Quem manda no mundo quando o mundo muda?
O ano que termina foi marcado pela sensação de que a inteligência artificial atravessou o ponto de não-retorno
No fim de cada ano, a revista Time repete um ritual editorial que virou termômetro de poder: escolher quem, afinal, moldou o rumo da humanidade. Em 2025, a resposta veio com a força de uma sentença geopolítica: os arquitetos da inteligência artificial. Não foram presidentes, generais, ativistas ou movimentos sociais. Foram os engenheiros do futuro — encarnados nas figuras de Elon Musk, Sam Altman, Mark Zuckerberg e alguns outros nomes que, até cinco anos atrás, pareciam apenas disputar verbas de capital de risco. Hoje comandam algo maior que impérios: comandam infraestruturas cognitivas.
A capa divulgada pela Time ajuda a explicar a escolha. Ali estão esses rostos conhecidos, sentados sobre uma viga de aço suspensa sobre o vazio, numa imagem gerada por IA que remete diretamente à fotografia símbolo da construção do Rockefeller Center em 1932. Naquela época, onze operários — muitos imigrantes, quase todos anônimos — arriscavam a vida pela promessa do sonho americano.
Agora, no espelho digital de 2025, surgem os novos construtores. Não erguem arranha-céus. Erguem plataformas, modelos de linguagem, redes neurais. O alicerce mudou — mas a disputa pelo topo continua.
A referência histórica não é acidental. A imagem original nasceu em plena Grande Depressão, quando os Estados Unidos tentavam provar que ainda sabiam sonhar alto depois do colapso de 1929. Era a força física dos trabalhadores que reconstruía o país. Na releitura da Time, quem sustenta o futuro não são mais braços e pulmões — são algoritmos, energia computacional, capital acumulado e ambições corporativas de alcance continental.
É neste ponto que incluo minha primeira percepção pessoal: a constatação silenciosa de que o poder deslocou seu centro de gravidade. Saiu das fábricas, dos estaleiros e das minas, e se alojou em data centers aparentemente inexpugnáveis, capazes de decidir rumos nacionais sem produzir um único som perceptível.
Mas há um detalhe ainda mais incômodo: os imigrantes de 1932, protagonistas involuntários daquela fotografia, talvez jamais cruzassem a fronteira americana de hoje. Muitos seriam barrados pelo rigor político, especialmente pelas diretrizes defendidas por Donald Trump.
E, no entanto, na capa contemporânea, também há imigrantes. Isso é bem mais do que apenas irônico. Musk veio da África do Sul. Outros vieram da China, de Taiwan, de países que fizeram da tecnologia a nova rota do ouro. Só que, desta vez, o passaporte não se valida pelo suor — se valida pelo capital.
Essa inflexão deixa a pergunta inevitável: quem está construindo o mundo agora? E para quem?
O ano que termina foi marcado pela sensação de que a inteligência artificial atravessou o ponto de não-retorno. Tudo parece confirmar a tese: não há caminho de volta. Relatórios do Goldman Sachs estimam que até 300 milhões de empregos em economias avançadas podem ter tarefas substituíveis pela IA generativa.
Estudos da OCDE projetam impacto direto na área de serviços, setor que historicamente sustentou a mobilidade social norte-americana. À medida que esses números se acumulam, forma-se a segunda percepção pessoal — amadurecida na leitura diária de pesquisas econômicas: a de que a história do trabalho não está apenas mudando, mas reabrindo fragilidades antigas, como se a economia global caminhasse sobre restos de uma arquitetura que imaginava ter superado.
Enquanto isso, sete nomes controlam boa parte do desenvolvimento tecnológico global. Não apenas o software — mas os dados, a nuvem, as plataformas e, sobretudo, a informação, matéria-prima da vida contemporânea.
A comparação que li na revista New Yorker é certeira: são os oligarcas de Donald Trump, tão poderosos quanto os oligarcas do petróleo de Vladimir Putin. Com uma diferença crucial: petróleo molda economias; IA molda percepções, consensos, comportamentos. Petróleo tem muito dinheiro. Os “capos”da inteligência artificial têm muito dinheiro e algo mais: informação.
Esse ponto assusta democracias inteiras. E não é para menos.
Se jornais como Washington Post e Time já utilizam ferramentas de IA em larga escala, como garantir que o leitor não esteja sendo conduzido por filtros invisíveis?
Como assegurar que opinião pública continue sendo pública — e não produto de curadoria algorítmica? A Pew Research revelou que 78% dos americanos temem que a IA distorça o debate democrático antes das eleições de 2028.
Mas o mais simbólico permanece naquela comparação entre 1932 e 2025. Os operários suspensos sobre Manhattan sabiam que bastava um passo em falso para despencar. Não tinham rede, nem cinto de segurança. Viviam literalmente no limite. Hoje, a ameaça se deslocou. A corda bamba continua lá, mas agora é ocupada por milhões de trabalhadores que veem a automação avançar sobre suas ocupações. É
É aí que toma forma minha terceira percepção pessoal: a sensação de que a vertigem social da era da inteligência artificial ecoa a mesma vertigem daquela viga histórica. O abismo mudou de forma, mas não mudou de endereço.
E não é só o trabalho que está em risco. A criatividade também parece ameaçada.
Se o Google já funcionava como atalho para quem não queria ler, a IA empurra essa tendência para outro patamar. Automatiza sínteses, produz textos prontos, resolve tarefas, entrega respostas que dispensam esforço. Se não houver resistência cultural, a “desinteligência natural”, como ironizou a ministra Cármen Lúcia, tende a expandir-se. E o Brasil, que tenta disputar espaço na corrida tecnológica global, corre o risco de formar gerações que confundam velocidade com profundidade.
No entanto, a IA não pode ser proibida. Não pode ser desligada. Não pode ser desacelerada por decreto. Ela precisa ser governada, normatizada, regulada.
O problema é que governar a IA se revelou mais difícil que governar qualquer revolução técnica anterior.
Um simples exemplo: Projetos de lei ficam obsoletos antes mesmo de saírem das comissões da Câmara ou do Senado. Reguladores não conseguem acompanhar o ritmo de inovação. Enquanto isso, bilionários avançam, expandem, capturam mercados, influenciam governos, financiam campanhas e escrevem — literalmente — o manual do futuro. Futuro para quem, cara pálida?
E voltamos à pergunta inicial: quem manda no mundo?
Se a fotografia de 1932 respondia “os trabalhadores que erguem o país”, a versão de 2025 sugere outra resposta: “os donos da inteligência artificial”. Mas talvez a questão real não seja quem manda, e sim quem poderá mandar quando a tecnologia deixar de ser ferramenta e se tornar sistema.
E aí, sim, estaremos todos outra vez na viga, suspensos, sem cinto — olhando para baixo e tentando adivinhar se o chão ainda é chão.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

