais como Curuzu, Badauê, Ilê Aiê que são movimentos culturais famosos e respeitados mundialmente.

Toda reverência de Caetano Veloso às pessoas de origem Africana é resgatadas por Chico Buarque no texto “Que tal um Samba”, sendo assim, além de ilustrar seu trabalho, proporciona ao mundo a possibilidade de conhecer toda obra de Caetano Veloso, tornando-se assim uma homenagem e um reconhecimento de seu talento por parte de Chico Buarque, bem como, abre caminho para que Caetano Veloso venha a ter, através deste gesto de Chico Buarque, um merecido reconhecimento pelo conjunto de sua obra.

Poder-se-á dizer que a generosidade de Chico Buarque em tal citação, num texto tão emblemático como “Beleza Pura” de Caetano, é proporcional ao gigantismo e a profundidade da própria obra “Beleza Pura” de Caetano.

Reparem a riqueza do texto:

Beleza Pura

Não me amarra dinheiro não!Mas formosuraDinheiro não!A pele escuraDinheiro não!A carne duraDinheiro não!...Moça preta do CuruzuBeleza Pura!FederaçãoBeleza Pura!Boca do rioBeleza Pura!Dinheiro não!...Quando essa preta começa a tratar do cabelo é de se olhar!Toda trama da trança transa no cabelo Conchas do mar ela manda buscar pra botar no cabelo!Toda minúcia!

Toda delícia...

 

Não me amarra dinheiro não!Mas elegância...Não me amarra dinheiro não!Mas a culturaDinheiro não!A pele escuraDinheiro não!A carne duraDinheiro não!...Moço lindo do BadauêBeleza Pura!Do Ilê-AiêBeleza Pura!Dinheiro hié!Beleza Pura!Dinheiro não!...Dentro daquele turbante do filho de Gandhi é o que há!Tudo é chique demais tudo é muito elegante!Manda botar fina palha da costa e que tudo se trance!Todos os búzios! Todos os ócios...Não me amarra dinheiro não!Mas os mistérios...Não me amarra dinheiro não!Beleza Pura!Dinheiro não!Beleza Pura!Dinheiro não!Beleza Pura!Dinheiro não!Beleza Pura!Dinheiro não!Beleza Pura!Dinheiro não!Beleza Pura!Dinheiro não!Beleza Pura!Dinheiro não!Beleza Pura!

Nota-se que o exuberante texto de Caetano Veloso ganha uma graça a mais quando adensado pela intertextualidade de Chico Buarque, bem como, o texto de Chico Buarque também ganha uma graça maior ao ser adensado pela intertextualidade da obra Caetano Veloso.

Por conta de tantas intertextualidades e correlações históricas com o que existe de pior em nossa democracia, esse eixo do artigo é fundamental para que se perceba o olhar muito além dos horizontes políticos, históricos e geográficos desta obra de Chico Buarque.

As entrelinhas nele contido, além de serem uma aula de estilística, para as novas gerações, são também mais um desses “Monumentos à Liberdade” que Chico Buarque nos oferece com sua infinita capacidade de nos encantar.


Eixo 5 – (Do Brasil para o Mundo)

Ciente de que a onda neofascista que se esparramou por todo planeta, tendo como mola propulsora o neoliberalismo com toda sua ganância e poder a destruição em nome do capital, Chico Buarque escreve o texto “Que tal um samba”, enviando uma série de recados para o mundo ao oferecer em suas linhas um horizonte de paz, possível e desejado.

“Fazer um filho! Que tal? Para ver crescer! Criar um filho num bom lugar, numa cidade legal!”

Sugere a igualdade de tratamento e o respeito às diferenças.

“Um filho com a pele escura, com formosura, bem brasileiro!”.

É importante que estejamos atentos a cada detalhe desse texto, por isso, outro detalhe interessante dessa obra de Chico Buarque, sugere que para se comunicar com o mundo ele usou a força da Cultura.

 Sim! A Cultura!

 É pela cultura que se marca presença no mundo. Talvez por isso nazifascismo desse governo miliciano que assola o Brasil, desde o golpe de 2016 e aprofundando a partir de janeiro de 2019, tenha a cultura como um dos seus pilares de destruição.

Atento à importância de nos vangloriarmos de nossa maior cultura, “O Samba”, pois esse é nosso maior cartão postal, ao lado da belíssima cidade do Rio de Janeiro, Chico Buarque não apenas passeia por pontos turísticos históricos  e culturais do Rio de Janeiro para mostrar a influência africana sobre nossa cultura, bem como sugere que, “ironicamente”, de dentro dos nossos maiores cartões de visita para o mundo (samba/cidade do Rio de Janeiro), surgem brancos fascistas, como todo ódio, frustrações e preconceitos típicos dos fracos de alma, para tentarem destruir nossas riquezas culturais e quem sabe assim destruir toda nossa sociedade.

Alerto a isso, Chico Buarque escreve um texto, no qual começa e termina com a expressão “Um Samba”.

Em qualquer língua ou nação; ocidental ou oriental; quando se pronuncia a palavra “samba” a primeira imagem que vem a cabeça de qualquer cidadão do planeta é a imagem do Brasil, e porque não dizer, do Cristo Redentor.

Ao começar e terminar o seu texto com a expressão “Um Samba”, tomando o cuidado de desenvolver tal ritmo de maneira cadenciada e lenta, o nosso mais recente Cânone Literário Chico Buarque de Holanda nos situa novamente no mundo para lembrar a todos, além de nossas fronteiras, de que somos muito mais do que meia dúzia de brancos nazistas, fascistas, genocidas, milicianos, ignorantes e corruptos que tem como objetivo tentar apagar ou esconder nosso verdadeiro caráter e nossa verdadeira origem.

“Que tal uma beleza pura no fim da Borrasca? Já depois de criar casca e perder a ternura, depois de muita bola fora da meta, de novo com a coluna ereta!”.

Em breve o mundo verá esse samba com um “Samba de Libertação”, enquanto nós, como já foi dito linhas atrás, o veremos como a “Poética da Redenção!”.

Nesse dia, quem sabe, possamos nos redimir diante dos braços abertos do Cristo Redentor, ou ajoelhados nas escadarias da igreja do Senhor do Bonfim, ou se preferirem simplesmente sentados à mesa do bar “puxando aquele samba legal”!

Conclusão (Ligando os eixos)

O maior alvo do atual Governo do Brasil composto por nazifascistas milicianos é, sem dúvidas, a comunidade afro descente e toda a sua cultura.

Também são alvos os pobres, as mulheres e as pessoas que manifestam uma orientação sexual diferente da heterossexualidade, além é claro, de todas as pessoas que tem ideais políticos progressistas e democráticos.

Não à toa, a escolha de um afronazista para comandar a fundação Palmares.

Não à toa, as fortes evidências sobre quem matou Mariele Franco.

Em “Que tal um Samba”, Chico Buarque olha para frente dando o rumo e a cadência para que derrotemos o fascismo, porém o faz olhando para trás, para nossa história, no afã de mostrar o quanto podemos ser melhores do que esse estado de horrores que de tempos em tempos nos oprimem.

Por isso um texto tão ligado ao movimento modernista de 1922, quem sabe para mostrar o exemplo de que não há ruptura sem enfrentamento ao “status Quo” e sem enfrentamento ao "establishment", sempre com estilo e de maneira tão livre quanto eram livres os versos dos modernistas de 1922.

Que todas as metáforas e demais figuras de linguagem desse samba nos remetam à força do nosso povo e da nossa história.

Que todas as intertextualidades desse texto nos remete a uma nova história, a novas leis e a novos contextos para que definitivamente possamos dobrar a esquina e mudar o rumo do Brasil em direção ao equilíbrio social e à plena liberdade.

Que o mundo dos ouça!

E quando esse dia chegar o melhor que teremos a fazer é nos olharmos e dizermos fraternalmente:

“Que tal um Samba”?

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.